domingo, janeiro 19, 2020

2013: o ano em que o País tirou o Diabo para dançar na Primavera que jamais chegou


Os quinze primeiros dias de 2020 foram marcados por dois acontecimentos ironicamente ligados no tempo e no espaço, presente e passado: os atos de Movimento Passe Livre em São Paulo (com esperada repressão policial) e o inacreditável vídeo plágio-nazi-Goebbles do demitido secretário da cultura Roberto Alvim. Enquanto os protestos no Centro de São Paulo mostravam que o MPL voltou à sua condição inicial, desconhecida para a maioria dos brasileiros, capaz de mobilizar algumas dezenas de pessoas (nada parecido com 2013 em que foi a centelha da explosão de um barril de pólvora), o vídeo de Roberto Alvim apenas tornou explícito por que aquilo deu nisso – o vídeo simplesmente revelou que a “primavera” das chamadas “jornadas de junho” de 2013 jamais chegou: ao invés de um futuro melhor, abriu caminho para a extrema-direita. Sem perceberem, as manifestações de 2013 tiraram o Diabo para dançar – basta revisitar os bastidores e a localização geográfica dos usuários das redes sociais daqueles dias inebriantes para percebermos que as primeiras notas da trilha de Wagner do vídeo de Roberto Alvim já estavam sendo tocadas pela guerra híbrida.  

Esse ano começou com três atos no centro de São Paulo do Movimento Passe Livre (MPL) contra o aumento da tarifa do transporte público. Bloqueios de policiais com escudos, integrantes do protesto e black blocs tentando invadir estações de metrô, dispersões com bombas de gás lacrimogêneo, coquetéis molotov, faixas negras com os dizeres “R$ 4,40 não dá!” estendidas diante dos policiais, spray de pimenta usados pela polícia para a dispersão, atos de vandalismo, ativistas detidos e levados a distritos policiais...
Mas... nada de imagens aéreas ao vivo e extensivas sobre os protestos, nada de a Globo sacrificar comercialmente seu horário nobre para transmitir protestos aos vivos, nada de black blocs fazendo poses épicas e gestos desafiadores para cinegrafistas e fotógrafos. Apenas coberturas jornalísticas resumidas, sem sonoras, reportagens burocráticas e protocolares. E muito menos, matérias com estimativas da PM e do MPL sobre o número de participantes... Nada parecido com um passado recente no qual o MPL produzia manchetes, estava no centro dos holofotes da política e da mídia, produzindo fotos e vídeos icônicos circulando no Facebook e Twitter.
Parece que o MPL (fundado no Fórum Social Mundial de Porto Alegre em 2005) voltou à sua condição inicial, desconhecida para a maioria dos brasileiros, capaz de mobilizar algumas dezenas de pessoas para causar apenas aborrecimentos no trânsito e ser ignorada pela grande imprensa. 
Os sociólogos e cientistas políticos de plantão em junho de 2013, quando o MPL e os protestos contra o aumentos das tarifas levaram 100 mil pessoas para as ruas de São Paulo na noite do dia 13 (com violenta repressão policial), falavam em “crise de representatividade dos políticos”, “aumento da percepção da corrupção” e de um governo que não conseguia oferecer serviços públicos de qualidade para a população como educação, transporte e saúde. 


Por isso, comemoravam o “novo” na política e que “a classe política deveria aprender a lição”.

Ao que consta, as questões apontadas em 2013 não só permanecem como pioraram, somadas ao desemprego e depressão econômica. Então, o que mudou? Por que então tudo o que vemos são imagens melancólicas dos atos do MPL nas quais ironicamente vemos mais policiais com escudos do que manifestantes? Por que, apesar de tudo, a conjuntura atual não é mais aquela do “barril de pólvora” (como analistas da época descreviam) à espera da “centelha” em que se transformou a primeira semana de junho daquele ano, na qual um obscuro grupo de estudantes universitários acendeu o rastilho que fez explodir o País?


“Democracia vibrante”

Por que? Alguns analistas políticos falam algo sobre “ressaca política”, depois tanta turbulência e polarização que chegou ao grau máximo em 2018, rachando o País ao ponto de relações familiares, conjugais e de amizades ficarem muitas vezes irremediavelmente estremecidas. Ninguém parece mais querer falar em política, protestos ou atos... cansou!
Até as “Jornadas de Junho de 2013”, os únicos protestos comparáveis na história brasileira tinham sido os de até então 21 anos atrás – as manifestações de 1992-93 pedindo o impeachment do então presidente Fernando Collor.
Em termos de opinião local e internacional, o País era celebrado até aquele momento como uma história de sucesso - uma democracia vibrante, uma economia latino-americana que crescia a taxas semelhantes às da China, além de ser o "B" no BRICS. 
De que maneira essa conjuntura se transformou de repente num barril de pólvora à espera do fogo do rastilho que transformasse o Brasil em sinônimo de disfunção, instabilidade e crise sistêmica econômica e moral?
Cientistas sociais no futuro ainda detalharão e documentarão os eventos daquele ano que... deu no que deu. Acompanhamos diariamente as manchetes: cada notícia, em última instância, tem uma relação causal com aquele ano de 2013 – até mesmo o inacreditável vídeo-plágio-nazi-Goebbles do demitido secretário da cultura Roberto Alvim.

Vídeo de Roberto Alvim: dançando com o Diabo

Revisitando aquelas jornadas, principalmente pelo ponto de vista de jornalistas e pesquisadores estrangeiros que cobriram os eventos, podemos reunir aqui e ali indícios, sincronismos, coincidências que apontam para uma cadeia de eventos produzida, provocada, incitada ou plantada – o conceito militar de “guerra híbrida”, na época considerada apenas uma “teoria conspiratória”. 

Mas hoje, admitida com atraso por cientistas sociais à esquerda como, por exemplo, Jessé de Souza com o lançamento em março do livro “A Guerra Contra o Brasil”.   

Revisitando a “Primavera Tropical” 

Vamos ver alguns desses indícios. 
“Foi uma surpresa...  Estamos há oito anos nisso. Este ano esperávamos mobilizações... mas não 100 mil pessoas nas ruas!”, disse Douglas Belome, ativista do MPL, ao repórter da agência de notícias Reuters, Asher Levine, em junho de 2013. Em artigo pela Reuters, o jornalista compartilhava essa surpresa: “o Brasil não teve um histórico recente de protestos políticos e vem de um histórico boom econômico na última década” – clique aqui.
A reportagem de Asher descrevia como a surpresa dos ativistas do MPL tinha uma relação direta com a gradativa perda do papel de liderança do Movimento depois de quatro manifestações naquele mês.
“Vinegar Protests” (“Protestos do Vinagre”) “Tropical Springs Brazil Protests” (“Primavera Tropical Brasileira”), “Jornadas de Junho”, não importava o nome: enquanto a imprensa internacional reportava tudo com espanto e curiosidade, aqui, a partir de um determinado momento, a grande mídia criou uma narrativa de que tudo era natural. Uma decorrência previsível depois dos anos de escândalo do mensalão e de corrupção que supostamente carcomia a qualidade dos serviços públicos.


A chegada dos “Não-ativistas”

Naquele ano o jornalista Vincent Bevins cobria os acontecimentos como correspondente do Los Angeles Times. Nas manifestações de 17 de junho, Bevins começou a perceber uma mudança no tom dos protestos: não-ativistas estavam começando a aparecer:
Cobri a primeira manifestação em que não-ativistas começaram a aparecer. Quando a marcha se aproximou da famosa ponte Octávio Frias de Oliveira, em São Paulo, uma discussão eclodiu na minha frente. De um lado, quatro ou cinco jovens punks magrelos e politicamente articulados, vestindo vermelho e preto; do outro, um grupo de recém-chegados agitando a bandeira do Brasil. Os punks disseram aos recém-chegados que a bandeira não passava de um símbolo nacionalista vazio e que, se não fizessem nenhuma exigência específica ao governo, sua postura poderia facilmente deslizar para o fascismo. (...) Os manifestantes acreditavam que os recém-chegados não tinham uma mensagem real - apenas acenar a bandeira era semelhante a não protestar, ou talvez ainda pior, sentiam os punks. Eles acreditavam que ali era o lugar para darem uma lição sobre a bandeira, aparentemente com um didático espírito de solidariedade; os recém-chegados, em resposta, disseram aos punks para calarem a boca - Eu testemunhei essa cena por acaso, mas outros participantes relataram ter presenciado tensões semelhantes em toda a cidade - clique aqui.
Para Vincent Bevins, progressivamente os confrontos entre “não-ativistas” e o MPL começaram a se repetir. Como no dia 21 de junho quando, na Avenida Paulista, presenciou manifestantes corpulentos expulsando violentamente jovens esquerdistas que compunham grande parte das marchas originais. “Os homens gritavam ‘Sem partidos! Sem partidos!’... Eles insistiam que suas demandas não eram nem de esquerda nem de direita – eram simplesmente brasileiros”.
Sincronicamente, nesse momento a grande mídia deu uma violenta guinada na interpretação dos acontecimentos quando esses novos manifestantes (“não-ativistas”) entraram na briga.
Depois dos primeiros dias em que foi pega de surpresa e passou a acusar os primeiros atos como “carnaval de vandalismo”, “crime” e “burrice política” (Arnaldo Jabor, por exemplo, acusava de “ignorância misturada com rancor”), simultaneamente à presença dos “não-manifestantes” que passaram a dominar o ritmo das marchas, a TV Globo passou a compará-los aos “caras-pintadas” do impeachment de Collor. 
Começou a convidar os espectadores a enviar seus melhores vídeos sobre os protestos e a caprichar nos enquadramentos de forte carga retórica - torre da FIESP na avenida Paulista iluminada em verde e amarelo diante de um mar de faixas e cartazes. 
Um cinegrafista enquadrava uma criança que dava flores para cada manifestante que passava na avenida Faria Lima... Nada parecido com a atual cobertura protocolar dos protestos contra o aumento das tarifas.


Cenas de depredação e incêndios provocadas claramente por truculentos agitadores sempre mostrados em tomadas aéreas por helicópteros para dar um impacto ainda maior de caos e anomia, emendadas por comentários sobre perda do controle federal, repercussão internacional das manifestações, aumento do dólar e assim por diante em um delirante discurso metonímico.

A geografia das redes sociais

“Não é apenas pelos 20 centavos! Muda Brasil!”. Quando o criador e CEO do Facebook, Mark Zuckenberg, postou em seu perfil essa mensagem de apoio às manifestações brasileiras, ficou claro naquele momento que algo mais estava em jogo, além do Facebook e do Twitter serem consideradas as principais ferramentas nas mobilizações das ruas – clique aqui.
O artigo dos pesquisadores Marco Basto, Raquel Recuero e Gabriela Zago, “A Spatial Analysis of the Vinegar Protests in Brazil”, apresenta os resultados de uma investigação empírica sobre a relação entre a localização geográfica dos manifestantes (por hashtag, geolocalização e perfil) que participaram das marchas de protestos de 2013 no Brasil e a localização geográfica dos usuários que tuitaram os protestos.
Uma das evidências encontradas foi de que os usuários que postavam os protestos nas redes sociais estavam geograficamente distantes dos protestos nas ruas e que usuários de áreas geograficamente isoladas nas hashtags do Twitter para participar remotamente das manifestações.
As principais conclusões deste estudo oferecem uma contribuição valiosa para o debate sobre o ativismo da mídia e podem ser resumidas em duas conclusões. Em primeiro lugar, a geografia dos protestos nas ruas é consideravelmente distante da geografia dos usuários que twittam os protestos (distância de 768, 912, 930 quilômetros da localização dos fluxos de atividades de hashtag, perfil ou geocódigo, respectivamente). De fato, as análises relatadas neste estudo fornecem evidências empíricas de que as geografias do ativismo político on-line e no local são em grande parte diferentes. Esses resultados apoiam e ampliam as descobertas (...) de que a proximidade geográfica teve um impacto mínimo sobre o que os usuários se comunicavam. Os resultados também destacam que a mídia coloca mais ênfase no contexto político nacional do que na localidade real em que os usuários twittaram suas mensagens (BASTOS, Marco; RECUERO, Raquel; ZAGO, Gabriela, “A Spatial Analysis of the Vinegar Protests in Brazil", First Monday Journal, N. 3, March, 2014 - clique aqui).

As redes sociais foram menos “ferramentas de mobilização” ao estilo flash mobs. Os protestos foram remotamente repercutidos para criar uma ênfase nacional, reforçando a narrativa que estava em andamento pela grande mídia. Muito mais uma estratégia elaborada de “agenda setting” do que parte de uma “manifestação horizontal e organizada através das redes sociais”, narrativa predileta da grande mídia para criar a mitologia da “espontaneidade” dos protestos.
Fez parte da estratégia de propaganda dessa guerra híbrida criar a narrativa das “manifestações horizontais, sem lideranças, convocadas espontaneamente através das redes sociais” – esse foi o script de todas as “primaveras coloridas” ao redor do mundo, dos países árabes a Hong Kong. 
Como demonstram os dados empíricos da análise espacial da geografia dos protestos de 2013 nas redes sociais, a principal função dessa estratégia digital foi nacionalizar as manifestações locais – colocar as demandas locais dos transportes públicos firmemente na agenda política nacional para abrir espaço às demandas mais agressivas contra o governo federal.
Dessa maneira, até o final de junho o MPL perdeu amplamente o controle das manifestações que passaram a ter um forte appeal de classe média, anti-esquerda. 
Em resposta, tentou-se um movimento coordenado da esquerda para recuperar a liderança do movimento, incluindo uma declaração do MPL de que não mais convocaria para as manifestações de rua diante do sucesso em impedir o reajuste das tarifas do transporte público.
Mas já era tarde. A grande mídia queria líderes para falar pelos manifestantes. E jovens de novos movimentos que vieram na esteira das redes sociais, como o Movimento Brasil Livre (MBL) lhes forneceu exatamente isso.
Muitos acreditam que os manifestantes de junho de 2013 tiveram as melhores intenções possíveis. Em uma entrevista coletiva no dia 20 de junho, três manifestantes do MPL, exaustos, em uma sala ocupada pela mídia nacional e internacional, confessaram: “ainda não tivemos tempo para digerir tudo isso, tudo o que sabemos é que estamos felizes”.
“Atualmente, os protestos que ocorrem não articulam uma visão para uma sociedade melhor. São apenas pedidos de ajuda. Estamos sofrendo uma surra todos os dias ”, diz Carolinne Luck, natural do Rio de Janeiro e que participou das primeiras manifestações de 2013. "Para ser sincera, não tenho ideia se o que fizemos naquele ano ajudou ou prejudicou o país".
Mas uma coisa é certa: 2013 foi o ano em que o Brasil tirou o diabo para dançar!
Com informações de Atlantic, Reuters, BrasilWire, Americas Quartely, First Monday Journal.

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