Bastou a primeira semana do ano para aparecerem os primeiros movimentos de uma guerra semiótica que promete ser pesada nesse ano eleitoral. E a grande mídia já apresenta as primeiras armas do seu kit semiótico de manipulação: diante da ação policial de busca e apreensão contra o ex-governador Márcio França, entra em ação o empirismo grosseiro da estratégia do “não-há-nada-para-se-ver-aqui!”. Também foi ativado o jornalismo metonímico para criar uma bomba semiótica, milimetricamente tardia, em torno do artigo de Guido Mantega na “Folha” e o anúncio da “revogação da reforma trabalhista” pelo PT. E a psyOp militar de dissonância cognitiva em torno da “operação padrão” do ministro da Saúde Marcelo Queiroga, os ataques de Bolsonaro à vacinação de crianças e a suposta tensão entre o chefe do Executivo e o Comando do Exército que orientou os militares a tomar medidas contra a pandemia e não espalhar fake news.
“A ação não tem cunho político, mas tem desdobramentos políticos”. Esse comentário do apresentador Cesar Tralli no canal fechado de notícias Globo News é um sinal do que podemos esperar sobre o papel da grande mídia nesse ano eleitoral: uma guerra semiótica sem fronteiras.
Junto com Fernando Gabeira (que só continua no canal pelos seus bons serviços prestados na guerra híbrida 2013-16 – chegando a subir em palanque no Rio de Janeiro para atiçar as massas trajando verde e amarelo) comentavam a operação da Polícia Civil em São Paulo com cerca de 34 mandados de busca e apreensão cujo alvo foi o ex-governador Márcio França (PSB), pré-candidato a governador do Estado. E um dos principais articuladores da chapa que teria o ex-governador Geraldo Alckmin como vice do ex-presidente Lula.
“Minhas fontes na Polícia Civil garantiram que a ação não era política”, afirmou ao vivo César Tralli. Provavelmente entras suas fontes estava o coelhinho da Páscoa, porque em seguida admitiu os “desdobramentos políticos” das tradicionais imagens de meganhagem que celebrizaram a Lava Jato: policiais reluzentes, fortemente armados, desembarcando nos alvos das buscas como uma espécie de invasão da Normandia.
“Um desdobramento da Operação Raio X, iniciada em 2020”, procurou isentar a ação... um desdobramento que ocorre dois anos depois, justamente na abertura do ano eleitoral...
Essa é a cínica estratégia semiótica do “não-há-nada-para-se-ver-aqui!”, lembrando aquela impagável cena do filme Corra Que a Polícia Vem Aí (The Naked Gun, 1988) com o investigador policial Leslie Nielsen mandando as pessoas dispersarem porque “não há nada para se ver” enquanto atrás dele há gritos e explosões em série.
Tralli estoicamente tenta manter em suspensão os signos contraditórios através de um empirismo grosseiro – se é apenas uma notícia, por que precisa ser comentada?
A bomba semiótica tardia
Também outra arma do arsenal semiótica entrou em ação essa semana, mostrando que a grande mídia quer sim voltar a ser o grande protagonista político, como foi nos anos de jornalismo de guerra da guerra híbrida brasileira: colocou em ação a estratégia do jornalismo metonímico.
O artigo do ex-ministro do Planejamento de Lula, Guido Mantega, no jornal Folha de São Paulo intitulado “Bolsonarismo levou o Brasil à crise, e retomada virá com o seu fim” (é impressionante o fetiche da intelectualidade petista de emplacar artigos no veículo que foi um dos principais articuladores do golpe de 2016...) ao lado do elogio do ex-presidente e Gleise Hoffmann ao elogio do governo espanhol por ter revogado as reformas trabalhistas na Espanha, serviram de munição para uma tardia bomba semiótica.
Publicado na Folha no dia 04, ato reflexo, no dia seguinte os candidatos Ciro Gomes e Sergio Moro e o deputado federal licenciado Rodrigo Maia atacaram violentamente o artigo e as intenções de revogação da reforma trabalhista (afinal, foi para isso que foi dado o golpe de 2016).
Estranhamente a grande mídia passou 48 horas em silêncio. Para na sexta-feira disparar a bomba semiótica metonímica: ao mesmo tempo em que o Governador João Dória (o demiurgo por trás da ação “não-há-nada-para-se-ver-aqui” da Polícia Civil) divulgava uma carta intitulada “O Atrasão do PT”, em reposta as intenções do PT em revogar a reforma trabalhista, a grande mídia repercutia o balanço do fechamento da semana econômica: “Ibovespa cai e dólar sobe na primeira semana do ano”, dispara o alarme tanto o canal Globo News como a CNN.
Estratégia de contaminação semiótica: os canais colocaram essas duas notícias em sequência ou, pelo menos, no mesmo bloco informativo. Para criar o efeito de contaminação semiótica e levantar, mais uma vez, os velhos maus augúrios do “risco Lula” para os mercados financeiros.
Observe-se que essa estratégia semiótica se destina unicamente aos líderes de opinião, público-alvo dos canais fechados de notícias – no mesmo dia, o JN, o telejornal de rede da Globo para o distinto público, veio com uma massiva pauta sobre Covid, imunização de crianças, desmatamento do cerrado e a morte do ator Sidney Poitier, o primeiro ato negro a ganhar o Oscar. Pauta anódina com as costumeiras pauladas no “meu malvado favorito” Bolsonaro.
Como sempre, esse é o “esquenta” de um ano eleitoral: primeiro, alarmar os líderes de opinião para, em seguida, tocar o terror na patuléia – que aliás, lentamente já começa, aqui e ali, em telejornais locais com pautas do tipo: “como proteger o seu dinheiro num ano eleitoral de instabilidades econômicas...”.
Aguardem o “risco Lula” ganhar a pauta dos telejornais de rede.
A PsyOp militar eleitoral
“Bolsonaro se irrita com recomendação de vacinação dos militares, e Exército prepara nota de esclarecimento”, deu como manchete o jornal O Globo nessa semana. Essa teria sido a reação de Bolsonaro ao saber que o Comando do Exército divulgou orientações aos militares sobre a pandemia. Além de recomendar que não fossem espalhadas fake news sobre vacinas.
Ao lado dos ataques do presidente à vacinação contra a Covid, minimizando os mortos de Covid nessa faixa etária dizendo que é “quase zero”, foi o dog whistle (o conhecido “apito de cachorro” da extrema-direita) para a grande mídia retornar à narrativa de que “Bolsonaro está cada vez mais isolado” e sobre “o crescimento das tensões de um presidente golpista com o comando legalista militar”.
Desde os primeiros dias do atual governo (resultante de um golpe militar 2.0 híbrido), este Cinegnosevem chamando a atenção para a guerra semiótica de informações criptografadas, um tipo de operação psicológica baseada em dissonâncias cognitivas – simular tensões, contradições, conflitos como tática confusional para criar uma paralisia tática no oponente.
Sabemos que toda a “operação padrão” do ministro da Saúde Queiroga (consulta pública + audiência pública), combinado com o tom beligerante do presidente é muito mais do que negacionismo ou fundamentalismo ideológico.
Ao lado do súbito mal-estar abdominal de Bolsonaro, que acabou sendo levado às pressas a um luxuoso hospital em São Paulo com o espalhafato de buscar o seu médico nas Bahamas, faz parte da única estratégia eleitoral que ele tem em suas mãos: o recall do núcleo duro de apoio eleitoral, em torno de 25 a 30%. Portanto, capaz de conduzi-lo ao segundo turno eleitoral.
Assim como, desde o início, a suposta “demissão” de Bolsonaro dos comandantes das Forças Armadas em março do ano passado, após a renúncia do general Fernando Azevedo e Silva, dias antes, foi uma bem planejada operação criptografada voltada para a tutela militar das eleições desse ano.
Jogo de simulação de crescentes “tensões” entre os desígnios “golpistas” de Bolsonaro e o legalismo do Comando militar. Para quê? Para que o “dissidente” general Fernando Azevedo e Silva fosse mais uma vez escalado para ocupar um alto posto em um tribunal superior civil.
Em 2018, ele foi assessor do então presidente do STF, Toffoli, para “estreitar vínculos com Bolsonaro, Mourão e cúpula do Exército” (Toffoli justificou como “gabinete estratégico”)... isso em um ano eleitoral. E agora, por mera “coincidência”, em mais um ano eleitoral, eis que o general “dissidente” vai direto ao alvo: desta vez é nomeado Diretor-geral do Tribunal Superior Eleitoral. Com a conveniente incumbência de gerenciar áreas de cibersegurança, informações e sistema eletrônico das eleições.
O que seria uma aberração em qualquer sistema democrático, graças à paralisia tática produzida no oponente (afinal, é Bolsonaro que pretende supostamente criar o “Capitólio de Brasília” ao questionar as urnas eletrônicas), ninguém no campo progressista questionou, protestou ou se indignou – a não ser, aqui e ali, analistas mais lúcidos que olham para além da paralisia – clique aqui.
Como criticar as urnas eletrônicas “positivo operante” sem ser confundido com os fundamentalistas bolsonaristas? Esse é o objetivo tático dessa operação psicológica: paralisar o oponente ao se apropriar de todas potenciais pautas críticas, apenas invertendo os sinais ideológicos – antes da esquerda que possa fazer, é a extrema-direita que se antecipa e questiona o sistema eleitoral.
A narrativa midiática do “Bolsonaro golpista” que ameaça fazer o “Capitólio de Brasília” (tema repercutido nessa semana que completa um ano da invasão do Capitólio nos EUA) tem cinco finalidades evidentes:
(a) apagar as digitais do golpe militar híbrido: a ampla operação iniciada em 2014 com a AMAN (Academia Militar das Agulhas Negras) lançando o obscuro deputado do Baixo Clero e capitão da reserva Bolsonaro, o golpe de 2016 e o aparelhamento militar do Estado com após as eleições “positivo operante” de 2018;
(b) Simular um conflito entre Bolsonaro e o Comando Militar para desenvolver a narrativa de um “presidente politicamente isolado” que teria arroubos golpistas com o apoio de gente do quilate de Sarah Winter e os “300 de Brasília”, Zé Trovão, Batoré e o cantor Sérgio Reis...;
(c) “apito de cachorro” para a base social e eleitoral bolsonarista – o núcleo duro e passagem para o segundo turno eleitoral;
(d) Estratégia diversionista: desviar a atenção da opinião pública para a crise econômica neoliberal;
(e) Ocultar o movimento da eleição tutelada pelos militares com as urnas eletrônicas “positivo operante.
O curioso é que a última Live do presidente teve o seu momento “Show de Truman” (como naquela sequência em que Truman é surpreendido ao ver funcionários por trás de uma parede cenográfica do reality show da sua vida): sem que o chefe do executivo soubesse que a sua transmissão já estava ao vivo, um “assessor” (podemos perceber que é um militar de alta patente) orienta Bolsonaro a falar sobre os efeitos colaterais da vacina em crianças – “isso aí é sintoma de miocardite”, orienta. E Bolsonaro pergunta: “Tem certeza?”.
O verdadeiro efeito colateral estava na Live presidencial: revelou o modus operandi da atual guerra criptografada de informações. Agora, focada nas eleições.