A cultura pop nada mais representaria do que o abismo geracional entre jovens e adultos? Por trás de cada gesto de revolta seja grunge, punk ou gótico estaria um adulto vigilante através de mensagens criptografadas em músicas? As vertiginosas alusões de “conspiranoia” pop em “Under The Silver Lake” (2018), de David Robert Mitchell (“Corrente do Mal”), conferem uma nova abordagem do tema da paranoia no cinema. Um jovem desocupado tenta investigar o mistério do desaparecimento de sua vizinha para mergulhar no submundo das subcelebridades aspirantes a atores e atrizes em Hollywood e na subcultura de HQs e fanzines que tentam construir uma Teoria Unificada das conspirações. O fio da meada pode levar o espectador a conspirações ao melhor estilo Hitchcock e David Lynch. Mas o fio pode estar desplugado da tomada! Filme sugerido pelo nosso leitor David Góes.
Matrix (1999) e Amnesia (Memento, 2000) foram pontos de inflexão na abordagem da paranoia no cinema. Até aquele momento na virada de século, em geral o tema da paranoia era abordado por uma perspectiva narcísica – a ideia do sujeito de que o mundo está focado numa perseguição contra ele próprio. Excetuando-se a paranoia do detetive dos filmes noir clássicos, no qual o protagonista na verdade é um sobrevivente em um mundo de aparências que se desfaz em chuva, neblina e sombras.
A partir da virada do século, a paranoia passa a ter, por assim dizer, um caráter mais espiritual ou gnóstico. Uma desconfiança radical ou ontológica em relação à própria concreticidade do mundo e das próprias percepções – “Eu tenho que crer num mundo fora da minha mente. Tenho que crer que minhas ações permanecem tendo um sentido embora não consiga lembrar qual seja. Tenho que acreditar que quando meus olhos fecham o mundo permanece lá. O mundo ainda está lá? Está lá fora?”, como divaga Leonard em Amnesia, questionando a própria veracidade da sua percepção.
Pesquisadores especulam que essa viragem na natureza da paranoia não só no cinema, mas na própria cultura pop, viria de encontro a audiências atomizadas e passivas diante da complexidade tecnológica de computadores, webcans, bancos de dados e sistemas de segurança interconectados online.
A paranoia transforma-se no melhor tema em HQs, games de computador, filmes ou chats e fóruns de discussões na Internet sobre teorias conspiratórias ou lendas urbanas – leia DAVIS, E., Techgnosis: Myth, Magic and Mysticism in the Age of Information. London: Serpent’s Tail, 1998;KROKER, A., The Postmodern Scene. Excremental Culture and Hyper-Aesthetics, Nova York: St. Martin’s Press, 1988. WILDER, T. E. “El Gnosticismo en el Cine” disponível em http://www.contra-mundum.org/castellano/wilder/Gnosticismo.pdf.
Conspiranoia pop
Quem estaria por trás dos cordões que controlariam a realidade e os nossos destinos? Alienígenas oniscientes? Sociedades secretas franco-maçônicas-comunistas-globalistas? Complexos industriais químico-agro-armamentistas-farmacêuticos? Algum tipo de elite midiática-financeira-global? Ou alguma espécie de inteligência artificial senciente que pretende dar cabo da espécie humana?
O fato é que sempre a paranoia imagina uma conspiração organizada por algum tipo de demiurgo muito poderoso e infalível. Mas para quê? Apenas pelo prazer de dominar o mundo, assim como aquela animação “Pink, O Cérebro”?
O intrigante na exploração do tema da paranoia no filme Under the Silver Lake (2018), do diretor David Robert Mitchell (Corrente do Mal, The Myth of the American Sleepover), é a desconstrução daquilo que supostamente estaria por trás do pânico persecutório.
Sob um vertiginoso pastiche de “conspiranoia pop” (uma sucessão de alusões aos clássicos de Hitchcock como Janela Indiscreta, Vertigo etc.; David Lynch em Cidade dos Sonhos ou Veludo Azul; filmes noir clássicos e Juventude Transviada com James Dean), David Mitchell apresenta uma espécie de vitrine dos medos persecutórios de uma geração: dos supostos códigos, simbolismos e mensagens subliminares misteriosas em músicas e publicidade, até chegarmos a seitas, serial killers e lendas urbanas. E por trás, a mídia, a indústria e o “sistema” que fabrica a realidade. Mas quem é o “sistema”?
Uma pergunta de natureza análoga à da tripulação da nave que viaja aos confins do universo no filme Prometheus (2012) de Ridley Scott, em busca dos “engenheiros” artífices da espécie humana – até descobrirem que os supostos “deuses” são mais enlouquecidos do que a sua criação, a humanidade.
O Filme
A narrativa acompanha Sam (Andrew Garfield), aparentemente um fracassado tentando viver de bicos, fugindo das cobranças de aluguel, perpetuamente chapado, passando a maior parte do tempo se masturbando, jogando Nintendo e procurando mensagens secretas codificadas em velhas fitas VHS e sucessos efêmeros da cultura pop.
Como em Janela Indiscreta, também passa o tempo com binóculos observando o cotidiano das garotas vizinhas, do apartamento à piscina do condomínio.
Depois de uma noite com uma nova vizinha chamada Sarah (Riley Keough), na manhã seguinte ela desaparece e Sam encontra o seu apartamento completamente vazio, como se jamais tivesse existido.
Sam torna-se obcecado em descobrir o que aconteceu com ela. Seus primeiros suspeitos serão um grupo de garotas itinerantes liderados por Troy (Zosia Mamet) que acaba se tornando uma espécie de coelho que conduz ao buraco de Los Angeles – um submundo de atores e atrizes sub-celebridades (que via de regra se prostituem como garotas ou michês de programa) em um ciclo de festas “twenty four hours party”.
A atmosfera se assemelha a Veludo Azul de David Lynch com uma fauna de sub-artistas em torno do show da banda "Jesus e as Noivas de Drácula" em mansões, criptas e cemitérios. Nessa peregrinação quase detetivesca com abundantes alusões iconográficas aos filmes noir, Sam se transforma num Philip Marlowe pós-moderno que passou muito tempo no site Reddit.
Nessa peregrinação conhece um desenhista e autor de fanzines especializados em lendas urbanas (“o serial Killer de cachorros” ou a mulher fantasmagórica e assassina chamada “Beijo da Coruja”) que possui algum tipo de “teoria unificada da conspiração” e dá a Sam as chaves para descriptografar os códigos presentes na cultura pop – para começar, girar discos de vinil no sentido contrário.
Quanto mais Sam avança nas investigações, mais suspeita que Sarah está envolvida com algo muito obscuro: algum tipo de maquinação de ricos e poderosos que explora e joga fora toda aquela massa de jovens aspirantes a um lugar ao Sol em Hollywood.
O fio da meada será a descoberta de que algumas músicas da banda "Jesus e as Noivas de Drácula" não foram compostas pelo vocalista, mas impostas de forma apócrifa pela gravadora. Nelas, Sam descerá ainda mais em um submundo da cultura pop até descobrir que bandas clássicas da rebeldia juvenil como Nirvana e The Who também foram obrigadas a gravar músicas apócrifas com comandos comportamentais criptografados – a rebeldia juvenil como um tipo de planejada engenharia social.
O fio da meada será a descoberta de que algumas músicas da banda "Jesus e as Noivas de Drácula" não foram compostas pelo vocalista, mas impostas de forma apócrifa pela gravadora. Nelas, Sam descerá ainda mais em um submundo da cultura pop até descobrir que bandas clássicas da rebeldia juvenil como Nirvana e The Who também foram obrigadas a gravar músicas apócrifas com comandos comportamentais criptografados – a rebeldia juvenil como um tipo de planejada engenharia social.
Um sabor gnóstico – spoilers à frente
Apesar da vertiginosa alusão a referências da cultura pop de forma humorística, Under The Silver Lake guarda uma mensagem bem amarga: a angústia jovem de se sentir deslocado e condenado a ser absorvido de forma arbitrária no mundo adulto. Assim como nos filmes anteriores em que David Mitchell fez diferentes aproximações dessa temática, aqui o diretor aborda de forma direta: por mais revolucionária que pareça a cultura juvenil, há sempre um adulto vigiando.
O sabor gnóstico está presente nas duas horas e meia do filme – a realidade é fabricada e não devemos confiar na nossa percepção em um mundo de aparências criptografadas.
Mas toda a paranoica descida pelo buraco de coelho feita pelo pobre Sam levará à mesma descoberta niilista da tripulação da nave do filme Prometheus– os demiurgos que puxam os cordões são tão enlouquecidos quanto nós. E, pior: eles não têm uma razão do porquê gastam tanto tempo e energia para maquinar um sistema. E nada mais querem do que reviver o brilho nostálgico dos antigos faraós que, no final, eram enterrados com sua própria riqueza: ouro e mulheres.
Tudo está conectado. Essa ideia não parece nada original e já foi exaustivamente explorada pelo cinema paranoico e esquizo. Mas a novidade de Under the Silver Lake é no final do fio da meada descobrirmos que o plug está fora da tomada...
Ficha Técnica
|
Título: Under The Silver Lake
|
Diretor: David Robert Mitchell
|
Roteiro: David Robert Mitchell
|
Elenco: Andrew Garfield, Riley Keough, Topher Grace, Chris Gann
|
Produção: Vendian Entertainment, Stay Gold Features
|
Distribuição: GEM Entertainment
|
Ano: 2018
|
País: EUA
|
Postagens Relacionadas |