Livremente inspirado no Tarot e num poema gnóstico cristão do século II
chamado “Hino da Pérola”, o filme “Cavaleiro de Copas” (2015) mostra como a
crise criativa de um roteirista de Hollywood pode ser o início de uma reflexão
sobre o vazio existencial do sucesso material. O protagonista Rick (Christian
Bale) vaga por uma Los Angeles e Las Vegas como um estrangeiro em um deserto e
percebe como a indústria do entretenimento levanta espelhos e cenografias que
não nos deixa ver o que está por trás: horizontes e pontos de fuga. Tal como
nos fala os versos do “Hino da Pérola”, é a bebida que enche o nosso copo
diário de esquecimento. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.
Enviado pelo seu pai, o Rei do Leste, um cavaleiro foi ao Egito
encontrar uma pérola. Uma pérola das profundezas do Oceano. Mas quando lá
chegou, o povo serviu-lhe um copo com uma bebida que lhe tirou a memória:
esqueceu que era filho do Rei. Esqueceu também da pérola e caiu em um sono
profundo.
Mas o Rei não esqueceu do seu filho. Continuou a enviar sinais,
mensageiros, guias para tentar lembrá-lo. Mas o príncipe continuou dormindo.
Esse é um resumo do poema gnóstico cristão chamado “O Hino da Pérola”,
escrito no século II D.C. Ao lado da Alegoria da Caverna de Platão, a imagem
criada por esse poema sobre condição humana como um exilado sem memória da sua
terra natal e perdido em um cosmos estrangeiro é um dos mitos mais fortes do
Gnosticismo.
O filme Cavaleiro de Copas
inicia com uma narração em off do resumo desse “Hino da Pérola” para apresentar
o vazio existencial de Rick (Christian Bale), um financeiramente bem sucedido
roteirista hollywoodiano. Inspirado
também no livro Pilgrim’s Progress from
This World to That Which is to Come de 1678, narra a “jornada perigosa” de
Rick na tentativa de juntar os fragmentos da sua vida e tentar responder uma
pergunta: onde foi que eu errei?
O diretor Terrence Malick nos mostra a ausência de sentido por trás de
sucesso material, festas, amigos e linda mulheres na vida de um profissional da
indústria do entretenimento.
Mas o filme, com uma linguagem bem experimental (repetidos zoom in e deslocamentos dos planos em stad cam, além da montagem solta e fragmentada que chega a cansar o
espectador em muitos momentos), pretende fazer uma reflexão metafísica e tornar
o drama de Rick como o próprio drama da condição humana – a jornada humana
pelos “desertos do mundo” como fosse um exilado que tenta juntar os pedaços
para achar uma saída.
Malick consegue transformar
lindos cartões postais californianos como praias, por de Sol, o skyline
de Los Angeles etc. em desolados desertos através dos quais o protagonista Rick
vaga como fosse um estrangeiro em um deserto.
Rick cruza os desertos urbanos e geográficos nas feéricas Las Vegas e
Los Angeles como o caçador da pérola de que fala o poema gnóstico do século II.
E a pérola é a busca da memória perdida do porquê a humanidade se encontra
perdida nesse planeta.
Se no filme Número 9 esse tema
AstroGnóstico (o homem como uma criatura celeste prisioneira na Terra) é
sugerido, em Cavaleiro de Copas é
explícito ao fazer referência direta ao Hino
da Pérola e comparar a jornada humana como a do peregrino em busca da
Cidade Celestial.
O Filme
O título do filme refere-se a carta de Tarot que descreve um romântico
cavaleiro governado pelas emoções ao invés da lógica. É sobre um profissional
da indústria do cinema bem sucedido (pode ser um roteirista, mas no filme há
evidências de ser um diretor) com algum tipo de bloqueio criativo.
Ele vagueia em torno de Los Angeles, praias e o deserto de Las Vegas
para ter encontros fugazes com muitas mulheres (todas invulgarmente belas),
homens (seu pai, o irmão e uma dupla de agentes) para tentar remendar os
fragmentos da sua vida. E responder a uma simples pergunta: “onde foi que eu
errei?”.
Os encontros aleatórios parecem ser organizados em capítulos indicados
por uma carta de Tarot que representa o personagem-chave que marcará a sua
jornada: A Lua (Della, a jovem rebelde; O Enforcado (seu irmão e seu pai); O
Eremita: Tonio (Antonio Banderas), um playboy amoral; O Julgamento: sua
ex-esposa Nancy (Cate Blanchett); A Torre: Helen, a modelo serena; A Alta
Sacerdotisa: Karen, a stripper; A Morte: Elizabeth (Natalie Portman), a mulher
injustiçada do passado.
Malick faz um paralelo entre as cartas do Tarot e a viagem interior do protagonista,
lembrando bastante a abordagem que o psicanalista Carl Gustav Jung fazia do
Tarot: as cartas representam cada um dos arquétipos humanos que compõem a nossa
personalidade. Todos eles estão em nosso psiquismo, sendo que um ou uma
constelação de arquétipos passam a determinar a matriz da nossa personalidade.
A bebida do esquecimento
Mas Cavaleiro de Copas não é
apenas uma jornada lírica interior: o protagonista Rick está no coração da
cidade que produz a bebida que é posta no copo que bebemos para perdermos a
memória, como nos conta os versos do Hino
da Pérola – Hollywood, a indústria do Entretenimento e a sua faceta mais
bizarra: Las Vegas.
No filme é como se o homem levantasse espelhos diante de si mesmo,
criando narcisismo e esquecimento do que o homem já foi. Rick vagueia por sets
de filmagens, cidades cenográficas e o seu paroxismo: Las Vegas, a cenografia
da cenografia da cenografia... Para Malick essa é a fonte de todo esquecimento:
cenografias e espelhos que escondem o que há por trás e os possíveis caminhos
que o levariam a busca final.
Apesar dos encontros de Rick parecerem ora aleatórios, ora repetitivos,
Malick dá um sentido à narrativa - o tempo inteiro procura contrastar as
imagens frias e duras do ambiente urbano e as ricas paisagens naturais de
beleza intocada.
A ideia que une tudo é a mitologia do Deserto: a cidade e seus
interiores são mostrados tão áridos e vazios como as praias e regiões
desérticas fora de Los Angeles. O deserto é a jornada do peregrino em busca da
Cidade Celestial. Mas os espelhos e cenografias escondem esse horizontes e
pontos de fuga: são apenas imagens e cenografias, a bebida do copo que bebemos
todos os dias para esquecermos.
A ironia do filme é que o protagonista Rick é também um dos produtores
dessa bebida: seu bloqueio criativo, seu mal estar e tédio são os sintomas que
tentam alertá-lo de que há algo errado com esse mundo.
O Viajante, o Detetive e o Estrangeiro
Uma outra ironia: Rick também foi o nome de um personagem (Rick, no
filme Casablanca, 1942) representado
pelo ator que é sinônimo do detetive dos filmes noir - Humphrey Bogart. Aqui começa o desfile dos personagens
gnósticos do Detetive, do Viajante e do Estrangeiro.
Rick é o Detetive que pretende juntar as peças do quebra-cabeças e
descobrir a resposta à pergunta fundamental: onde errei?
Viajantes cruzam a sua vida. Como em todo filme que se orienta por essa
mitologia gnóstica contemporânea, o viajante é aquele personagem que vem de
terras distantes e que, por isso, é capaz de mudar o olhar banalizado do
protagonista. Como a personagem Karen, a stripper australiana com o brilho e
élan da alegria infantil, que injeta ânimo à jornada interior de Rick.
E no final a própria condição estrangeira de Rick que o diretor pretende
no filme elevá-la à própria condição do gênero humano: apesar de toda bebida
produzida pela indústria do entretenimento que enche diariamente os nossos
copos, mensageiros e guias tentam nos fazer lembrar que ainda devemos buscar a
pérola no fundo do Oceano. Filmes como Cavaleiro
de Copas é uma dessas tentativas de nos fazer acordar do sono do
esquecimento.
Ficha Técnica |
Título: Cavaleiro
de Copas
|
Diretor: Terrence Malick
|
Roteiro: Terrence Malick
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Elenco: Christian Bale, Cate Blanchett,
Natalie Portman, Antonio Banderas, Brian Dennehy, Freida Pinto, Teresa Palmer
|
Produção: Dogwood Films
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Distribuição:
Broad Green Films
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Ano: 2015
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País: EUA
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