quinta-feira, julho 27, 2017

Curta da Semana: "Tango" - uma curiosa experiência sobre tempo e memória


Premiado com Oscar de melhor animação em 1983, o curta metragem polonês “Tango” (1981) é uma curiosa experiência de percepção, tempo e memória por meio de efeitos de edição com a incipiente tecnologia digital da época: em um quarto acompanhamos ações em “loop” de personagens que aos poucos vão entrando em cena, até que 36 pequenos contos paralelos (uma mulher troca de roupa, um homem tenta trocar uma lâmpada, um ladrão rouba um pacote etc.) preenchem o pequeno espaço em um plano ininterrupto de oito minutos. “Tango” foi uma profética experimentação: antecipou as principais características atuais das nossas relações com o ciberespaço – simultaneidade, instantaneidade e ubiquidade. Mas principalmente o destino das telas (da TV aos smartphones) no futuro: de janelas que deveria estar abertas para o mundo real se transformaram em simulacro que esvazia a permanência e a memória.

O curta Tango de 1981, do polonês Zibigniew Rybczynski, ganhou o Oscar de melhor animação em 1983. São oito minutos de um plano ininterrupto. Nele, a cada instante um novo personagem entra em cena. Até que 36 personagens preencham um único quarto com ações sobrepostas e em loop. São ações de rotina - trocar de roupa, colocar um bebê em um berço, um ladrão que rouba um pacote, alguém que tenta trocar a lâmpada e toma um choque etc.

As inacreditáveis sobreposições criam camadas de diferentes gêneros que gradualmente torna-se hipnótico, acompanhando o ritmo do tema musical. A certa altura os personagens parecem interagir para ainda permanecerem cada qual nas suas bolhas temporais e fantasmagóricas.

Tudo através do poder da edição e prestidigitação digital em uma época cuja tecnologia ainda era incipiente. O diretor explora os efeitos da repetição, rotina e condensação do tempo e espaço.

O curta Tango tornou-se um curioso estudo de percepção e memória do espectador diante de um produto fílmico, com novos personagens emergentes em primeiro plano e fundo. Tentamos manter o controle mental do acompanhamento das ações, mas eventualmente as sobreposições sobrepujam qualquer tentativa de controle.

Zibigniew Rybczynski

Hipertexto e interatividade


Olhando daqui do século XXI, podemos entender o curta como uma das primeiras experimentações de interatividade em uma época em que os primeiros vídeo jogos começavam a aparecer e a passividade da recepção das mídias tradicionais ainda era dominante – em Tango, cabe ao espectador decidir por onde seus olhos devem vagar.

Por isso, é impossível assisti-lo uma única vez: cada nova recepção cria novas experiências, como fosse um seminal hipertexto. São pequenos contos paralelos condensados em um único plano para aos poucos descobrirmos seus finais, as intenções de cada personagem e como, de alguma maneira, eles podem se interagir no tempo.

Algo como uma quadro expressionista abstrato de Jackson Pollock: numa primeira vista o conjunto parece um movimento caótico e aleatório de formas. Mas aos poucos percebemos que há uma espécie de caos coreografado com surpreendentes padrões que saltam repentinamente dos movimentos.

Se em Tango podemos encontrar os princípios da interatividade e do hipertexto do futuro ciberespaço e Internet, o curta pode ser também considerado uma metáfora do mundo eletrônico e digital: nele tudo pode se localizar em um mesmo lugar e ao mesmo tempo. A tela como um recipiente infinito, sem limites para o que pode conter.

Se o espaço físico impede que tudo esteja simultaneamente no mesmo lugar, a tela é o seu contrário. Aqui a noção de espaço foi abolida.


Ciberespaço e memória


O que o curta Tango antecipou em 1981 foi a ontologia do ciberespaço – o espaço físico foi abolido pela instantaneidade, simultaneidade e ubiquidade. Passamos a viver o tempo real, enquanto para nós o espaço se transformou em obstáculo, estorvo, perda de tempo.

Na metáfora do curta, está desde o efeito zapping (a ansiedade do espectador que salta de canal em canal de TV sem querer escolher qual atração assistir) está o efeito atual da dupla tela com nossos smartphones e dispositivos móveis – somos capazes de gerenciar diversos eventos simultâneos em um único “espaço”. Espaço físico, aliás, no qual nunca estamos totalmente devido a constante navegação no ciberespaço.

Por isso, o curta Tango também antecipa o futuro mal estar do mundo digital – a ansiedade de parecer que sempre estamos perdendo algo, alguma informação, algum evento, algum bite de dado do qual poderemos nos arrepender no futuro. A obrigação compulsiva de estarmos 24 horas plugado, conectado, on line.

Deixamos de habitar o espaço para tentar viver no tempo. A permanência e memória são consumidos pela aceleração do tempo real.

Mas também em Tango há uma crítica latente dessa aparência da variedade e riqueza de informações do ciberespaço, como um contraponto à lentidão e ausência de acontecimentos no espaço real, na geografia – o aparente caos e aleatoriedade daquele pequeno quarto esconde padrões, repetição, um reencenar tedioso de situações cotidianas.

No final, o ciberespaço é vazio de conteúdo. Os acontecimentos no fundo são fáticos, repetitivos, servem apenas para nos manter conectados sob o pânico de perdermos alguma novidade. Tão entediante quanto ficarmos diariamente cabisbaixos olhando para as telas dos smartphones na esperança de algum acontecimento, game ou um link compartilhado nas redes sociais possam acrescentar algo para nós mesmos.

Ainda assistido no século XXI, Tango de 1981 é um curta surpreendentemente atual: não apenas por explorar o potencial artístico da edição e linguagem digital, mas também por condensar em uma narrativa de oito minutos tudo o que viria nas próximas décadas – o destino da tela: de janela que deveria estar aberta para o mundo real para se transformar em simulacro que esvazia a permanência e a memória.


Ficha Técnica

Título: Tango (curta-metragem)
Diretor: Zibigniew Rybczynski
Roteiro:  Zibigniew Rybczynski
Elenco:  animação
Produção: Film Polski, Studio Se-Ma-For
Distribuição: Vimeo
Ano: 1981
País: Polônia

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