sábado, julho 29, 2017

Sexo e a nova sensibilidade da maldade em "Corrente do Mal"


Outrora símbolo da indústria automobilística dos EUA e agora abandonada e repleta de desempregados, Detroit tornou-se nesse século cenário de uma série de filmes que transitam entre o gótico, o terror e o mistério. “Corrente do Mal” (“It Follows”, 2014) é mais um filme que tem a cidade como cenário: fantasmas de pessoas mortas assombram não necessariamente pessoas da cidade, mas adolescentes do subúrbio que fazem sexo – podem ser “contaminados” pelo Mal transmissível sexualmente. Uma espécie de maldição no qual a vítima passa a ser perseguida por entidades assassinas. E a única forma de se livrar do Mal é fazendo sexo com outra pessoa para que a corrente continue. O diretor David Mitchell leva ao paroxismo a nova representação do Mal iniciada no cinema com a disseminação dos zumbis: o Mal não mais determinado ou centrado numa monstruosidade, mas agora indeterminado, mutante e que se dissemina de forma viral, exponencial e catastrófica. Há uma ironia em eleger Detroit como cenário dessa nova ontologia do Mal – os fatores socioeconômicos que levaram a decadência da cidade são os mesmos que fizeram emergir essa nova sensibilidade da maldade. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

A cidade de Detroit, EUA, outrora símbolo do progresso técnico-industrial com as grandes fábricas de automóveis, hoje é o símbolo pós-moderno dos resultados da globalização e desindustrialização – as grandes fábricas foram para outros países, enquanto Detroit se tornou vazia, com casas em ruínas e indigentes e desempregados vagam sem destino nas ruas.

Curiosamente nesse século XXI, Detroit também se tornou cenário de diversos filmes, em sua maioria transitando entre o gótico, o terror e o mistério combinado com nostalgia e estética vintage: Amantes Eternos (2013) onde um vampiro milenar vive recluso cercado de discos de vinis guitarras antigas e equipamentos de som analógicos, amaldiçoando YouTube  e redes sociais;

Lost River (2014) com uma estética vintage que emula Veludo Azul de David Lynch e filmado em Detroit como uma cidade fictícia em ruínas na qual os poucos moradores sofrem uma espécie de maldição que os impedem de sair de lá; O Mistério da Rua 7 (2010) onde demônios surgem na Detroit do século XXI para punir a humanidade.

E agora temos também Corrente do Mal (It Follows, 2014), filme indie de David Robert Mitchell, que mistura terror, a decadência urbana da cidade e muita nostalgia vintage. Com os incentivos fiscais distribuído pelo Estado de Michigan, o governo tenta agitar um pouco os negócios locais. Mas a atração mesmo são as ruínas transformadas em atmosfera sombria, como faz Corrente do Mal.
Mitchell retorna a alguma época nostálgica dos subúrbios de classe média dos anos 70-80 com seus adolescentes em bikes BMX - a não ser por um estranho dispositivo de e-book que uma adolescente usa em forma de concha, para ler Dostoievski, dando uma estranha ambiguidade temporal.

O diretor também mexe com as convenções do gênero terror dos filmes dessa época como Noite dos Mortos Vivos ou Hora do Pesadelo. Principalmente a questão do sexo, elemento chave na descoberta adolescente, mas que nos filmes de terror o elemento desencadeador do Mal: quem faz sexo, morre!


Porém, Mitchell cria uma representação ambígua para a sexualidade: é o veículo do Mal (numa óbvia referencia óbvia a AIDS, motivo do clichê moralista do sexo no gênero terror). Mas, ao mesmo tempo, pode ser uma forma de escapar do perigo – pelo menos momentaneamente.

 Mas é do ponto de vista da Cineteratologia (o estudo das representações da monstruosidade e do Mal no cinema) que Corrente do Mal vai abrir um novo campo para o gênero: uma ambígua e indeterminada representação do Mal.

Se em postagens anteriores este humilde blogueiro discutiu a tese da mudança da ontologia do Mal no cinema a partir da chegada da praga zumbi, criando a chamada “monstruosidade informe” (ao contrário da “disformidade” clássica), em Corrente do Mal temos o paroxismo dessa informidade: o Mal que se dissemina nesse mundo através do sexo de uma forma não apenas viral – é indeterminado, cuja maldição dissemina entidades perseguidoras cuja natureza é objetiva/subjetiva, visível/invisível criando situações de terror e tensão pela própria imprevisibilidade narrativa.

O Filme


Corrente do Mal acompanha Jay (Maika Monroe), uma adolescente essencialmente tímida e taciturna que mora em um subúrbio arborizado de Detroit junto com seus amigos adolescentes, fãs de filme sci-fi e terror B dos anos 1950.  

A narrativa é constantemente pontuada pela trilha musical com sintetizadores vintage dos anos 1980 do compositor chamado Disasterpiece – propositalmente emulando a trilha dos filmes de terror dessa época, para criar um distanciamento irônico necessário para o filme fazer uma metalinguagem dos clichês do gênero.

Até que um dia perde a virgindade com seu namorado Hugh (Jake Weary), dentro de um carro no estacionamento de uma fábrica abandonada da cidade – o filme faz uma crítica social com a oposição entre o subúrbio das classes médias com a cidade em ruínas e habitada por desempregados e miseráveis.


Para em seguida ser sedada com clorofórmio e raptada pelo namorado que a amarra em uma cadeira de rodas num estacionamento abandonado para lhe revelar um terrível segredo: ela é a mais recente vítima de algum tipo de maldição sexualmente transmissível. A partir daquele momento será perseguida por criaturas parecidas com zumbis que tentarão matá-la da pior maneira possível.

A única forma de passar esse fardo para outra pessoa é através do sexo. Mas terá que ser solidária com a próxima pessoa da corrente pois, se ela for morta, as entidades assassinas retornarão atrás dela.

O clichê da decisão errada


Corrente do Mal ainda explora outro clichê dos filmes de terror: o fato dos protagonistas tomarem as decisões mais erradas e inverossímeis possíveis, desembocando nas clássicas cenas de susto, terror e morte.

Os adolescentes decidem dar tiros nas criaturas-zumbis – eles até caem, mas levantam-se como se nada tivesse acontecido. Ou, numa estratégia ao estilo Scooby-Doo, ainda tentam eletrocutar uma piscina com secadores de cabelo e monitores de TV para criar uma espécie de ratoeira para matar as entidades. Tudo inverossímil e inútil numa espécie de exercício metalinguístico dos clichês do terror.

Essas criaturas são lentas, porém determinadas. E o que é pior: poderão surgir de qualquer lugar nos grandes espaços nos quais os planos de câmera inserem os protagonistas, planos que lembram muito os do filme Paris, Texas de Win Wenders – influência admitida pelo diretor.


A criatura poderá ser qualquer uma em uma multidão ou algum extra que esteja passando pela cena. Propositalmente, David Mitchell inseriu muitos extras nas cenas para criar essa constante tensão no espectador.

O detalhe é que essas criaturas-zumbis somente serão visíveis pelos amaldiçoados, embora os outros possam ver e sentir os efeitos físicos dessas entidades perseguidoras invisíveis.

A nova ontologia do Mal


Em postagens anteriores, este humilde blogueiro vem expondo a tese de que desde a chegada dos zumbis, ocorreu uma mudança na ontologia do Mal e da monstruosidade no cinema. Monstros e as representações do Mal tornaram-se instáveis, informes, poli-dimensionais, mutantes. Suas manifestações ocorrem de forma indeterminadas, dissipativas, caóticas, exponenciais e virais – clique aqui.

Bem diferente das representações clássicas, bem determinadas num monstro (Drácula, O Monstro da Lagoa Negra etc.), num cientista louco (Dr. Frankenstein ou Rowang, o cientista do filme Metrópolis) ou ainda um assassino serial do tipo Jack, O Estripador. O máximo de complexidade dessas representações do Mal aconteciam nas divisões de personalidade, como em Dr Jeckyll and Mr Hyde.


Corrente do Mal parece alcançar o paroxismo dessa nova ontologia do Mal: uma maldição que consegue chegar a esse mundo através do sexo (e na combinação adolescência e terror torna-se explosivo) criando uma disseminação não só viral e exponencial – as criaturas perseguidoras são mutantes, informes, cujas formas muitas vezes são projeções do próprio psiquismo das vítimas. São determinadas (caminham em linha reta e nadas as impede) e indeterminadas – nunca se sabe de onde surgirão. Parecem estar em algum lugar incerto entre a entre a vigília e a alucinação.

Mas há em Corrente do Mal uma profunda ironia. As raízes sócio econômicas dessa nova ontologia do Mal (todo imaginário ou sensibilidade só ganha sentido em determinadas condições históricas) estão na globalização e financeirização das sociedades – cuja instabilidade e liquidez valoriza o paradigma de princípios como a fragmentação, mutabilidade, incerteza e neutralização ética e moral – a perversidade do Mal não está em alguma imoralidade, mas na sua natureza neutra de disseminação viral.

 O irônico de tudo isso é que o filme tem como verdadeiro protagonista a cidade de Detroit, que se transformou em cenário cinematográfico. Uma cidade icônica por ser vítima desse movimento socioeconômico que dá sentido à nova ontologia do Mal no cinema.


Ficha Técnica

Título: Corrente do Mal (It Follows)
Diretor: David Robert Mitchell
Roteiro:  David Robert Mitchell
Elenco:  Maika Monroe, Jake Weary, Keir Gilchrist, Lili Sepe, Daniel Zovatto
Produção: Nothern Lights Films, Animal Kingdom
Distribuição: Radius-TWC
Ano: 2014
País: EUA

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