quarta-feira, fevereiro 17, 2016

Editor do "Cinegnose" apresenta experiência do Cinema na sala de aula como Acontecimento


Normalmente pensamos o cinema como entretenimento ou como um meio pelo qual podemos ter informações que nos façam repensar o mundo. Mas isso é comunicação? Ou estamos confundindo comunicação com sinalização e informação? Quando o cinema de fato comunica? Esse foi o tema discutido por esse blogueiro no III Seminário Anhembi Morumbi de Estudos do Ensino Superior – um estudo de caso sobre a exibição do filme “Como Fazer Carreira em Publicidade” (1989) em sala de aula e o mapeamento de fenômenos de comunicação como “Acontecimento” durante e depois da recepção do filme. A experiência foi tentar redefinir o conceito de comunicação como Acontecimento – aquilo que provoca crise e altera a vivência. Aquela experiência que, depois, já não somos mais os mesmos.

Esse humilde blogueiro que escreve essas mal traçadas participou ontem (16/02) do III Seminário Anhembi Morumbi de Estudos do Ensino Superior apresentando o trabalho Como Fazer Carreira em Publicidade com Massumi, Shaviro e Whitehead: Cinema e Acontecimento Comunicacional na Sala de Aula.


Claro que o título é irônico: é impossível fazer carreira seguindo as ideias desses autores (pensadores da fenomenologia). Mas também o título é baseado no relato de um estudo de caso: a exibição do filme Como Fazer Carreira em Publicidade (How To Get Ahead In Advertising, 1989) para uma classe do curso de graduação de Publicidade e Propaganda da Universidade Anhembi Morumbi/SP na disciplina que eu ministro chamada Estudos da Semiótica – sobre o filme clique aqui.

A exibição dessa ácida comédia de humor negro inglês foi uma experiência onde se tentou verificar a possibilidade do “acontecimento comunicacional” em sala de aula – proposta de pensar a comunicação como fenômeno, o aqui e agora, o estudo da comunicação no momento em que ela ocorre e suas relações com a biografia do receptor. Em outras palavras, como é possível a narrativa fílmica se encontrar com dados da biografia do espectador, produzindo um “acontecimento”.

As aplicações do cinema em sala de aula pode ser agrupadas em duas estratégias dominantes: (a) Conteudistas, onde temas e narrativas fílmicas são usadas para ilustrar conteúdos programáticos vistos em aulas ou feita uma leitura crítica de filmes; (b) Formalistas, onde é feita uma metalinguagem do cinema e a narrativa fílmica (roteirização, edição e linguagem) é estudada para a produção de produtos audiovisuais pelos alunos.


A terceira via fenomenológica


A proposta é uma terceira utilização educacional do cinema: a fenomenológica, o cinema como acontecimento comunicacional.

O background dessa proposta é a seguinte: atualmente se discute no grupo chamado Filocom da ECA-USP (liderado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho) uma nova Filosofia da Comunicação que redefina a sua epistemologia e a ontologia. Parte do princípio de que quando se pensa a Comunicação, confunde-se com fenômenos de sinalização e informação. Sempre a Comunicação é estudada posteriori, depois do fenômeno ter ocorrido. Ao ser estudada transforma-se em Semiótica, Linguística, Sociologia etc. Abandona-se o objeto próprio da Comunicação para ser pensada a partir de conceitos como signo, linguagem, informação, fatores sociais, psicológicos etc.

E qual o objeto da Comunicação? O fenômeno, o Acontecimento. O que é o “Acontecimento”? Partindo da distinção entre evento e acontecimento proposto pelos pensadores franceses Deleuze e Derrida, “eventos” seriam fatos de natureza ruidosa, escandalosa: casos naturais, sociais ou artificiais que ganham espaço nas manchetes dos jornais e tornam-se notícias estridentes e emergenciais.

Já os acontecimentos são de outra natureza: silenciosos e insensíveis, passando à margem de qualquer representação ou racionalização. O Acontecimento seria aquilo que provoca crise, um fato único e excepcional, imprevisível e jamais repetível. Seria aquilo que cai sobre mim. O Acontecimento provoca uma crise, altera a vivência. Depois dele já não sou mais o mesmo.

O cinema até aqui sempre foi pensado por aspectos de sinalização (convenções de gênero, estilo, retórica etc.) e informação – referente a informações que aditivam a um repertório pré-existente no receptor: assistimos a um filme para confirmar ou não uma crítica ou expectativas.


Cinema e Afeto


Pensar o cinema como acontecimento (aquilo que nos transforma e altera a vivencia) é pensa-lo como intensidade e afeto – um plano pré-cognitivo onde as imagens nos impactam corporalmente pela sua intensidade e afecção.

Estamos aqui na discussão proposta por Brian Massumi que vê no cinema dois planos de fluxos de imagens: a estrutura, a cadeia semiótica ou narrativa que indexa os nossos afetos e transforma em emoções que são comercialmente explorados pela indústria do entretenimento; e o plano do acontecimento, a “materialidade da sensação” que pode nos causar repulsa, medo, fascinação, prazer ou desejo.

Esse plano difere do primeiro que oferece o prazer voyeurista que dá distanciamento, posse e estabilização do ego. Ao contrário, o  plano do acontecimento nos impacta, desestabiliza pelo confronto direto com a qualidade das próprias imagens, planos etc. – sensações sinestésicas produzidas pela fotografia, cor, formas, etc. O que lembra bastante a noção de Primeiridade na semiótica peirciana.

Brian Massumi

Junta-se a essa discussão a noção de “corpo cinemático” de Steven Shaviro onde o pesquisador constrói um novo perfil de espectador como não mais aquele que procura na identificação e no voyeurismo a satisfação de desejos de possessão, plenitude, estabilidade e segurança. Agora esse espectador vive uma “convergência tátil” com as imagens onde ancora o seu desejo na percepção e em um corpo agitado e fragmentado.

De Shaviro e Massumi fica a descoberta de um plano pré-cognitivo (o afeto), anterior à emoção comercialmente construída pelo Cinema para estabilizar o ego e reduzir o filme à sinalização e informação – reduzir a recepção fílmica a um ato aditivo que apenas confirma uma expectativa.
Mas como a exibição de um filme pode transformar o evento em um acontecimento comunicacional? Ou melhor, se o acontecimento comunicacional ocorrer, como detectá-lo?

A Filosofia do Processo de Whitehead


Entra em cena o matemático e filósofo inglês Alfred Whitehead (1861-1947), conhecido por desenvolver o que se chama Filosofia do Processo que encontra hoje aplicações em variadas disciplinas como Ecologia, Educação, Biologia e Economia.

Para ele o “novo” ou a “concrescência” (para nós, o acontecimento) surge no devir quando eventos que nasceram ou morreram (os “datum”) faz uma nova composição com as antigas. Mas a conjunção e concrescência vão se tornar realmente acontecimentos quando ocorre a ingressão dos “objetos eternos” – qualidades sensórias de cor, forma, táteis, qualidades morais etc.

Steven Shaviro e Alfred Whitehead

Ao exibir o filme Como Fazer Carreira em Publicidade fez-se uma tentativa de aplicar a fenomenologia de Whitehead para apreender o acontecimento comunicacional: observar nos espectadores “preendidos” pelo filme (como registraram os afetos e intensidades), o datum preendido (dados passados que envolvem tanto os objetos eternos do filme, sinalizações e informações como os dados da própria biografia individual do espectador) e a “forma subjetiva” da preensão – as “emoções” no sentido determinado por Massumi, como vimos acima.

Um filme não-realista


Para haver um acontecimento comunicacional são necessários dois quesitos: a pessoa estar aberta à intensidade dos afetos e não se fechar por meio de formações reativas (defesas psíquicas) e o evento ser inesperado – a exibição do filme foi propositalmente não programada.

Além disso, o filme Como Fazer Carreira em Publicidade é um tipo de narrativa não-realista (surreal e que não segue os cânones da representação realista cinematográfica). Uma narrativa ideal por não oferecer conexões lógicas causa-efeito que ajude a racionalizar e tranquilizar o ego com o prazer voyeurístico do distanciamento.

Para estudantes de Publicidade e Propaganda, um filme como esse disruptivo e crítico universo da promoção do consumo é desafiador. Mas o irônico é que o filme explora intensamente packshots e imagens sinestésicas, estratégias publicitárias tradicionais que exploram intensidades corporais como fome, sede e desejo de compra (afetos) que depois se transformam em emoções convenientes ao desejo de compra.

O Acontecimento comunicacional na sala de aula

Esses afetos explorados pelo filme trazem “objetos eternos” que criaram conjunções com “datum” dos alunos – dados das suas biografias individuais somados a eventos que ocorriam na sala de aula durante a exibição, além dos “datum” que o filme trouxe de 1989 para aquela noite, naquela sala de aula.

Filme "Como Fazer Carreira Em Publicidade", 1989.

Além do mapeamento das formações reativas (corpo “fechado” como braços e pernas cruzados, além da atenção desviada para o telefone celular), registrou-se a intensificação dos afetos das imagens pelos corpos “abertos”  principalmente nas sequências em packshot - onde a afecção da sequência faz definitivamente o espectador render-se à passividade, à entrega, ao abrir-se às afecções – corpo posturalmente desequilibrado, afundado na carteira, pernas esticadas e o corpo pendendo para um lado.

Após a exibição, em dois alunos (que chamaremos de Henrique e Lucas) em que mais foi visível essa abertura às afecções foram verificado o acontecimento, no sentido do encontro da narrativa fílmica com a biografia individual.

Após as luzes se acenderem, Henrique ficou em silêncio e ensimesmado, embora fazendo parte de um grupo que, ao longo do filme, trocava algumas observações sobre a narrativa fílmica.

Em outro extremo da sala de aula estava Lucas, com o rosto visivelmente ruborizado e que se pôs a travar uma intensa conversa com outro grupo.

A aula terminou e Lucas veio conversar comigo, junto com o grupo do qual participava. Lucas foi direto, e disse que iria abandonar o curso de Publicidade para fazer o de Cinema, disse sob as opiniões contrárias dos seus amigos. Visivelmente agitado e estimulado pelo filme, disse que sempre quis fazer Cinema, mas desistiu por ser um curso muito caro. Mas a engenhosidade narrativa... a cabeça-espinha que falava... a bela fotografia e, sobretudo, um filme produzido pelo ex-Beatle George Harrison. Saiu daquela aula, firmemente decidido em dar uma guinada na sua vida acadêmica.

Enquanto isso Henrique aguardava à distância terminar minha conversa com o grupo de Lucas. Aproximando-se veio consultar-me sobre como, dentro do curso de comunicação, ele poderia dar o primeiro passo para a atividade de pesquisador e conselhos para montar um projeto de pesquisa em iniciação científica. Para Henrique, o conteúdo crítico do filme teria ido ao encontro da sua insatisfação pessoal/profissional: disse que trabalhava em uma atividade técnica de Marketing em uma empresa, distante do seu principal interesse: a pesquisa acadêmica.

Henrique e Lucas saíram daquela aula transformados: algo no filme fez os seus dados biográficos atuais entrarem numa conjunção com os dados que vinham de 1989 através do filme. Henrique afirmou que o conteúdo crítico do filme e as linhas de diálogo críticas ao sistema capitalista fez despertar nele a paixão pela pesquisa; enquanto Lucas ficou fascinado com a arte e linguagem experimental do filme, despertando a sua paixão pelo cinema. Henrique foi afetado pela forma, Lucas pelo conteúdo.

Abaixo, referencias bibliográficas desse trabalho.

BERGSON, Henri. A Evolução Criadora,  Lisboa: Edições 70, 2001
_________. Matéria e Memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

DASTUR, Françoise. “Phenomenology of the Event: Waiting and Surprise”. In: Hypatia, vol. 15, no. 4 (Fall 2000), Trad. Ciro Marcondes Filho.
DELEUZE, G. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974.
__________. A Imagem-Movimento – Cinema 1, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004
__________. A Imagem-Tempo – Cinema 2, Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.
DERRIDA, Jacques, SOUSSANA, G., Nouss, A. Decir el acontecimiento. Es posible? Tradução Julián Santos Guerrero. Arena Libros, Madri, 2006.
HURLEY, N. P. Toward a film humanism. New York: Dell, 1970.
KAPLAN, Mark Alan. “Transpersonal Dimensions of the Cinema”, In: The Journal of Transpersonal Psychology, 2005, Volume 37, Number 1, Pages 9-22 (Press Date: March 2006).
________, “The Medium is the Transpersonal”, In: The Quartely Newsletter of the institute of Transpersonal Psychology, Fall, 1-2, 1993.
MARCONDES FILHO, Ciro, O Princípio da Razão Durante – O conceito de comunicação e a epistemologia metapórica. São Paulo: Paulus, 2010.
MASSUMI, Brian. Parables for the Virtual. Duke University Press, 2002.
METZ, Christian. O Significante Imaginário – psicanálise e cinema, Lisboa: Horizonte, 1980.
SERRES, M. O Terceiro Instruído. Lisboa: Instituto Piaget, 1993.
SHAVIRO, Steven. The Cinematic Body. University of Minnesota Press, 2006.
WHITHEAD, Alfred N. Process and Reality.N. York: The Free Press, 1978.


Postagens Relacionadas











Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review