domingo, julho 16, 2017

O místico e o mágico acertam contas com o Ocidente em "Nem o Céu Nem a Terra"


Em posto avançado militar francês em um lugar remoto, montanhoso e desolado na fronteira entre Afeganistão e Paquistão, soldados esperam a chegada de um comboio da OTAN para retirá-los de lá e leva-los para suas famílias. Repentinamente, no meio das noite solitárias e frias, soldados começam a desaparecer de seus bunkers de observação. Tudo que têm como suspeitos é uma aldeia de criadores de ovelhas e soldados talibãs, que também começam a ser vítimas dos misteriosos desaparecimentos.  Essa é a coprodução franco-belga “Nem o Céu Nem a Terra”(Ni Le Ciel Ni La Terre, 2015), uma fábula do Realismo Fantástico no qual é descrito o fracasso de toda racionalidade e da tecnologia militar de vigilância e informação diante de um inimigo invisível e incompreensível para a lógica Ocidental: o místico e o mágico que o avanço da Razão Ocidental julgou ter eliminado através do “desencantamento do mundo”. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende. 
 
Desde os filmes MASH (1970) e Apocalipse Now (1979) os filmes de guerra não poderiam mais ser os mesmos. Das visões de Robert Altman sobre uma equipe de cirurgiões que debochavam do Comando do Exército em plena Guerra do Vietnã a uma figuração feita por Coppola dessa mesma guerra como loucura e delírio lisérgico, a temática da guerra no cinema chegou ao máximo de questionamento crítico.

Com o início da guerra antiterror após os ataques aos EUA em 2001, a abordagem da guerra no cinema sofreu um radical retrocesso, limitando-se a peça de propaganda das ações norte-americanas no Oriente Médio. Filmes como Guerra ao Terror (2008), Soldado Anônimo (2005), Green Zone (2010) e até produções como as franquias da Marvel Comics (na estreia de Homem de Ferro, Tony Stark vira refém de terroristas no Afeganistão) fazem parte de uma elaborada estratégia de engenharia de opinião pública na qual Hollywood transformou-se (mais uma vez) em braço midiático do Departamento de Estado dos EUA.

Mas em toda essa enxurrada de filmes sobre batalhas de heróis dos EUA ou da OTAN no Iraque e Afeganistão, um filme destaca-se como contraponto: Nem o Céu Nem a Terra (2015), longa de estreia do diretor Clément Cogitore sobre soldados franceses estacionados em um lugar inóspito na fronteira entre Afeganistão e Paquistão.

 Não se trata mais aqui de ações heroicas, coragem, arrojo e inteligência contra um inimigo claro e visível dentro dos cânones do clichê hollywoodiano dos RAVs  (Russos, Árabes e Vilões em geral). O inimigo, se é que existe, é invisível. Como o título nos informa, um inimigo situado em algum lugar entre o Céu e a Terra.


O elementos do Fantástico e do Mistério são inseridos em um ambiente no qual armas, binóculos de visão noturna, fotos de satélite e toda a parafernália logística e tecnológica da máquina de guerra Ocidental se tornam impotentes diante do insólito das lendas de afegãos criadores de ovelhas em uma pequena vila em algum lugar remoto no fim do mundo.  

Por que um a um dos soldados daquela companhia desaparecem sem deixar vestígios? Sem violência, tiros ou reféns. Tudo o que aquele posto avançado militar tem a seu favor é a alta tecnologia, armas e a fé católica.

De um lado, a racionalidade do capitão que tenta manter seus homens unidos. E do outro a fé cristã de seus homens, incapazes de compreender o que ocorre.

O filme Nem o Céu Nem a Terra mostra uma interessante argumento de como a tecnologia bélica Ocidental e o catolicismo tornam-se sem sentido e inúteis numa terra dominada pela magia e misticismo – o catolicismo expurgou da Terra mitos e lendas como excrescências pagãs e deixou o mundo vazio de sentido. Para depois ser explorado pela Razão, Ciência e Técnica por um processo que Max Weber (1864-1920) chamou de “desencantamento do mundo”. E em seguida ser dominado e destruído pela guerra e a civilização. Mas o inexplicável e o Fantástico podem retornar para fazerem o acerto de contas. 


O Filme


Nem o Céu Nem a Terra é um filme de guerra praticamente sem ação. Filmado na terras áridas, isoladas, rochosas e montanhosas do Marrocos, o filme acompanha soldados franceses em um posto militar avançado no meio do nada no Afeganistão. Apenas têm como companhia uma vila de criadores de ovelhas e alguns soldados do Talibã, que criam algumas cenas mais tensas do filme.

Mas há um clima, por assim dizer, de final de festa. Todos os soldados estão alí à espera do comboio da OTAN para serem retirados de lá, num movimento de retirada de todas as forças daquele país. O capitão Antarès Bonassieu ( Jérémie Renier) luta para manter o espírito da tropa diariamente em alta numa atmosfera de lassidão geral pela absoluta ausência de propósito nos dias que restam.

Antarès é um líder que luta diariamente para manter os soldados ativos e vigilantes, passando as noites monitorando as montanhas rochosas e desoladas com seus binóculos e telescópios de visão noturna.

Porém, inesperadamente a ausência de propósito da lugar à perplexidade: depois de um encontro com um aldeão e sua ovelha, dois soldados em um bunker avançado nas montanhas desaparecem sem deixarem nenhum sinal – foram mortos? Sequestrados?

Obviamente, as suspeitas do capitão Antarès caem no pequeno vilarejo. Buscas nas casas e interrogatórios com os moradores nada revelam. As coisas começam a ficar mais estranhas quando sabemos que também alguns talibãs que vivem nas montanhas também desapareceram nas mesmas misteriosas circunstancias.


Definitivamente o pânico é deflagrado quando mais um soldado desaparece, no mesmo bunker, apenas no meio tempo em que seu companheiro saiu para urinar entre as pedras.

Racional e prático, Antarès exorta: “temos que atacar!”. Mas atacar quem? Seu “inimigo” é silencioso e invisível. E o pior: como justificar para as famílias dos soldados e ao Alto Comando os bizarros desaparecimentos? Como dar uma explicação racional e lógica, principalmente diante dos seus subordinados cujo crescente medo é um preocupante elemento de desordem e de quebra da autoridade do capitão.

Uma jornada do racionalismo ao misticismo


Toda a tecnologia de vigilância e informação disponíveis para uma unidade da OTAN como câmeras, visão noturna e imagem de satélites são inúteis para resolver o mistério: os soldados estão mortos? Viraram reféns de algum “povo das cavernas”? Ou simplesmente, sumiram no ar?

O contraponto à racionalidade de Antarès é a religiosidade do soldado William Denis (Kévin Azaïs), que mantém um pequeno altar com cruz e velas.

Acompanhamos a jornada psicológica e emocional extrema do Capitão Antarès, que o conduz do racionalismo teimoso ao misticismo obsessivo – ele passa a acreditar que os soldados desaparecem quando dormem, principalmente depois de ouvir o relato das lendas locais de um jovem aldeão: aquela região é “terra de Allah”. Todos que ali deitam no chão e dormem, Allah os leva para um outro mundo, um mundo “ao lado e ao redor do mundo”. Portanto, nem no céu e nem na Terra.


Por isso, os soldados são obrigatoriamente privados do sono, criando uma tensão ininterrupta: as longas noites de silêncio e tensão em um lugar desolado e arrasado pela guerra no fim do mundo são os componentes perfeitos para a realidade se misturar com o delírio.

O desencantamento do mundo


 Nem o Céu Nem a Terra apresenta diversos subtemas como a situação do líder que falha em apresentar alguma explicação lógica a seus subordinados e os efeitos da privação do sono, tal como no filme Insônia (2002) com Al Pacino.

Para aqueles espectadores que buscam em filmes do gênero Fantástico ou Mistério o terror, sustos e a solução de enigmas, poderão se decepcionar com esse filme cuja narrativa é lenta, na qual a tensão vai sendo construída passo a passo. Porém, sem entregar uma solução. Parece que para o diretor a solução do mistério pouco importa – Clément Cogitore está mais interessado em estudar os efeitos sobre aqueles que tentam enfrentá-lo.

Mas, principalmente, mostrar a absoluta impotência da racionalidade tecnológica e a religiosidade diante da dimensão mística e mágica desse mundo.


O sociólogo Max Weber falava em “desencantamento do mundo” no qual o sujeito moderno despe o mundo dos costumes e crenças. Uma “desmagificação do mundo” no qual, um dos lados, é a eliminação do místico e do mágico no interior das religiões, sendo substituída pela prática religiosa fundada na ética.

Esse processo esvaziou o mundo de qualquer sentido imanente, deixando livre para a ciência e a técnica explorarem um real transformado em deserto, para depois destruí-lo através da guerra.

Nem o Céu Nem a Terra é uma fábula dos destinos do psiquismo Ocidental nesse processo weberiano de racionalidade e dominação burocrática do mundo. E nada mais simbólico do que aquelas paisagens montanhosas desoladas nas quais um destacamento militar francês enfrenta a vingança dos mistérios desse mundo.


Ficha Técnica

Título: Nem o Céu Nem a Terra
Diretor: Clément Cogitore
Roteiro:  Clément Cogitore
Elenco:  Jérémie Renier, Swann Arlaud, Kevin Azaïs, Marc Robert
Produção: Kazak Productions, Tarantula
Distribuição: Wolf Films
Ano: 2015
País: França, Bélgica

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