domingo, março 06, 2016

Lula prisioneiro em narrativa transmídia da série "House of Cards"


Cinco horas da manhã de sexta-feira: o Netflix libera no Brasil a quarta temporada da série “House of Cards”. Uma hora depois a TV Globo começa a transmitir ao vivo a 24a etapa da Operação Lava Jato onde 200 agentes da Polícia Federal rumam a São Bernando/SP para o ex-presidente Lula ser alvo de condução coercitiva para “prestar depoimentos”. Coincidência? Sincronicidade? Para os fãs a série do Netflix apresenta semelhanças com a atual crise política brasileira. E o cálculo midiático da vara judicial de Curitiba parece saber disso. Se isso for verdade, a Operação Lava Jato demonstra ser uma grande operação semiótica: da narrativa tradicional em três atos de um reality show, agora está evoluindo para um tipo especial de narrativa transmídia conhecida como “Alternate Reality Game” (ARG) – Jogo de Realidade Alternativa. Objetivo: criar uma "zona incerta"entre ficção e realidade que faça alusões ao universo de filmes e séries  para dar legitimidade ficcional a ações que carecem de base jurídica.

Que a Operação Lava Jato é antes de tudo um show midiático sob o pretexto de combater a corrupção, não restam dúvidas a cada vazamento seletivo de informações para a grande mídia cujos âncoras dos telejornais chamam cinicamente de “investigações sigilosas”.


Depois de paralisar a economia do País com a prisão de empreiteiros envolvidos com obras de infraestrutura nacional, fazer os investimentos no setor elétrico cair 30% com o enquadramento da Eletrobrás, comprometer o estratégico programa nuclear brasileiro com a prisão do engenheiro Othon Pinheiro da Silva e transformar-se numa espécie de reality show televisivo diário, agora o juiz Sérgio Moro e sua Operação Lava Jato chegaram ao estado da arte: evoluiu do reality show comum para uma narrativa transmidiática – o Alternate Reality Game (ARG), Jogo de Realidade Alternativa. 

A condução coercitiva do ex-presidente Lula para “depor” no Aeroporto de Congonhas às 8h30 da manhã (na verdade seria levado direto à carceragem do juiz Sérgio Moro em Curitiba) era para ser mais um show midiático - combinado com o editor da revista Época (que já anunciava a operação no twitter na madrugada de sexta) e roteirizado pela TV Globo que já entrava com imagens aéreas de São Bernardo/SP às seis da manhã.


Lava Jato Transmídia


Mas dessa vez a 24a etapa da Operação Lava Jato contou com uma novidade, uma estratégia transmidiática: às cinco horas da manhã da sexta-feira, uma hora antes da TV Globo entrar ao vivo, a plataforma de streaming Netflix liberava no Brasil a quarta temporada da série House of Cards sobre um operador político dos Democratas, Frank Underwood, que força a renúncia do presidente para assumir o poder na Casa Branca - série já analisada pelo Cinegnose - clique aqui.

Mera coincidência?  Evento sincromístico? Ou estratégia deliberada para a narrativa ficcional de uma série de Internet criar um paradoxal “efeito de realidade” à narrativa televisiva?

O fato é que dessa vez uma operação da Polícia Federal não contou apenas com nomes insólitos ou mitológicos como essa 24a etapa (“Alethea”, expressão grega para “busca da verdade”), mas contou com um reforço ficcional de uma minissérie de sucesso para uma operação que careceu de qualquer fundamentação jurídica.

 Desde o lançamento da produção Netflix House of Cards, muitos fãs brasileiros têm apontado coincidências e analogias com a atual crise política brasileira. A começar no ano passado onde a grande mídia enchia a bola do vice Michel Temer atribuindo a ele a esperança de uma solução para a crise política quando assumisse o lugar da presidenta Dilma. Parecia o próprio roteiro das primeiras temporadas de House of Cards.


E no final do ano passado, numa entrevista dada à BBC Brasil, o ministro do STF Gilmar Mendes (notório inimigo político do PT) disse que “a corrupção e a disputa por poder a qualquer custo exibidas na série norte-americana House of Cards se repetem em Brasília” – sobre isso clique aqui.

O que é um ARG?


Um Jogo de Realidade Alternativa (ARG) é uma espécie de jogo em narrativa transmídia onde são combinadas situações ficcionais com a realidade recorrendo a mídias do mundo real e múltiplas plataformas de maneira a proporcionar aos jogadores uma experiência imersiva e interativa.

  O primeiro ARG que se tem notícia foi criado para promover o filme Inteligência Artificial em 2001. O jogo teve duração de aproximadamente quatro meses e contou com a participação de sete mil pessoas que dedicavam horas de seus dias em busca de soluções de enigmas a partir de pistas plantadas em diversas mídias por diversos personagens fictícios.


Na política brasileira, ficou famosa a gafe do senador Artrhur Virgílio em 2007 quando num inflamado discurso no senado denunciava uma ONG que estaria associada a uma empresa chamada Arkhos Biotech que defendia a necessidade de privatização da Amazônia para evitar uma catástrofe climática planetária.

"A notícia está no site da Agência Amazônia, sob o título 'Laboratório americano propõe privatizar a Amazônia': A Amazônia está mesmo à venda. Em um vídeo de um minuto e 25 segundos, postado em seu site, a empresa norte-americana Arkhos Biotech está convocando as pessoas do mundo inteiro a investir para transformar a Floresta Amazônica em um santuário de preservação sob o controle privado", disse.

O que o senador Arthur Virgílio não sabia, e nem a agência de notícias pela qual ele se informou, é que a empresa Arkhos Biotech é fictícia e fazia parte de um jogo patrocinado pelo Guaraná Antarctica.

A “zona incerta” de “House of Cards”


Esse estranho efeito ARG onde o público de repente encontra-se imerso em uma zona incerta entre a ficção e a realidade foi criado nos EUA com o lançamento da quarta temporada de House of Cards com o lançamento de um vídeo com campanha política fictícia do personagem Frank Underwood pelo segundo mandato como presidente dos EUA.


O material foi exibido pelo canal CNN durante o intervalo do quinto debate do Partido Republicano entre pré-candidatos à presidência – “América, eu estou apenas começando. "Eu sou Frank Underwood e aprovo essa mensagem”, diz com a mesma inflexão canastrona do candidato real à presidência dos republicanos Donald Trump - veja vídeo abaixo.

Fazer coincidir a condução coercitiva do ex-presidente Lula transmitida ao vivo pela TV com o lançamento da série do Netflix sobre conspirações palacianas comprova que a Operação Lava Jato é uma gigantesca operação semiótica. Depois de transformar a caça aos corruptos, delações premiadas, vazamentos das “investigações sigilosas” em um grande reality show televisivo, agora dá um novo passo ao adotar uma narrativa transmídia.

 Na medida em que as medidas arbitrárias do juiz Sérgio Moro começam a ser contestadas por todos os lados (inclusive de um ex-ministro da Justiça do governo FHC) pela falta de fundamentação jurídica, a Operação Lava Jato busca a legitimidade semiótica ao tentar criar essa zona incerta entre ficção e realidade.

A canastrice dos atores da Lava Jato


A pretexto de proteger um ex-presidente numa ação que mobilizou 200 agentes da Polícia Federal com suas armas, óculos escuros, camisas pretas, reluzentes carros negros, policiais com roupas de camuflagem militar, tudo parece buscar fundamentação não na Lei, Constituição ou jurisprudências, mas em referencias e alusões ficcionais na cinematografia – thrillers e filmes de ação.


Vemos orgulhosos agentes federais empunhando armas, óculos escuros e bocas de “acento circunflexo” ao melhor estilo Rambo. Tudo muito over e canastrão, assim como as performances de Frank Underwood e Donald Trump.

Vale aqui relembrar o conceito  de “canastrice” na propaganda política: as performances políticas (eventos, personagens etc.) devem ser cada vez mais “over”, saturadas e exagerados para forçar alusões ao universo ficcional da TV e cinema. Isso porque após um século de cultura visual produzida pela indústria do entretenimento a percepção do real já foi invertida pelo hiperrealismo das imagens: tomamos o real não mais por ele mesmo, mas a partir de imagens previamente feitas dele.

De tanto diariamente sermos alfabetizados pelas narrativas ficcionais de filmes e séries, avaliamos a realidade pela ficção. Apesar de toda canastrice (o fake, o overactating etc.) dos intérpretes do script da Lava Jato (sendo a indefectível figura do “japonês bonzinho” da PF a mais canastrona de todas), as pessoas acreditam em um enredo supostamente sério porque tudo parecer ser um verdadeiro decalque de alguma série da ficção.

De tão longa, a Operação Lava Jato começa a evoluir semioticamente tornando-se um verdadeiro futuro objeto para teses e dissertações: da narrativa tradicional em roteiros divididos em três atos, agora salta para as narrativas trans-mídias onde as histórias não têm fim porque continuam em múltiplas plataformas.


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