quinta-feira, janeiro 03, 2019

O trabalhador precarizado vai ao Paraíso em "Sorry to Bother You"

Uma surreal comédia de humor negro com realismo fantástico e ficção científica inspirado no mundo do telemarketing. “Sorry to Bother You” (2018), filme de estreia de Boots Riley, pode ser tanto o momento atual como aquilo que nos espera em um futuro muito próximo: modernos trabalhadores precarizados que viram máquinas cognitivas de vendas sem quaisquer garantias ou direitos. Cassius Green é um jovem excluído negro que descobre a chave para a ascensão corporativa na RegView, a gigante do telemarketing: encontrar a “voz de branco” interior. Mas tal como “Fausto”, de Goethe, o Diabo vai cobrar algo de volta – algo assustador e surreal que definitivamente fará o protagonista cair “na real” e perceber o cenário entorno.

O filme italiano A Classe Operária Vai ao Paraíso (1971) foi emblemático dentro da cinematografia política daquela década. A trajetória de Lulu (Gian Maria Volonté), um operário de alta produtividade e alheio ao sindicalismo, que via nos objetos de consumo o prêmio pela sua dedicação aos patrões, era o sintoma da grande mudança tecnológica do capitalismo naquele momento: inovações na qual o homem deveria se adaptar à máquina para aumentar a produtividade – a tal ponto que Lulu passa a ter uma relação fetichista e até erótica com as máquinas.
Quarenta e sete anos depois, o filme Sorry to Bother You (“Desculpe por Incomodá-lo”, 2018), nos apresenta uma narrativa análoga ao filme clássico italiano: um trabalhador de alta produtividade, apegado à meritocracia e alheio a qualquer forma de luta coletiva por direitos, é aos poucos forçados a ver finalmente a injustiça ao seu redor. 
Mas agora, o cenário político e tecnológico do capitalismo é completamente diferente: não há mais um partido político, como o Comunista italiano, um Estado que garanta direitos trabalhistas ou proteção social, e há também uma grande massa de desempregados cuja única saída é o trabalho precarizado em telemarketing ou aceitar as condições de trabalho escravo de uma empresa chamada “Sem Preocupação” (“WorryFree”) – uma gigante corporativa que agencia mão de obra farta e barata para empresas de telemarketing e fábricas: em troca, garante alojamento e alimentação precárias em alojamentos padronizados para os “escravos-colaboradores”.


Saga faustiana

Na mídia, a WorryFree vira um estilo de vida glamourizado pela MTV, enquanto na TV crescem programas de gincanas e prêmios nos quais o participante tem que se humilhar primeiro (p.ex., ser espancado ao vivo por uma gangue) para ganhar o prêmio depois... se sobreviver.
 Sorry to Bother You é uma saga faustiana embalada em distopia e humor negro: um homem que vende sua alma para o sucesso acreditando que sua ascensão meteórica na empresa de telemarketing RegView nada mais é do que um prêmio pelo esforço pessoal de um jovem negro que tinha tudo para se tornar alguém excluído do sistema – aquele que nem mais para ser explorado o sistema tem interesse.
Mas tal como na fábula “Fausto”, de Goethe, o Diabo vai cobrar algo de volta – algo assustador e surreal que definitivamente faz o protagonista cair “na real” e perceber o cenário entorno.
 Se todo filme é um documento do espírito de uma época, Sorry to Both You é um retrato irônico e cínico desse espírito de regressão generalizada de início de século: se no filme político clássico italiano o homem se transforma em mero apêndice da máquina para unicamente amá-la e aumentar sua produtividade, no século XXI as máquinas já nem precisam mais do homem. Reconfigurado, agora o homem tem que se transformar numa máquina cognitiva para vender aquilo que a tecnologia produz. E nessa nova forma de exploração “soft”, o operário se transforma num indivíduo “livre” de seus direitos e garantias sociais. Sem saber o que perdeu, poderá pular de cabeça no sistema sem culpas.


O Filme

Cassius Green (Lakeith Stanfield) é um desempregado negro que mora em uma garagem sublocada pelo seu tio, com sua namorada Detroit (Thessa Thompson), uma aspirante a artista plástica que nada consegue, a não ser bicos para girar placas de ofertas nas esquinas. 
Para começar, os nomes dos protagonistas já são irônicos: ele, uma mistura de lutador Cassius Clay, que batalha para conseguir “verdinhas”, dólares; e ela, a cidade industrial norte-americana em ruínas cuja indústria automobilística acabou, deixando o desemprego e a desesperança como heranças.
   A sequência de abertura já mostra para quê Sorry to Bother You veio – numa entrevista de emprego em uma vaga de telemarketing na RegView percebemos que Green parece pouco qualificado. De imediato, o entrevistador fareja que o entrevistado falsificou o currículo. Mas pouca importa! Afinal, a tentativa de enganar o entrevistador demonstra que: (a) Cassius Green tem “espírito de iniciativa”; e (b) sabe ler e escrever.
Se sabe ler, obedecerá a única regra da RegView: “siga o roteiro!” – um conjunto de regras de como persuadir e seduzir incautos a adquirir produtos inúteis pelo telefone. 
O trabalho é duro, estressante, e as metáforas de abordagem ao consumidor são violentas e beligerantes – você tem que “marcar” e “ensacar”, assim como se faz com cadáveres em necrotério. As reuniões “motivacionais” da RegView são verdadeiras aulas sobre o novo espírito do capitalismo pós protestantismo weberiano.


Sem conseguir resultados e sem grana para pagar suas contas, Cassius Green ouve um conselho do seu amigo de trabalho chamado Langston (Danny Glover): ele precisa encontrar sua “voz de branco” interior – uma voz que passe a impressão de que ele não precise daquilo para viver, de que Cassius Green é apenas um vendedor “descolado”. 
É o momento da aliança faustiana com o Diabo: rapidamente Green começa a subir a escala corporativa, para se transformar num “Power Caller”, com elevador próprio e, ao invés das estreitas baias num escritório coletivo, uma confortável sala pessoal.
Paralelo a tudo isso, cresce o movimento da “Facção do Olho Esquerdo”, movimento de protesto terrorista contra o método de escravização soft da WorryFree – cujo proprietário, Armie Hammer (Steve Lift), tem o apoio midiático com presenças no programa da Ophra Winfrey (bom!... sabendo-se que ela já deu visibilidade até para o João de Deus...) e coberturas jornalísticas na MTV.


Intersecção Arte e Ativismo

Como o operário Lulu em A Classe Operária Vai ao Paraíso, Cassius Green vira as costas para a greve e a tentativa dos colegas da RegView criarem um sindicato – afinal, agora ele é “bom em algo que faz”, tem casa própria e um carrão. Mas, a “voz de branco” começa a dominá-lo, causando repulsa em sua namorada, que passa para o lado da Facção do Olho Esquerdo.
Cassius Green terá a chance de chegar ao topo, em uma festa na mansão de Armie Hammer, cujo gênio corporativo lhe fará uma proposta assustadora que irá beirar as distopias de ficção científica, revelando-se até onde a máquina de exploração pode chegar. A partir desse ponto, o filme passa a ter conotações mais estranhas e surreais, cujo filme A Classe Operária Vai ao Paraíso jamais poderia imaginar.
Nas entrevistas, o diretor Botas Ridley diz que o filme é uma tentativa de encontrar uma intersecção entre arte e ativismo. A inspiração para escrever o roteiro veio depois de um show com um ex-operador de telemarketing e vocalista do grupo político de rap “The Coup”, envolvido em ocupações em Oakland, EUA – “Sorry to Bother You diretor Boots Riley on Art, Activism and optimism of fighting back”, Timeclique aqui.
Mas a grande ironia de Sorry to Bother You é entender a inexistência de uma “mão invisível” de Adam Smith que magicamente harmonizaria os apetites egoístas dentro do capitalismo. Para todos os interesses, seja a ambição corporativa, a meritocrática “voz de branco” de Cassius Green, o voluntarismo dos grevistas da RegView ou os ataques terroristas da Facção, todos parecem fazer a coisa certa.
Para Armie Hammer, tudo que faz na WorryFree é “racional”; e para Cassius Green, tudo é uma questão de mérito individual. O problema é que a soma das “razoabilidades” individuais não fecha. E tudo o que temos no final é caos, disfunções, desumanização e violência.
Sorry to Bother You vale mais do que mil manifestos políticos. Uma pequena amostra de como uma comédia de humor politicamente incorreto pode estar a serviço das denuncias às mazelas do atual hiper-capitalismo sem travas, culpa ou moralidade.


Ficha Técnica 


Título: Sorry to Bother You
Diretor: Boots Riley
Roteiro:  Boots Riley
Elenco:  Lakeith Stanfield, Tessa Thompson, Danny Glove, Armie Hammer, Steven Yeun
Produção: Cinereach, MACRO
Distribuição: 20th Century Fox
Ano: 2018
País: Reino Unido/EUA

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