Normalmente pensamos o cinema como entretenimento ou como um meio pelo
qual podemos ter informações que nos façam repensar o mundo. Mas isso é
comunicação? Ou estamos confundindo comunicação com sinalização e informação?
Quando o cinema de fato comunica? Esse foi o tema discutido por esse blogueiro
no III Seminário Anhembi Morumbi de Estudos do Ensino Superior – um estudo de
caso sobre a exibição do filme “Como Fazer Carreira em Publicidade” (1989) em
sala de aula e o mapeamento de fenômenos de comunicação como “Acontecimento”
durante e depois da recepção do filme. A experiência foi tentar redefinir o
conceito de comunicação como Acontecimento – aquilo que provoca crise e altera
a vivência. Aquela experiência que, depois, já não somos mais os mesmos.
Esse humilde
blogueiro que escreve essas mal traçadas participou ontem (16/02) do III
Seminário Anhembi Morumbi de Estudos do Ensino Superior apresentando o trabalho
Como Fazer Carreira em Publicidade com
Massumi, Shaviro e Whitehead: Cinema e Acontecimento Comunicacional na Sala de Aula.
Claro que o título
é irônico: é impossível fazer carreira seguindo as ideias desses autores
(pensadores da fenomenologia). Mas também o título é baseado no relato de um
estudo de caso: a exibição do filme Como
Fazer Carreira em Publicidade (How To Get Ahead In Advertising, 1989) para uma classe do curso de graduação
de Publicidade e Propaganda da Universidade Anhembi Morumbi/SP na disciplina
que eu ministro chamada Estudos da Semiótica – sobre o filme clique
aqui.
A exibição dessa
ácida comédia de humor negro inglês foi uma experiência onde se tentou
verificar a possibilidade do “acontecimento comunicacional” em sala de aula –
proposta de pensar a comunicação como fenômeno,
o aqui e agora, o estudo da comunicação no momento em que ela ocorre e suas
relações com a biografia do receptor. Em outras palavras, como é possível a
narrativa fílmica se encontrar com dados da biografia do espectador, produzindo
um “acontecimento”.
As aplicações do
cinema em sala de aula pode ser agrupadas em duas estratégias dominantes: (a)
Conteudistas, onde temas e narrativas fílmicas são usadas para ilustrar
conteúdos programáticos vistos em aulas ou feita uma leitura crítica de filmes;
(b) Formalistas, onde é feita uma metalinguagem do cinema e a narrativa fílmica
(roteirização, edição e linguagem) é estudada para a produção de produtos
audiovisuais pelos alunos.
A terceira via fenomenológica
A proposta é uma
terceira utilização educacional do cinema: a fenomenológica, o cinema como
acontecimento comunicacional.
O background dessa proposta é
a seguinte: atualmente se discute no grupo chamado Filocom da ECA-USP (liderado
pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho) uma nova Filosofia da Comunicação que
redefina a sua epistemologia e a ontologia. Parte do princípio de que quando se
pensa a Comunicação, confunde-se com fenômenos de sinalização e informação.
Sempre a Comunicação é estudada posteriori, depois do fenômeno ter ocorrido. Ao
ser estudada transforma-se em Semiótica, Linguística, Sociologia etc.
Abandona-se o objeto próprio da Comunicação para ser pensada a partir de
conceitos como signo, linguagem, informação, fatores sociais, psicológicos etc.
E qual o objeto da Comunicação? O fenômeno, o Acontecimento. O que é o
“Acontecimento”? Partindo da distinção entre evento e acontecimento proposto
pelos pensadores franceses Deleuze e Derrida, “eventos” seriam fatos de
natureza ruidosa, escandalosa: casos naturais, sociais ou artificiais que
ganham espaço nas manchetes dos jornais e tornam-se notícias estridentes e
emergenciais.
Já os acontecimentos são de outra natureza: silenciosos e insensíveis,
passando à margem de qualquer representação ou racionalização. O Acontecimento
seria aquilo que provoca crise, um fato único e excepcional, imprevisível e
jamais repetível. Seria aquilo que cai sobre mim. O Acontecimento provoca uma
crise, altera a vivência. Depois dele já não sou mais o mesmo.
O cinema até aqui sempre foi pensado por aspectos de sinalização
(convenções de gênero, estilo, retórica etc.) e informação – referente a
informações que aditivam a um repertório pré-existente no receptor: assistimos
a um filme para confirmar ou não uma crítica ou expectativas.
Cinema e Afeto
Pensar o cinema como acontecimento (aquilo que nos transforma e altera a
vivencia) é pensa-lo como intensidade e afeto – um plano pré-cognitivo onde as
imagens nos impactam corporalmente pela sua intensidade e afecção.
Estamos aqui na discussão proposta por Brian Massumi que vê no cinema
dois planos de fluxos de imagens: a estrutura, a cadeia semiótica ou narrativa
que indexa os nossos afetos e transforma em emoções que são comercialmente
explorados pela indústria do entretenimento; e o plano do acontecimento, a
“materialidade da sensação” que pode nos causar repulsa, medo, fascinação,
prazer ou desejo.
Esse plano difere do primeiro que oferece o prazer voyeurista que dá
distanciamento, posse e estabilização do ego. Ao contrário, o plano do acontecimento nos impacta,
desestabiliza pelo confronto direto com a qualidade das próprias imagens,
planos etc. – sensações sinestésicas produzidas pela fotografia, cor, formas,
etc. O que lembra bastante a noção de Primeiridade na semiótica peirciana.
Brian Massumi |
Junta-se a essa discussão a noção de “corpo cinemático” de Steven
Shaviro onde o pesquisador constrói um novo perfil de espectador como não mais
aquele que procura na identificação e no voyeurismo a satisfação de desejos de
possessão, plenitude, estabilidade e segurança. Agora esse espectador vive uma “convergência
tátil” com as imagens onde ancora o seu desejo na percepção e em um corpo
agitado e fragmentado.
De Shaviro e Massumi fica a descoberta de um plano pré-cognitivo (o
afeto), anterior à emoção comercialmente construída pelo Cinema para
estabilizar o ego e reduzir o filme à sinalização e informação – reduzir a
recepção fílmica a um ato aditivo que apenas confirma uma expectativa.
Mas como a exibição de um filme pode transformar o evento em um
acontecimento comunicacional? Ou melhor, se o acontecimento comunicacional
ocorrer, como detectá-lo?
A Filosofia do Processo de Whitehead
Entra em cena o matemático e filósofo inglês Alfred Whitehead
(1861-1947), conhecido por desenvolver o que se chama Filosofia do Processo que
encontra hoje aplicações em variadas disciplinas como Ecologia, Educação,
Biologia e Economia.
Para ele o “novo” ou a “concrescência” (para nós, o acontecimento) surge
no devir quando eventos que nasceram ou morreram (os “datum”) faz uma nova
composição com as antigas. Mas a conjunção e concrescência vão se tornar
realmente acontecimentos quando ocorre a ingressão dos “objetos eternos” –
qualidades sensórias de cor, forma, táteis, qualidades morais etc.
Steven Shaviro e Alfred Whitehead |
Ao exibir o filme Como Fazer
Carreira em Publicidade fez-se uma tentativa de aplicar a fenomenologia de
Whitehead para apreender o acontecimento comunicacional: observar nos
espectadores “preendidos” pelo filme (como registraram os afetos e
intensidades), o datum preendido (dados passados que envolvem tanto os
objetos eternos do filme, sinalizações e informações como os dados da própria
biografia individual do espectador) e a “forma subjetiva” da preensão – as
“emoções” no sentido determinado por Massumi, como vimos acima.
Um filme não-realista
Para haver um acontecimento comunicacional são necessários dois quesitos:
a pessoa estar aberta à intensidade dos afetos e não se fechar por meio de
formações reativas (defesas psíquicas) e o evento ser inesperado – a exibição
do filme foi propositalmente não programada.
Além disso, o filme Como Fazer
Carreira em Publicidade é um tipo de narrativa não-realista (surreal e que
não segue os cânones da representação realista cinematográfica). Uma narrativa
ideal por não oferecer conexões lógicas causa-efeito que ajude a racionalizar e
tranquilizar o ego com o prazer voyeurístico do distanciamento.
Para estudantes de Publicidade e Propaganda, um filme como esse
disruptivo e crítico universo da promoção do consumo é desafiador. Mas o
irônico é que o filme explora intensamente packshots e imagens sinestésicas,
estratégias publicitárias tradicionais que exploram intensidades corporais como
fome, sede e desejo de compra (afetos) que depois se transformam em emoções
convenientes ao desejo de compra.
O Acontecimento comunicacional na sala de
aula
Esses afetos explorados pelo filme trazem “objetos eternos” que criaram
conjunções com “datum” dos alunos – dados das suas biografias individuais
somados a eventos que ocorriam na sala de aula durante a exibição, além dos
“datum” que o filme trouxe de 1989 para aquela noite, naquela sala de aula.
Filme "Como Fazer Carreira Em Publicidade", 1989. |
Além do mapeamento das formações reativas (corpo “fechado” como braços e
pernas cruzados, além da atenção desviada para o telefone celular),
registrou-se a intensificação dos afetos das imagens pelos corpos
“abertos” principalmente nas sequências
em packshot - onde
a afecção da sequência faz definitivamente o espectador render-se à
passividade, à entrega, ao abrir-se às afecções – corpo posturalmente
desequilibrado, afundado na carteira, pernas esticadas e o corpo pendendo para
um lado.
Após a exibição, em dois alunos (que chamaremos de Henrique e Lucas) em
que mais foi visível essa abertura às afecções foram verificado o
acontecimento, no sentido do encontro da narrativa fílmica com a biografia
individual.
Após as luzes se acenderem, Henrique ficou em
silêncio e ensimesmado, embora fazendo parte de um grupo que, ao longo do
filme, trocava algumas observações sobre a narrativa fílmica.
Em outro extremo da sala de aula estava
Lucas, com o rosto visivelmente ruborizado e que se pôs a travar uma intensa
conversa com outro grupo.
A aula terminou e Lucas veio conversar
comigo, junto com o grupo do qual participava. Lucas foi direto, e disse que
iria abandonar o curso de Publicidade para fazer o de Cinema, disse sob as
opiniões contrárias dos seus amigos. Visivelmente agitado e estimulado pelo
filme, disse que sempre quis fazer Cinema, mas desistiu por ser um curso muito
caro. Mas a engenhosidade narrativa... a cabeça-espinha que falava... a bela
fotografia e, sobretudo, um filme produzido pelo ex-Beatle George Harrison.
Saiu daquela aula, firmemente decidido em dar uma guinada na sua vida
acadêmica.
Enquanto isso Henrique aguardava à distância
terminar minha conversa com o grupo de Lucas. Aproximando-se veio consultar-me
sobre como, dentro do curso de comunicação, ele poderia dar o primeiro passo
para a atividade de pesquisador e conselhos para montar um projeto de pesquisa
em iniciação científica. Para Henrique, o conteúdo crítico do filme teria ido
ao encontro da sua insatisfação pessoal/profissional: disse que trabalhava em
uma atividade técnica de Marketing em uma empresa, distante do seu principal
interesse: a pesquisa acadêmica.
Henrique e Lucas saíram daquela aula
transformados: algo no filme fez os seus dados biográficos atuais entrarem numa
conjunção com os dados que vinham de 1989 através do filme. Henrique afirmou
que o conteúdo crítico do filme e as linhas de diálogo críticas ao sistema
capitalista fez despertar nele a paixão pela pesquisa; enquanto Lucas ficou
fascinado com a arte e linguagem experimental do filme, despertando a sua
paixão pelo cinema. Henrique foi afetado pela forma, Lucas pelo conteúdo.
Abaixo, referencias bibliográficas desse
trabalho.
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Criadora, Lisboa: Edições 70, 2001
_________. Matéria e Memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
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