sábado, junho 27, 2020

A incerteza quântica do Detetive em "O Turista Suicida"


Os impactos da descoberta do Princípio da Incerteza na mecânica quântica de Heisenberg foram muito além do campo científico – transformou o modo de constituição da subjetividade na modernidade: de qualquer ponto que pensemos a nossa vida, encontraremos um mundo fragmentado e incompreensível povoado por gente cujos compromissos e motivações não são claros. Por isso somos todos Detetives, personagem principal da Modernidade da literatura ao cinema. Sua tentativa de solucionar um enigma sempre se voltará contra ele mesmo. “O Turista Suicida” (Selvmordsturisten, 2019) é mais um exemplo de como a incerteza quântica faz parte da sensibilidade moderna: um investigador de uma seguradora tenta solucionar o enigma da morte de um segurado, envolvendo o “Hotel Aurora” – um resort elegante nas montanhas escandinavas que promete uma “morte assistida” ou “um belo final”. Porém, sem saber o detetive está investigando a si mesmo. Filme sugerido pelo nosso colaborador Felipe Resende.

O chamado Princípio da Incerteza da mecânica quântica de Werner Heisenberg (1901-1976) foi uma daquelas descobertas cujas consequências foram além do campo da Física: quando se tenta estudar a posição de uma partícula subatômica, a tentativa da medição da posição necessariamente perturba o momentum de uma partícula. Em outras palavras, Heisenberg queria dizer que não podemos observar uma coisa sem influenciá-la.

Essa incerteza sobre aquilo que percebemos acabou impactando do estudo das mídias (p. ex., o “efeito Heisenberg” de Neal Gabler, sobre como as mídias transmitem menos o acontecimentos e muito mais o impacto das mídias sobre os próprios acontecimentos – clique aqui) até os insights cinematográficos em filmes como Coração Satânico (1987) ou Amnésia (2000) nos quais o real e a própria identidade do protagonista são colocados em xeque.

Esse princípio quântico da incerteza está lá no gênero fílmico noir, na construção seminal do personagem do Detetive nos thrillers policiais de mistério - embora ele tente manter a racionalidade, objetividade e imparcialidade da investigação, sempre ao final acaba descobrindo que ele próprio é uma peça do mistério que precisa ser solucionado. Sempre há algo que o arrasta para alguma coisa deixada solta em seu próprio passado. O Detetive faz parte do próprio objeto que tenta investigar.

Ao lado de outros arquétipos contemporâneos como O Viajante e O EstrangeiroO Detetive será o terceiro modo de constituição da subjetividade e do mundo na cultura contemporânea – sobre isso clique aqui.

O filme dinamarquês O Turista Suicida (Selvmordsturisten, 2019), dirigido Jonas Alexander Arby e com roteiro de Rasmus Birch, é mais uma variação narrativa sobre essa incerteza gnóstica sobre a realidade e percepção – com evidentes ecos de Coração Satânico ou The Parallax View.

E como todo bom filme que destrincha esse personagem do Detetive, a narrativa é um malabarismo em vários períodos de tempo do protagonista, entrelaçando presente e passado. Tanto o personagem como o espectador são tomados por incertezas: não tudo aquilo que vemos necessariamente é o que está ocorrendo.


Como sempre, vemos um protagonista mergulhado na obscuridade (e eventualmente perdendo os sentidos, involuntariamente drogado, etc.) As investigações o levam para um mundo fragmentado e incompreensível povoado por gente cujos compromissos e motivações não são claros. Defronta-se sem cessar com o mundo da simulação. O mundo com suas conexões e eventos são falsos, fabulações conspiratórias de algum demiurgo.

No caso, o “Hotel Aurora”, um resort elegante encravado entre picos nevados da Escandinávia, dedicado ao, por assim dizer, suicídio assistido para que os clientes tenham “um belo final”.

Qual mistério envolve o Hotel Aurora? Como sempre, o Detetive mergulhará no mundo da incerteza para descobrir que ele próprio faz parte do enigma que tenta desvendar.



O Filme

O Turista Suicida começa com uma espécie de último testamento em vídeo, via tablete; “quando você estiver assistindo esse vídeo, estarei morto...”. Ele chama-se Max (Nikolaj Coster-Waldau, de Games of Thrones). 

O espectador terá que se acostumar com a narrativa em “slow burn”, lenta, sempre jogando entre flashbacks e flashfowards. Ele está supostamente morto, mas o filme nos leva de volta a sua vida. 

Não há nada especial na vida de Max, vivendo com sua amável esposa Laerke (Tuva Novotny) e uma gata chamada Simba. Nada especial, a não ser o desejo de dar cabo da própria vida. Recentemente descobriu que tem um tumor cerebral que está em inexorável expansão, e ele nada poderá fazer.

Depois de ouvir Laerke ao telefone confessando que não aguentará muito tempo a situação, Max decide se matar. Mas são sempre malsucedidas (forca, pedra amarada na perna etc.): sempre algo interrompe o momento final - um carro que chega, o telefone que toca...

Poderia ser um filme de humor negro. Mas as coisas começam a ficar cada vez mais obscuras. Max é um investigador em uma empresa de seguros que terá de dar conta de um caso: uma viúva quer receber o dinheiro do seguro do marido morto. Não seria um problema, exceto que ninguém consegue encontrar o corpo. E sua última mensagem veio através de um vídeo do famigerado Hotel Aurora – a melhor maneira de morrer, de forma elegante, assistindo à bela Aurora Boreal e os deslumbrantes picos nevados da Escandinávia.

Porém, Max terá que descobrir a dúvida principal do pedido de indenização: o marido foi assassinado ou pagou por uma morte assistida? 

Essa é a ironia central do filme, que produzirá toda a incerteza narrativa: acontece que Max também quer se matar... infiltrar-se e investigar um resort que oferece “um belo final” parece bem sedutor para o detetive: não é tudo do que precisa?



Mas e se Max mudar de ideia? O filme parece caminhar para para temas filosóficos e se transformar em um suspense existencial Não. Mas o pulso acelera quando a equipe do Hotel Aurora, encarnada por Jan Bijvoet, Solbjorg Hojfeldt e Kate Ashfield, passa de encantadora a sinistra quando Max fala em sair. "Você pode ir, mas não pode escapar", dizem.

Será que ele já estaria morto? O vídeo-testamento da abertura do filme é o indício desse inevitável final? Nada fica claro, sabendo-se que Max é O Detetive: ele não está investigando mais um caso de pagamento de seguro. Na verdade, está investigando a si mesmo, ao melhor estilo do detetive particular Harry Angel (Mickey Rourke), no filme Coração Satânico, de Alan Parker.

O investigador de seguros: a profissão da Modernidade

Toda iconografia do Detetive desfila em O Turista Suicida: espelhos, névoas, momentâneas perdas de sentido, uma mulher fatal que surge em uma sequência no resort – e um sombrio e conspiratório propósito daquela imensa estrutura hoteleira que não é nada altruísta.



O arquétipo contemporâneo do Detetive é o que impulsionam todas as teorias conspiratórias: da Área 51 a teoria da Terra Plana. A percepção de que a realidade conspira contra o Detetive (ou todos nós), uma conspiração que pode ver de qualquer lugar – e do espectro político, da direita à esquerda.

Mas o curioso em O Turista Suicida é a escolha da profissão para o protagonista: um investigador de uma companhia de seguros.

Ao lado do investigador policial e do detetive privado, o investigador de seguros é a profissão da Modernidade.

Produto direto do século XIX, o “século das multidões”, as companhias de seguros surgem nas primeiras metrópoles europeias com o crescimento de sinistros: criminalidade, incêndios, atropelamentos, crises econômicas, epidemias etc. Colocando em risco vida e patrimônios de pessoas físicas e empresas.

O matemático e demógrafo francês Adolphe Quételet (1796-1874) lança as bases da chamada “Física Social”: ferramentas estatísticas e probabilísticas sociais para o cálculo das probabilidades de ocorrências de “patologias sociais” como crimes, por exemplo.

Ferramentas estatístico-sociais que serão a base das ciências atuariais nas quais se baseiam os cálculos dos valores de apólices de seguros – o valor a partir do cálculo probabilístico do risco.

 O detetive das seguradoras será aquele que investigará aquilo que foge aos padrões da probabilidade – sem as quais, inviabilizaria as companhias de seguros. 

É o herói da Modernidade, aliando racionalidade e perspicácia. Até surgir a incerteza quântica de Heisenberg e jogar o herói moderno do detetive na indeterminação radical, quando o objeto da investigação se volta contra ele mesmo.


 

Ficha Técnica 

Título: O Turista Suicida

Diretor: Jonas Alexander Arnby

Roteiro: Rasmus Birch

Elenco: Nikolaj Coster-Waldu, Tuva Novotny, Kate Ashfield, Jan Bijvoet

Produção: Snowglobe Films, Mer Film

Distribuição:  Screen Media Films

Ano: 2019

País: Dinamarca, Noruega

 

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