terça-feira, julho 11, 2017

Curta da Semana: "Correntes" - o silêncio é o som mais alto que se pode ouvir


O curta brasileiro “Correntes”(2016), de Alessandro Vecchi, retoma a força das imagens, a própria natureza do cinema – todo o poder das alegorias e metáforas, dispensando linhas de diálogo e a narrativa realista. A incomunicabilidade de um casal cercado de fotos de um passado de filhos e momentos felizes. Mas que agora tudo se acabou em um tenso silêncio no qual a TV e o smartphone são as únicas válvulas de escape. O curta guarda duas ironias: o silêncio é o som mais alto que se pode ouvir em uma relação – tudo é comunicação, mesmo o silêncio. Porém uma forma de comunicação catatônica e neurótica, a incomunicabilidade. E a segunda ironia: como as tecnologias chamadas “de comunicação”, ajudam a reforçar a incomunicabilidade. Principalmente o fenômeno da “dupla tela” dos smartphones no qual enquanto a mente ocupa o ciberespaço o corpo mantem-se inerte no espaço presencial.

Se a alegoria é uma metáfora em movimento, o cinema é por natureza alegórico. O chamado  “primeiro cinema” sabia disso, e por essa razão privilegiou mais a imagem do que o som. Dos primeiros filmes mudos ao cinema impressionista de Abel Gance e surrealista de Buñuel nos anos 1920, o cinema explorou toda a possibilidades alegóricas e metafóricas das imagens, que se perdeu com a chegada do som e as linhas de diálogo que na maioria das vezes apenas repetem aquilo que as imagens já mostram.

O curta Correntes, do diretor Alessandro Vecchi é uma dessas produções que  retomam essa natureza da arte cinematográfica – criar metáforas para coloca-las em movimento por meio de alegorias.  Principalmente quando o tema é a incomunicabilidade, capaz de negligenciar o amor e toda uma vida conjugal. Nada melhor que o silêncio dos protagonistas para discorrer sobre a incomunicabilidade, e deixar que as alegorias falem por si mesmas.

Embora em preto e branco e render essa homenagem à natureza alegórica primeira do cinema, Correntes não é nada nostálgico: insere a incomunicabilidade e negligência afetiva dos protagonistas num ambiente midiatizado pelos celulares e a TV. Tema urgente e atual.


Se grossas correntes prendem o casal de protagonistas um no outro, o cimento ideológico ou o “anestésico” que tira a mente da situação enquanto os corpos mantem-se acorrentados são, paradoxalmente, dispositivos de comunicação – o ciberespaço do celular e redes sociais e o espaço virtual da televisão.

O Curta


Correntes começa com um interessante jogo de campo/contra-campo. Vemos a cada plano um homem e uma mulher com expressões de cansaço e desânimo. Viram para o seu contra-campo e dão um leve sorriso. Para depois retornar às expressões desanimadas, nos encarando.

O plano abre e o breve sorriso sem graça dado um para o outro se transforma em tédio ao olhar para a TV. E suas pernas estão atadas a grossas e pesadas correntes. E na ponta não há uma bola de ferro... mas o companheiro.

Mas o sorriso fica mesmo franco, quase a gargalhadas, quando fazem a segunda tela com seus celulares, digitando mensagens e supostamente olhando memes engraçados.

O curta abre e fecha com fotos de toda a vida conjugal: o namoro, casamento, os filhos e as alegrias de festas e brincadeiras. Tudo ficou nas fotos e no passado. Enquanto ao redor, podemos perceber uma casa velha, com paredes descascando, móveis surrados e um sofá rasgado e encardido.

O que são as correntes que prendem o casal um ao outro. Culpa? Ressentimento? Remorso? O peso da instituição Família que os obriga a permanecer juntos mesmo depois que o amor acabou?


Eles são obrigados a arrastar as pesadas correntes para o quarto, para a cozinha, para qualquer lugar. Em silêncio, sempre juntos.

Há uma música da banda The Cure chamada “The Loudest Sound” que descreve essa situação de incomunicabilidade: lado a lado, em silêncio, uma casal passa os dias. Nada para dizer, um olhando para o céu e o outro para o chão, cada um desejando mundos diferente. E a música encerra dizendo que esse silêncio “foi o som mais alto que já ouvi”.

Incomunicabilidade no ciberespaço


Essa cena mostrada pelo curta apresenta duas ironias que vale a pena ser comentada.
A primeira, o silêncio como fosse “o som mais alto que se possa ouvir”. Gregory Bateson e Watslawick fizeram uma série de pesquisas nos anos 1960 (a chamada “Escola de Palo Alto”) com formas de comunicação esquizofrênicas e catatônicas.

Os resultados demonstraram que em diversas vezes o silêncio, como negação de comunicação, é uma forma de fazê-lo, como uma resposta (feed-back) interacional na tentativa de adaptar-se ou sobreviver a uma relação conflituosa. Por exemplo, um casal permanece em silêncio. Este não-comunicar pode ser uma resposta a uma relação conflituosa. O silêncio pode ser interpretado como uma estratégia do sistema buscar um equilíbrio (homeostase) e manter o vínculo (a manutenção, embora neurótica, da relação).

Dessa forma, para a Escola de Palo Alto, as linguagens informais estão na base das transformações culturais. As “linguagens silenciosas” estão na origem de cada construção da realidade por uma cultura: modos de amizades, negociação, acordos, modos de perceber o tempo e o espaço.


Para os pesquisadores, é impossível não haver comunicação. Mesmo o silêncio, é uma forma simbólica de comunicar-se. Apesar de neurótica e catatônica: não há feed-back, interação.

E a segunda ironia complementa esse estado de incomunicabilidade: o papel dos meios de comunicação como TV e smartphones, que paradoxalmente reforçam a incomunicabilidade.

Como disse certa vez o urbanista e pensador francês Paul Virilio, as formas cada vez mais velozes, tanto de deslocamento quanto de comunicação, criam estados paradoxais de inércia. E o ciberespeaço seria uma dessas situações – fazemos dupla tela vendo TV, em festas, numa roda de amigos, com a própria namorada em um restaurante. Nossos corpos estão presente no espaço dos eventos. Porém, nossas mentes saem dali para viverem no ciberespaço, um nowhere virtual – leia VIRILIO, Paul, A Inércia Polar, Dom Quixote, 1993.

A televisão já havia iniciado esse processo de inércia das relações humanas - toda família em silêncio, diante da tela para depois cada um se trancar nos seus quartos com sua TV portátil.

A era atual dos dispositivos móveis como tablets e smartphones apenas radicalizam essa tendência: agora podemos fazer dupla tela (despachar nossa mente para o ciberespaço enquanto nossos corpos inertes ocupam o espaço físico) em qualquer situação relacional.

Ironicamente, esses dispositivos modernos apenas reforçam (ou se tornam válvula de escape) de um mal estar bem antigo: a incomunicabilidade nas relações humanas neuróticas e catatônicas.

Por tudo isso, o curta Correntes é uma grata surpresa: combina aquilo de mais antigo da arte do cinema e audiovisual (o poder alegórico e metafórico das imagens) com um problema até antigo, porém reforçado pelas modernas tecnologias digitais: a incomunicabilidade humana.




Ficha Técnica

Título: Correntes (curta)
Diretor: Alessandro Vecchi
Roteiro:  Alessandro Vecchi
Elenco:  Milene Haddad e Zé Antônio do Carmmo
Produção: Alessandro Vecchi e Betta Lima
Distribuição: Vimeo
Ano: 2016
País: Brasil

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