terça-feira, dezembro 29, 2020

A gnose é o jazz da vida na animação da Pixar 'Soul'


Por que sentimos as emoções que sentimos? Há vida após a morte? Um rato pode fazer uma refeição de três pratos? Após tentar responder a essas perguntas nas animações “Divertida Mente”, “A Vida é uma Festa” e “Ratatouille”, agora o estúdio Pixar vai direto ao ponto: qual o sentido da própria vida? Esse é “Soul” (2020), a narrativa mais esotérica e mística do estúdio. Principalmente porque vai buscar a resposta no conceito de “spark” - palavra explicitamente gnóstica: “centelha” ou “faísca” como contraparte divina da alma). Um conceito incompreendido nas traduções em legendas e dublagens brasileiras, traduzido ora como “propósito”, ora como “missão”. O gênio de “Soul” é representar esse tema esotérico por meio do Jazz: um professor de música tem uma experiência de quase morte no dia mais importante da sua vida para ser levado ao plano da existência do trânsito das almas entre o Céu e a Terra.  Para alcançar a gnose na qual a centelha da vida é como o Jazz: para realmente apreciá-lo, é necessário que coração e a mente estejam imersos na música... assim como na vida.

A nova animação da Pixar, Soul (2020), é a produção do estúdio menos centrada no público infantil nos últimos anos. Ele tem as qualidades técnicas típicas da Pixar mas, um filme sobre um professor de música do ensino médio que finalmente consegue sua grande chance da vida em uma respeitada banda de jazz, apenas para logo depois cair em um bueiro, entrar em coma, e ser levado para outro plano de existência para entender o trânsito das almas entre o além e esse mundo, é muito ambicioso. Para não dizer abstrato e metafísico.

Em Divertida Mente (Inside Out, 2015), os roteiristas e produtores da Pixar já demonstraram essa capacidade em transformar temas complexos em narrativas divertidas: a animação baseou-se nas pesquisas do psicólogo Paul Ekman, pioneiro dos estudos das conexões entre as emoções e expressões fisionômicas – estudos iniciados pela CIA e Departamento de Defesa dos EUA para criar modernos detectores de mentira – clique aqui.

E nos seus quatro anos de produção, Soul tinha ainda um argumento mais abstrato e difícil para o segmento infantil: inicialmente a ideia da dupla de direção e roteiro Pete Docter e Kemp Powers era sobre uma alma que resiste à ideia de querer voltar para a Terra por achar a existência uma perda de tempo. A princípio, toda a estória se passaria nas terras celestiais do Grande Além e do Grante Antes. Mas como a narrativa mostraria para o protagonista que a vida vale a pena? 

Daí veio a ideia de um personagem encarnado, que tivesse paixão naquilo que faz na vida: um professor e músico de jazz, Joe Gardner (dublado por Jamie Foxx), o primeiro protagonista num elenco predominantemente negro das animações Pixar. E mais tarde, um gato gordo e engraçado (em cujo corpo Joe acidentalmente retorna para a Terra), personagem que consegue fazer a ligação necessária com as crianças.

Porém, a chave de compreensão de Soul é um conceito abstrato e com fortes conotações místicas ou espiritualistas: a palavra “spark”, em português “centelha”, “faísca”. Tudo na animação gira em torno da compreensão pelos protagonistas do significado dessa palavra (repetida 24 vezes nas linhas de diálogo, quase tanto quanto a palavra “alma”).



Os “mentores” (as entidades bidimensionais do “Grande Antes” que preparam as almas para retornarem à Terra) dizem que cada alma deve encontrar seu “spark” para retornarem ao plano físico. Se os protagonistas Joe e a alma resistente chamada 22 (Tina Fey) levam o filme inteiro para entender o real significado desse conceito, parece que os tradutores das legendas e dublagem em português (pelo menos no Brasil) não conseguiram entender até agora. O tempo inteiro, a palavra “spark” é traduzida por “propósito”, “inspiração”, “paixão” etc.

Nunca traduzem o conceito por ele mesmo: faísca, centelha. Esse é o conceito central de Soul: cada alma deve descobrir a sua “centelha” interior para conectar-se à vida. E o que é essa “centelha” ou “faísca”? Durante todo o filme Joe e 22 (e a dublagem/legendas) a confundem com a busca de um propósito ou sentido para a vida. Ou seja, encontrar uma missão – para Joe, se tornar um respeitado pianista de jazz. 

Soul aproxima bastante a palavra “spark” do conceito esotérico ou espiritualista da “iluminação interior” ou a nossa contraparte divina, a centelha espiritual que nos ligaria às nossas origens das nossas almas, todas elas emanadas de um plano além desse cosmos. Claro que essa concepção é eminentemente gnóstica: a gnose como a descoberta da centelha espiritual interior que através da qual, para Teódoto de Bizâncio (sec. II D.C.), "conhecemos quem éramos, o que nos tornamos, onde estávamos, para onde fomos lançados, para onde estamos indo, do que estamos libertos, o que é o nascimento e o que é renascimento".



Através do Jazz, Soul procura representar essa centelha espiritual: a vida não é o quê fazemos, mas como o fazemos, como estamos presentes nesse mundo experimentando plenamente os sentidos do corpo, nossas potencias, sentido a própria materialidade do plano físico com alegria, entusiasmo, élan, boa-fé, brilho, confiança – e nada como representa-lo através do Jazz, um gênero musical definido pelo improviso e difícil de ser definido: Para realmente apreciar essa forma de arte, é necessário que o coração e a mente estejam imersos na música.  Só assim poderemos não apenas entender o Jazz, mas experimentá-lo... assim como a vida.

O Filme

No prólogo de Soul acompanhamos a vida de Joe Gardner, um professor de música temporário que é efetivado: finalmente um salário, plano médico e estabilidade. Sua mãe está feliz, mas Joe parece que não. Filho de um pai jazzista, e de uma mãe que sempre se virou para pagar os boletos, Joe na verdade tem o sonho de ser um pianista respeitado em uma banda de jazz.

Esse dia finalmente chega quando faz um teste com a banda da legendária saxofonista Dorothea Williams (Angela Basset), que o convida a tocar em um show, no melhor clube de jazz da cidade, naquela noite. Joe está com uma felicidade tão incontida que não percebe um bueiro sem tampa numa calçada em Nova York, cai e passa a ter uma experiência de quase morte – ele é transportado para uma espécie de saguão cósmico onde inúmeras almas, em fila, se dirigem para uma imensa luz branca. 

Joe ainda não está pronto para o Fim e corre na direção oposta... afinal, precisa tocar no show mais importante da sua vida. Cai da passarela e despenca num escuro abismo até terminar numa zona de cores vivas, mas purgatorial, chamada de O Grande Antes.



 Uma zona limítrofe entre o Grande Além e a Terra, onde mentores (personagens bidimensionais com uma estética que lembra alguma coisa entre Matisse e Picasso) preparam as personalidades das almas que reencarnarão na Terra. Joe logo se une a uma sarcástica e cínica alma chamada 22: ela está ali há séculos e resiste em voltar para o mundo físico, apesar de todos os esforços de mentores do quilate de Madre Tereza de Calcutá, Copérnico e até o psicanalista Carl Jung. 

Joe vê nela a oportunidade de voltar à sua vida na Terra – basta que ela encontre sua “centelha” (ou “propósito” na tradução brasileira) e retornará com 22 à vida como seu mentor.

Joe leva 22 para o Salão de Todas as Coisas, uma espécie de Exposição de todas as atividades humanas na Terra, onde a alma poderá se inspirar em algum propósito ou sentido em uma futura vida feliz e produtiva.

E nesse Salão que começamos a entender que falta algo essencial na formação dessas almas: todas as cenas as atividades humanas ali representadas parecem ser formas platônicas, abstratas, sem cheiro, textura, sabor – todos no Grande Antes são apenas almas sem corpos, destituídos dos sentidos vitais.

Tudo em O Grande Antes é platônico: somos enviados para a Terra com uma personalidade já formada. Porém, o trauma do nascimento nos faz esquecer e passamos o restante da vida tentando relembrar daquilo que foi esquecido. Nada tão gnóstico do que definir a existência humana como a ilusão fundamentada no esquecimento.



A metafísica em queda

O curioso em Soul é que a representação do pós-morte é a mais clássica possível, rompendo com a tendência de desde Amor Além da Vida (1998) em representar o Além de forma plástica e solipsista como se os céus fossem apenas projeções psicológicas a partir de desejos, sonhos ou pesadelos.

Ao contrário, o Grande Antes parece fazer parte de um grande sistema cósmico, com hierarquia, diretores e especialistas, como o técnico que contabiliza as almas que embarcam para o Grande Além. Lembrando o cenário da comédia metafísica de Albert Brooks Um Visto para o Céu (Defending Your Life, 1991). Ou as descrições sobre o “Nosso Lar” na série espírita do médium Chico Xavier.

Porém, Soul se alinha na tendência dos filmes gnósticos em apresentar a gnose após a morte: O Terceiro Olho (The I Inside, 2004), A Passagem (Stay, 2005), Enter the Void (2009), Every Time I Die (2015), entre outros.

E essa gnose em Soul vem por uma, por assim dizer, “metafísica em queda” numa espécie de reconstituição proustiana, da obra “Busca do Tempo Perdido” de Marcel Proust – são nas experiências singulares extraídas de pequenos lugares e prosaicos acontecimentos (como o sabor de uma pizza de pepperoni, o toque na mão da folha que cai no outono), que encontramos aquilo que almeja o Universal – o “spark”, a centelha divina que dá o élan vital, independente do propósito ou missão que a alma abrace nesse mundo.

Está na memória involuntária (para além da visual, a memória tátil ou olfativa) que nos faz lembrar daquilo que foi esquecido.



Esse tema já foi tratado em outra animação Pixar, Ratatouille (2007) – a forma como o tradicional prato francês feito com legumes pelo protagonista Linguini e o rato Remy desarticula as defesas do crítico gastronômico chamado Ego quando o sabor o remete às memórias da infância.

Somente que em Soul, essa memória involuntária é transposta para o tema espiritualista da “centelha” como uma espécie de metafísica em queda: o verdadeiro “propósito” das almas só será conhecido através dos sentidos da carne, assim como entender o que é o jazz imergindo na própria música.

Mas há outro tema mais profundo e implícito na animação: a dicotomia entre o Grande Além e o Grande Antes: o primeiro lembra alguma coisa como o darma para o hinduísmo ou budismo como o “conhecimento superior” ou o “caminho da consciência” após o karma das sucessivas reencarnações ser extinto. Enquanto no Grande Antes as almas vivem ainda na Roda do Samsara – o ciclo interminável de mortes, renascimentos e sofrimento na tentativa de quebrar os padrões cármicos.

O Grande Antes lembra o “bardo” (estado da existência no fluxo constante da vida) mais importante descrito no “Livro Tibetano dos Mortos”: o bardo da vacuidade – a busca da consciência fundamental do próprio espírito quando tentamos superar as ilusões cármicas.  


 

Ficha Técnica 

Título: Soul (animação)

Criador: Pete Docter, Kemp Powers

Roteiro: Pete Docter, Mike Jones

Elenco: Jamie Foxx, Tina Fey, Graham Norton, Rachel House, Alice Braga

Produção: Walt Disney Picture, Pixar Animation Studio

Distribuição:  Disney +

Ano: 2020

País: EUA

 

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