O pensador alemão Karl Marx teve que escrever muitas páginas para demonstrar que por trás da racionalidade do Capitalismo existia uma gigantesca fantasmagoria – mercadoria, capital e dinheiro apareciam como entidades-fetiches autônomas aos nossos olhos. Hoje, o Marketing e a Publicidade, sem maiores rodeios, diariamente nos mostram que a gestão corporativa e o discurso publicitário se tornaram análogos a seitas ou cultos. O Capitalismo sempre foi uma religião, mas hoje ele é “pentecostal” – é o “american way of management”. O filme mexicano “Tempo Compartilhado” (“Tiempo Compartido”, 2018) mostra as férias frustradas de uma típica família de classe média que acreditava ser possível comprar o Paraíso a preços módicos em suaves prestações. Um resort internacional esconde um propósito sinistro: transformar tanto seus “colaboradores” como clientes em membros de um tipo de seita messiânica no qual o Paraíso religioso se confunde com o próprio turismo.
Deus não morreu. Ele baixou à Terra e se transformou em dinheiro e capital. Em fetichismo, em suma. Por isso, o pensador alemão Karl Marx começou a estudar o processo de produção do capitalismo (na obra máxima “O Capital”) através da mercadoria como a ponta visível de uma gigantesca fastasmagoria que animaria o Capitalismo – mercado, dinheiro e capital ganham vida própria e dominam o homem.
Essa nova religião seria racionalizada por meio da “ciência econômica”, que transforma relações sociais em “econometria” que analisaria a vida, humores e tendências dessas entidades sencientes.
Por muito tempo a Economia criou essa fachada racional. Isso até o “american way of management” (uma estranha mistura de administração com messianismo e puritanismo luterano – aquilo que Arthur Kroker chamava de “Capitalismo Pentecostal”) transformar o mundo da administração capitalista em algo, em muitos aspectos, análogo a seitas ou cultos, com uma mística e impulso religioso: funcionários ou trabalhadores foram convertidos em “colaboradores” submetidos a complexos rituais de iniciação ou “batismos” nos quais “missões”, “valores”, “visões” da corporação são inculcados e “adorados” – isso chama-se “vestir a camisa” para fazer parte de uma “família”, dentro da complexa teologia corporativa.
A performance de “colaboradores” de empresas-religião como Herbalife ou Hinode são a face mais caricata de um movimento corporativo global no qual o endomarketing passa a ser composto por táticas motivacionais de cooptação que apagam as fronteiras entre uma igreja e uma empresa.
Consumo como religião
Mas nesse momento a outra ponta do modo de produção capitalista passa a ser explicitamente “espiritualizada” – atualmente, Marketing e Publicidade estão mobilizados a transformar o consumo em um ato espiritual. Não consumimos mais utilidades, necessidades ou objetos tangíveis. E nem mais as velhas fantasias de poder, erotismo e status. Agora compramos “experiências”, “atitudes”, “renovação” e até “espiritualização”.
Assim como o colaborador dentro da empresa é cooptado pelas estratégias motivacionais-religiosas, também o consumidor se torna um alvo não somente econômico, mas principalmente de cooptação mística-espiritual. Como numa seita. O Marketing chama isso de “economia afetiva”
O filme mexicano Tempo Compartilhado (Tiempo Compartido, 2018), de Sebastián Hofmann e disponível no Netflix, traz para a telona esse tema com um mix de humor negro e traços de distópica ficção científica, somado com elementos do fantástico: a indústria turística, no filme representado por um gigantesco resort internacional, que não pretende apenas vender pacotes turísticos, serviços de hotelaria e praias paradisíacas aos clientes. Pretende também conquistá-los, a partir da manipulação das suas fraquezas, para fazerem parte, para sempre, de uma “família”. Através da exploração das fraquezas psíquicas, domésticas e conjugais dos clientes para gerar conformismo e alienação.
No passado, tudo o que deveríamos nos preocupar era até que ponto a Publicidade supostamente nos empurra apenas fantasias e ilusões supérfluas. Mas Tempo Compartilhado nos alerta para outra ameaça: como a Publicidade, aliada ao Marketing, tenta nos cooptar para algo muito além do mero consumo de produtos ou serviços – dessa vez, corações e mentes imersos em novas experiências místicas e religiosas. Seitas travestidas em inocentes atividades de consumo.
O Filme
O personagem principal é Pedro (Luis Geraldo Mendéz), um marido levando a sua família (e certamente gastando aquilo que não tem, como faz a típica classe média) para um autoproclamado paraíso – o Everfields Resort International, outrora chamado “Vistamar” até ser comprado por uma rede norte-americana de hotéis.
Percebemos que não é apenas um mero passeio com a família: na abertura vemos que Pedro tenta resgatar alguma coisa perdida na relação com a esposa Eva (Cassandra Ciangherotti) – Pedro tenta persuadir sua esposa a fazer sexo, mas ela está mais preocupada em acordar seu filho para irem nadar na piscina.
Mas o que deveria ser um período de férias para buscar reconciliação e a intimidade perdida, acaba frustrado quando Pedro descobre que terá que compartilhar seu apartamento com outra família por um suposto erro de overbooking cometido pelo setor de reservas do resort.
Paralelo a esse aparente drama banal de férias frustradas, conhecemos Andrés (Miguel Rodarte), um funcionário que trabalha há anos no resort e que passou por um sério drama familiar no passado – a morte do seu filho. Com a compra do lugar pela rede norte-americana, Andrés perdeu seu cargo de destaque para se tornar um funcionário comum da lavanderia e limpeza de quartos.
O trauma familiar o deixou psiquiatricamente abalado (toma comprimidos para evitar a depressão e eventuais alucinações) e ressentido com a arbitrariedade do “american way of management”. Enquanto isso, sua esposa Gloria (Montserrat Marañión), que também trabalha na empresa, consegue uma ascensão meteórica no setor de vendas – ela aprendeu a falar inglês e “vestiu a camisa” da principal filosofia de endomarketing da “Everfields”: a questão não é contar histórias verdadeiras para os clientes, mas criar uma relação de confiança. Mais do que a verdade poderia fazer.
Essa é a filosofia cínica que transpassa as palestras motivacionais internas para os funcionários, verdadeiras sessões coletivas de lavagem cerebral - com muitos eufemismos do pensamento positivo neurolinguístico. O espectador começa a suspeitar que há algo de estranho naquele resort: não há um mero objetivo comercial (empurrar para os clientes o “tempo compartilhado”), mas o propósito de criar uma seita de seguidores cegos – sejam “colaboradores” ou clientes.
Pedro também começa a desconfiar dos propósitos profundos da “Everfields”, empurrando-o para a paranoia. Enquanto uma série de acidentes em série o persegue, ele vê na família, com a qual é obrigado a partilhar seu espaço, o cliente prototípico figurado pela publicidade do resort: cafona, conformada, alienada e sempre com um sorriso de autossatisfação kitsch. Quase como se tivesse saído de um comercial de TV de margarina ou matinais, sempre trajados de felicidade em tons pastéis.
Pedro sente-se impotente e desesperado ao ver sua esposa e filho serem seduzidos pelo espírito de manada expresso pela família intrusa e reforçado pelo endomarketing dos “colaboradores” do resort.
Tempo Compartilhado consegue trabalhar elementos do fantástico, surreal e até do horror (em muitos momentos, os planos dos corredores do hotel lembram O Iluminado de Kubrick) em coisas aparentemente banais do cidadão médio.
O Capitalismo Pentecostal
Mas o contraste constante entre a onipresente pirâmide do gigantesco prédio do resort (e seu interior frio e opressivo) com a área externa solar, iluminada com multidões expressando felicidade brega nas piscinas cria a suspeita da existência de alguma trama sinistra da rede norte-americana hoteleira – não se trata de apenas buscar objetivos comerciais. Há algum plano de colonização massiva de corações e mentes, nas duas pontas da produção: “colaboradores” e clientes.
E como o leitor perceberá, o frustrado e ressentido Andrés tem tudo para ser o homem-bomba da narrativa.
Sob cenários de normalidade de férias com a família, o filme tenta apresentar ao espectador as ramificações de como o capitalismo continua a degenerar a experiência humana com falsas formas de alegria e satisfação. E o alvo principal, como sempre, é a ingênua classe média – ela sempre acredita que poderá comprar o Paraíso a preços módicos em suaves prestações.
Tempo compartilhado mostra como esse “capitalismo pentecostal” globalizado procura assumir de vez aquilo que lá no século XIX, Karl Marx, já suspeitava: o Capitalismo é mais uma forma fantasmagórica de religião. Marx teve que escrever muito para retirar os véus da Economia Política que encobriam a verdadeira natureza da atividade econômica.
Hoje, o Marketing e a Publicidade ostentam essa pregação religiosa sem culpas: vestir a camisa de uma corporação ou comprar o Paraíso em prestações é um ato messiânico de fé em estórias que nem mais questionamos se são verdadeiras ou falsas. Bastam criar uma relação de “confiança” conosco.
Ficha Técnica
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Título: Tempo Compartilhado
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Diretor: Sebastián Hoffman
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Roteiro: Julio Chavezmontes, Sebastián Hoffman
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Elenco: Luis Geraldo Mendéz, Miguel Rodarte, Cassandra Ciangherotti, Montserrat Marañon
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Produção: Plano, Circe Filmes
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Distribuição: Netflix
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Ano: 2018
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País: México
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