quinta-feira, setembro 03, 2020

A mercadoria notícia da grande mídia banaliza a pandemia e seus mortos


Por que, apesar de toda a extensiva cobertura midiática da pandemia, a percepção do público parece muito mais de fastio, cansaço, do que de mobilização e emergência? Parece que a pandemia foi banalizada, como se as notícias não passassem de mais do mesmo. A grande mídia se autodescreve como de “utilidade pública”: o cidadão precisaria de informações para se orientar num momento de crise sanitária. Porém, a notícia é mais um produto mercadológico com interesses privados: atrair anunciantes e proporcionar ao espectador/consumidor uma experiência positiva. Horror, indignação ou mal-estar são sensações evitadas por estratégias discursivas: abstração dos números e infográficos, “canastricização” dos mortos, as palavras “população” e “sociedade” substituindo “classes sociais” e a indignação seletiva: aglomeração nas praias não pode, ônibus e metrôs lotados sim... desde que a aglomeração esteja gerando mais-valia aos anunciantes do noticiário.  

O historiador Valério Arcary publicou uma interessante análise de como a esquerda e as forças políticas mais influentes subestimaram Bolsonaro e a extrema-direita desde 2017 – essencialmente, o fenômeno foi considerado simplesmente como um “acidente eleitoral” – clique aqui.

Com a eclosão da pandemia em março/abril, havia um consenso de que o País seria imerso numa crise política em meio a uma crise sanitária e humanitária sem precedentes – o governo desprezou a gravidade da pandemia, dois ministros da saúde foram defenestrados, Bolsonaro debochava da necessidade de uma quarentena, favoreceu mobilizações que defendiam um autogolpe.

A avaliação era de que a combinação da crise econômica (dezenas de milhões de desempregados) com a calamidade humanitária (centenas de milhares de mortos) fragilizaria o governo. Mas no último mês a conjuntura mudou com a recuperação de Bolsonaro nas pesquisas.

Como explicar? Arcary enumera alguns motivos: distribuição do auxílio emergencial, recuo de Bolsonaro na sua estratégia de autogolpe, alianças com o Congresso Nacional, impossibilidade de manifestações nas ruas pela esquerda em virtude da pandemia.

Porém, a hipótese mais interessante é a “tendência à banalização da pandemia em uma parcela importante da base social e eleitoral de Bolsonaro”.

Arcary salienta: “de todos os fatores, a menos compreendida é a naturalização da pandemia”. O professor arrisca algumas explicações: 

(a) há muita confusão sobre o que é a doença, e desconfiança da informação científica; (b) há uma percepção de que é uma fatalidade que castiga com a morte os mais velhos e doentes; (c) há uma responsabilização das próprias vítimas, porque não seriam capazes de se cuidar; (d) há a pressão pela reativação da atividade econômica, muito mais intensa entre empresários de pequenos negócios e trabalhadores informais; (e) há uma fadiga da quarentena, depois de cinco meses, e a ansiedade pelo retorno de uma rotina de vida normal; (e) há uma percepção de que o auge da pandemia já passou e os riscos são aceitáveis.

 

Os sentidos de “confusão” e “percepção” são as dominantes nessas hipóteses. Que convergem à forma como a grande mídia vem cobrindo a pandemia e qual o discurso ou narrativa através da qual a crise sanitária (e principalmente as milhares de mortes) ganha sentido para o grande público.

Em outras palavras, a forma como a mídia corporativa (mais do que informa sobre a crise) também cria uma narrativa para tornar a crise sanitária inteligível para leitores e espectadores.

Por que, apesar de toda a extensiva cobertura midiática (chegando a criar um consórcio independente para a coleta de dados sobre a pandemia, ao colocar sob suspeição os números oficiais), a percepção do público parece muito mais de fastio, cansaço, do que de mobilização impulsionada pela percepção de emergência? Parece que a pandemia foi banalizada, como se as informações passadas pela mídia não passassem de mais do mesmo. 

O álibi da “utilidade pública”

A busca pela resposta desse aparente paradoxo (a banalização das informações sobre algo tão urgente e ameaçador como a pandemia do coronavírus) pode revelar a chamada “prova do pudim”: a revelação da existência do consórcio Militar/Judiciário/Midiático – jogo criptografado de embaralhamento de informações na qual a grande mídia cria uma aparência de oposição crítica ao Governo. Quando, no plano semiótico e linguístico, apoia o “mal menor”: afinal, Bolsonaro é a opção que restou para a Banca implementar a agenda neoliberal de desmanche do Estado.



Para encobrir esse jogo criptografado de “morde/assopra” a grande mídia se vale do álibi de que o seu serviço noticioso é de “utilidade pública” – aliás, argumento utilizado no episódio dos “Guardiões do Crivella”, grupo de choque que intimida o trabalho de repórteres da Globo em frente aos hospitais municipais do Rio de Janeiro.

Ora, o produto notícia é muito menos uma prestação de serviço público noticioso e muito mais um produto que visa atrair anunciantes para o lucro privado.  Como o pesquisador de cinema e audiovisual norte-americano Robert Stam já observou, o princípio básico que norteia a produção noticiosa é mercadológico: não importa se as notícias sejam boas ou más; o mais importante é que no final a sua FORMA de significação (edição, montagem etc.) seja “agradável” ao público. De que o fato de se “informar” se constitua numa experiência positiva, inspiradora etc. - leia STAM, Robert, "O Telejornal e seu Espectador"In: Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n.13, p. 74-87, out. 1985.

Qualquer anunciante quer ver o seu produto associado a uma experiência “positiva” do público. E não associada informações que provoquem horror, desconcerto, mal-estar. Ao contrário, buscam serviços noticiosos que normalizem o cotidiano – cujo efeito residual (ou subliminar) é o que está em discussão aqui: a banalização dos conteúdos.

Partindo-se da premissa que o telejornal é um produto que precisa ser agradável ao espectador (o prazer de se sentir bem informado) e também atrair anunciante e dar faturamento, o crescente baixo astral nacional começa a entrar em contradição com a própria estética televisiva – como transformar a experiência do informar-se em algo esteticamente agradável se as notícias são cada vez mais aterradoras? Como continuar a oferecer “infotenimento” ao distinto público?

Uma coisa é o acontecimento (o “real”). Outra coisa é a sua representação, a montagem ou justaposições coerentes de signos que formem uma narrativa. Aqui reside a parcialidade que é a própria natureza semiótica da mente humana – a inexorável parcialidade (não confunda com “mentira”) através da qual os sentidos (ideológicos, políticos etc.) estruturam e direcionam as representações.

A mercadoria notícia banaliza a informação

Dessa maneira, é um falso problema questionar o porquê da indiferença das pessoas ou do porquê de as praias estarem apinhadas (aliás hipocrisia, porque nada se fala sobre os transportes públicos lotados – voltaremos a esse ponto adiante), mesmo com os números e depoimentos de famílias enlutadas na cobertura diária da pandemia pela mídia corporativa. 

Pela sua natureza mercadológica (e, principalmente, pelo seu papel estratégico no consórcio militar/Judiciário/Midiático que banca o governo do capitão reformado), o jornalismo corporativo vai necessariamente banalizar os acontecimentos. Mesmo com todo os seus discursos da “utilidade pública” e da necessidade do “cidadão manter-se informado”.

As estratégias semióticas e linguísticas são manjadíssimas para manter mesmo notícias escabrosas como a pandemia COVID-19 cognitivamente “agradável” para o respeitável público.

Não espere encontrar nos telejornais formas de edição e montagem feitas deliberadamente para chocar e indignar espectadores, como no documentário clássico Corações Mentes (Hearts and Minds, 1974) de Peter Davis – um dos mais importantes documentários políticos da história do cinema no qual todos os recursos de linguagem foram mobilizados para o estimular o “acontecimento comunicacional” no espectador: horror, indignação, mal-estar.



Como, p. ex., a contraposição das imagens de vietnamitas chorando pelos seus familiares mortos em um cemitério, enquanto o General Westmoreland dizia que os orientais “não dão valor à vida”. O documentário é um exemplo de como a linguagem audiovisual pode ser mobilizada para evitar a banalização e indiferença diante dos horrores como os da Guerra do Vietnã.

A semiótica da banalização

Como, então, o jornalismo corporativo produz esse efeito de banalização de um conteúdo tão grave como a crise sanitária e de governança nacionais? Alguns “tips” semióticos de como a grande mídia produz essa conveniente (política e mercadologicamente) banalização e indiferença:

(a) A banalidade dos números   

Diariamente apresentadores mostram infográficos dos números do tal “Consórcio” formado pela Globo, Folha, Estadão etc. para tabular dados das secretarias de Saúde. E vem um desfile de números abstratos: mortos nas últimas 24 horas, número de casos, médias da semana, médias móveis, percentuais e assim por diante.

O semiólogo francês Roland Barthes observava na estrutura dos chamados “fatos diversos” (fait divers – rubrica sob a qual os jornais publicam acidentes, curiosidades, fatos pitorescos, pequenos escândalos etc.) a redução das mortes a números. Os fatos diversos reduzem as notícias a duas categorias: os prodígios e os crimes. “Cinco mil mortos no Peru”, salienta Barthes, é uma estrutura noticiosa fechada em si mesma: números abstratos que apenas reduz o acontecimento ao “prodígio” o “espanto” dos fatos diversos – leia BARTHES, Roland, “A Estrutura da Notícia” IN: Crítica e Verdade, Coleção Debates, Perspectiva.

A marcha dos números diários (com sofisticados infográficos com curvas em gestalt esotéricas) do tal “Consórcio” criado pela imprensa corporativa apenas é a marcha da banalização de uma tragédia reduzindo-a ao nível dos “fatos diversos”.

Isso quando os telejornais dão ainda mais destaque à retórica da frieza dos números. Por exemplo, quando ressaltou a tranquila frieza técnica da “Gestão Doria” quando em junho previu que nos próximos 20 dias mais 11 mil iriam morrer. Tudo já estava nos cálculos!




(b) Canastricização dos mortos

Mas a retórica da banalização da pandemia vai para outro polo do espectro: também dá rosto aos mortos, fugindo da abstração dos números. É o que o programa Fantástico faz todos os domingos – mostra as fotos de vítimas com suas identificações. 

Porém, com uma estratégia discursiva canastrona: atores do cast das telenovelas da Globo dramatizam o memorial das vítimas, descrevendo suas personalidades, hábitos, gostos e suas características mais prosaicas supostamente pela descrição feita dos próprios familiares.

A dor individual só ganha significação através do acting de atores (alguns deles até visivelmente lendo um script em típicas lives das quarentenas). É o que este Cinegnose chama de canastrice: a realidade só consegue ter verossimilhança quando emula a linguagem ficcional. O efeito é banalizador. 

Assim como a canastrice na política: políticos emulam personagens ficcionais (memes, estereótipos, clichês etc.) para serem normalizados na banalidade da sua performance overacting – sobre esse conceito clique aqui.

Os atores devem falar no lugar dos familiares enlutados... narrativas impactantes como no documentário Corações e Mentes (no qual os próprios familiares enlutados e indignados assumiam o protagonismo ao falarem sobre seus entes queridos mortos) são vetadas para o produto chamado notícia.

(c) Cadê as diferenças de classes?

telejornais focam muito mais nas lives fotogênicas dos amplos (ou ajeitados) apartamentos de classe média. Soluções para home office; como dar conta da energia dos filhos no isolamento social; como criar a sua “lojinha” no lugar mais bonitinho do seu apartamento para vender qualquer coisa na Internet; os perrengues das reformas na casa do vizinho... 



“With people problem” oferecido como modelo de quarentena para classes médias baixas e periferias que veem tudo isso como algo assim do tipo “crônicas marcianas”, relatos de outro mundo. 

Aliás, “classe social” é uma palavra proibida no vernáculo noticioso. Seus antídotos são “população”, “sociedade” ou, no máximo (para se referir aos mais prejudicados pela pandemia) os “vulneráveis”. 

Banalização extrema da pandemia com a despolitização da estratificação social dos danos da crise sanitária e econômica. 

Não é para menos que para o crescente número de apoiadores de Bolsonaro nas periferias tudo não passa de “intriga de políticos” enquanto a vida real é viver do auxílio emergencial do Governo, enfrentar as aglomerações dos transportes públicos e fazer os “corres” de entregas por aplicativos – afinal, “a vida é uma entrega”, como afirma cinicamente o slogan da campanha da patrocinadora Uber Eats.

(d) Só pode aglomerar quando for para gerar mais-valia

O jornalismo corporativo se escandaliza com imagens de praias e parques lotados nos finais de semana de sol e calor. Mas o escândalo não parece ser proporcional quando são mostrados ônibus e metrôs lotados de pessoas cujo isolamento social não é opção.

Críticas se limitam aos números reduzidos de trens e ônibus e atrasos que criam aglomerações em estações e pontos de parada nas ruas. 

Banalização e moralismo são as duas faces da mesma moeda: sacrificar a própria vida só é válido quando for para produzir mais-valia para o Capital. Se for para se divertir vira sensacionalismo, escândalo e indignação seletiva. Afinal, lazer sem produzir mais-valia para os patrocinadores é um luxo vetado para o povão. 

 

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