domingo, abril 05, 2020

Quando a Publicidade se torna uma mitomania em "A Casa"


Um publicitário passa quase uma vida inteira vendendo imagens de realizações de sonhos, desejos e fantasias. Vende imagens daquilo que supostamente nós mereceríamos: felicidade, carros de luxo, famílias “doriana” perfeitas, casas amplas em tons pastéis etc. E se ele acreditar tantos nessas imagens que vendeu por anos e achar que agora é a vez dele merecer tudo isso? E se de tanto repetir uma mentira, passar a acreditar nela, tornando-se um mitômano obsessivo e perigoso? Esse é o filme “A Casa” (“Hogar”, 2020), aposta da Netflix num filme espanhol que claramente tenta seguir a trilha do sucesso do coreano “Parasita”: desigualdade social e luta de classes escamoteada por uma maquinação tramada contra uma família rica e bem-sucedida. Quase sempre, publicitários no cinema são figurados entre mentirosos arrependidos ou cínicos. Mas “A Casa” inova ao mostrar as consequências de uma mitomania: um profissional que confunde sua própria vida com as imagens de seu próprio portfólio publicitário. Filme sugerido pelo nosso colaborador Felipe Resende.

Para os millenials (aquela geração de pessoas que nasceram depois dos anos 80), acumular bens e construir um império como patrimônio não são prioridades – preferem experiências ao invés de bens materiais. Priorizam conveniências ao luxo, alugar ao invés de comprar, estratégias de mobilidade ao invés de ter um carro próprio.
Esta geração se distanciou dos sonhos em tons pastéis dos vídeos publicitários dos anos 90 da família perfeita, filhos, morando numa ampla casa com um carro de luxo na garagem. A “família Doriana”, com um indefectível cão labrador ou golden retriever. 
Mas não por opção ideológica ou existencial, mas porque têm rendimentos bem inferiores em relação às gerações passadas. Almejam ser fundadores de startups do que empregados registrados em carteira.
Imagine então um publicitário de meia idade, cuja carreira inteira vendeu os sonhos “da vida que você merece” (casa, esposa, carros e emprego perfeitos) para a sociedade. Como um mitônomo, de tanto mentir, passou a acreditar na mentira: agora chegou a vez dele também ter tudo aquilo que ele merece... mas, o seu destino na carreira publicitária não foi aquilo que imaginava.
E a casa, esposa, carro e emprego perfeito começam a se esfarelar justamente quando se aproxima do inverno da sua vida – a velhice.
Esse é o cenário diante do qual se desenrola o thriller dramático A Casa (Hogar, 2020), estrelado por Javier Gutierréz (O Autor, Campeones) e dirigido pela dupla Alex e David Pastor. 
Certamente, a aposta da plataforma de streaming Netflix nesse filme é um efeito do sucesso do filme Parasita de Bong Joon Ho. Estão nesse filme muitos temas do filme coreano: a desigualdade social, maquinações, reviravoltas, o choque geracional e a luta de classes escamoteada numa armadilha maquiavelicamente tramada contra uma família rica e bem-sucedida.



Claro que a dupla de diretores não consegue alcançar a inteligência e o peso intelectual do diretor coreano – as maquinações são exageradas, reviravoltas absurdas, personagens com comportamentos inverossímeis. Parece até um filme resultante dos algoritmos da Netflix: uma inteligência artificial que parece ter aprendido muito com a vitória no Oscar do filme Parasita.
Por isso, Javier Gutierrez carrega o filme sozinho nas costas ao assumir um personagem inteligente, perverso, calculista, frio e obsessivo: ele fará de tudo para realizar o sonho que tanto vendeu para os outros a vida inteira.
Porém, é uma boa diversão nessa época de confinamento para aqueles que gostam de tramas que mesclam crime e suspense. 
Mas, principalmente, pelo pano de fundo de crítica social e de choque geracional. Pelo menos no primeiro ato, temos uma verdadeira descrição etnográfica das diferenças entre a Geração X e a Millennial. Para os diretores, esse pressuposto já é o suficiente para dar verossimilhança ao thriller no qual a narrativa mergulha nos dois atos subsequentes.


O Filme

A Casa começa com um interessante truque narrativo, uma falsa sequência inicial: acompanhamos uma família perfeita sentada em uma suntuosa mesa para uma refeição matinal numa casa espaçosa, lindamente decorada em tons pastéis, ao som da idílica “O Dueto das Flores”, de Léo Delibes.
Tudo termina com o slogan: “A Vida que você merece”. Assistimos a um vídeo publicitário do portfólio de Javier Muñoz (Javier Gutiérrez), apresentado a uma dupla de entediados publicitários millennials que avaliam mais um candidato a uma insignificante vaga na agência.
Javier é uma lenda na indústria publicitária, e está muito aquém da vaga oferecida. Ele está passando por momentos difíceis na carreira, fora de sintonia com as tendências atuais e se candidatando a estágios sem perceber que não são remunerados – algo bem comum no meio publicitário: as agências parecem acreditar que estão prestando um favor, e não um emprego...
Javier ainda está imerso no velho sonho de consumo da publicidade das décadas anteriores. Agora, na meia idade, ele quer tudo aquilo para ele: anseia pela Boa Vida, com uma família perfeita e carro de luxo.
Ele até possui um bom carro e um amplo apartamento num bairro luxuoso de Barcelona. Mas está ameaçado de perder tudo: sem trabalho, terá que vender o carro, deixar seu apartamento deslumbrante, ver seu filho ser ridicularizado na escola por ter pais obrigados a se mudar para um apartamento apertado num bairro proletário.
Esse é o ponto em que gira a trama. Javier tenta desesperadamente se apegar ao seu carro e o antigo apartamento, agora habitado por jovens moradores bem-sucedidos. Enquanto a esposa Marga (Ruth Diaz) luta para a família sobreviver trabalhando como diarista, Javier ainda tem cópias das chaves do apartamento da sua vida – a cena em que ele fica parado observando Barcelona da ampla janela do apartamento é simbólica, porque liga aos clichês dos filmes publicitários do seu portfólio. Ele foi psiquicamente engolido pela mitomania.


Javier fica obcecado pela vida dos novos inquilinos morando no apartamento dos seus sonhos publicitários: o empresário Tomás (Mario Cassas), a esposa Lara (Buna Cusi) e a pequena filha Monica (Iris Vallés). Quando todos saem, Javier entra, estudando os hábitos e cotidiano daquela família: seus horários, suas agendas, preferências etc., entrando nos computadores e observado gavetas e objetos.
 De forma fria e calculista, Javier quer largar sua família que se tornou imperfeita (agora, Marga cheira a alvejante e o filho é um perdedor obeso), para assumir aqueles novos moradores perfeitos, dentro do seu sonho de consumo.
Não tardará para ele encontrar um ponto fraco em Tomás, criando um plano maquiavélico envolvendo um jardineiro pervertido, um carro propositalmente acidentado, a reação alérgica a uma essência de amendoim e uma premiada ginasta rítmica.
Você sente que se Javier aplicasse essa mesma criatividade em seu portfólio de publicidade, ele não ficaria tão à margem na carreira.


Isso é o que começa a tornar inverossímeis os comportamentos dos personagens (principalmente da esposa Lara) e as reviravoltas que tentam seguir o estilo de Parasita
Tudo é até divertido, porém a dupla de diretores nunca consegue chegar no tom que explique as ações ou motivações dos personagens.
Apesar de tudo, A Casa nos dá interessantes insights sobre as diferenças geracionais e como a Publicidade tenta se adaptar aos novos perfis etnográficos.
Também o filme de certa forma inova o olhar do cinema para os publicitários. No cinema, publicitários são quase sempre figurados entre o cinismo e a libertação: De Gente Louca (1990) ou Como Fazer Carreira em Publicidade (1988) à série Mad Men (2007) ou Um Sonho Tcheco (2004) ou vemos publicitários lutando para se libertar de um mundo de mentiras ou profissionais movidos por um auto-distanciamento cínico.
Mas em A Casa temos um mitômano que se transforma num assassino calculista que não mede esforços para que sua vida se iguale às imagens do seu portfólio. Esse tema confusão entre realidade e ficção publicitária, ao lado das mudanças etnográficas do imaginário publicitário, merecia um melhor desenvolvimento da dupla de diretores. 
Quem sabe, longe dos algoritmos do Netflix.  


Ficha Técnica 

Título: A Casa
Diretor: David Pastor e Alex Pastor
Roteiro: Alex Pastor e David Pastor
Elenco: Javier Gutiérrez, Mario Casas, Bruna Cusi, Ruth Diaz, Iris Vallé
Produção: Nostromo Pictures
Distribuição:  Netflix
Ano: 2020
País: Espanha

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