Se no passado era fácil diferenciar o Jornalismo da chamada “imprensa
marrom”, hoje a perda da relevância da grande mídia frente às tecnologias de
convergência a faz tomar medidas desesperadas que confundem o sensacionalismo
com informação: criam-se situações de exceção, crises
econômicas e políticas, pandemias, ameaças terroristas crescentes, iminentes catástrofes
geológicas, climáticas, astronômicas e assim por diante numa espiral
especulativa. Da clássica história do “bebê-diabo” nos anos 1970 às pandemias
promovidas a cada temporada mudou-se apenas a motivação: lá, o jornalismo por
centavos; agora, a busca de uma relevância perdida.
Numa Chicago dos
anos 1930 marcada por segregação étnica e choques entre culturas de imigrantes,
o sociólogo Ezra Park assinalava a importante função integradora dos jornais –
como a imprensa contribuía para a integração dos imigrantes à população local.
Essa visão sobre a função integradora da imprensa marcou a distinção entre a
grande imprensa e a chamada “imprensa marrom” – ao contrário, uma imprensa
“desintegradora” porque apostava no sensacionalismo, no medo e no
individualismo para unicamente vender mais jornais.
Surgia a “Escola
de Chicago” que no âmbito das teorias da comunicação também explorou os efeitos
sociais da distinção entre jornalismo e sensacionalismo, imprensa e o “penny
press” – o chamado “jornalismo de centavos”.
No Brasil, em pleno fluxo migratório do Nordeste para São Paulo durante
a ditadura militar nos anos 1970, um jornal explorava esse mesmo tipo de
público solitário e sem laços sociais: o Notícias
Populares, famoso pelo episódio da notícia do “Bebê-Diabo” em 1975.
Notícia inventada para o jornal vender mais exemplares, na falta de
coisa melhor para noticiar – “Nasceu o Diabo em São Paulo”, estampava a
primeira página. De acordo com a notícia, uma senhora havia dado à luz a uma criatura
sobrenatural em São Bernardo do Campo. O bebê tinha o corpo completamente
coberto de pelos, dois chifres e um rabo, e já nasceu falando e ameaçando
médicos e enfermeiras que realizaram o parto.
A pequena criatura teria escapado no meio da madrugada e passou a
aterrorizar o imaginário dos leitores, produzindo manchetes por quase um mês
com supostos casos de avistamentos e sustos. Muitos deles relatados pelos
próprios leitores.
Enquanto a “imprensa marrom” vivia do sensacionalismo para ganhar
centavos, a grande imprensa respeitável criava a noção de “jornalismo de
prestação de serviços”. Favorecido pela monopólio midiático incentivado pela
Ditadura Militar, a imprensa (e principalmente a TV) tornava-se o principal
veículo de cidadania – campanhas públicas de conscientização, expressão das
demandas comunitárias, informações de
interesse público etc.
Quando a grande mídia tinha relevância
A grande mídia vivia seu período dourado de relevância junto à opinião
pública: criava a pauta e prescrevia para a sociedade o que era ou não
pertinente para ser discutido.
Por isso, era fácil tanto para o público como para pesquisadores
acadêmicos separar a imprensa “séria” da “sensacionalista”. O máximo de critica
que poderia ser feita era a ideológica: manipulações das notícias pelo viés
ideológico da política editorial.
Com a Internet e as tecnologias de convergência tudo mudou - veio a
crise existencial (com sites, blogs, podcasts etc., qualquer um podia ser
jornalista) e mercadológica (o fim da noção de “grade de programação” e a perda
de audiência para a Internet).
Mas a maior crise foi a perda de relevância: a grande mídia perdeu o
monopólio das informações, deixou de ser um gatekeeper
(aquele que tem o poder de decisão do que será passado para o grande público) e
um newsmaking (controle e geração de
acontecimentos).
No caso brasileiro, para a grande mídia o problema foi duplo: é muito
mais do que sobreviver à evolução histórica das mídias no cenário de
convergência tecnológica, mas tentar dar sobrevida de um modelo de concentração
criado pela ditadura militar, mercado publicitário e institutos de pesquisa de
audiência.
O irônico é que na busca da relevância perdida a grande mídia começou
cada vez mais a se aproximar da antiga “imprensa marrom” – gênero que, por sua
vez, acabou desaparecendo, absorvido pelos memes, vídeos, boatos e teorias
conspiratórias pela Internet.
Agendamento: a última bala na agulha
Perdido o poder de newsmaking e gatekeeper, restou ainda o de
agendamento (ou “agenda setting” – a capacidade em agendar os temas e conversas
das pessoas em função do que é veiculado na mídia), a última bala na agulha.
Passa-se então a criar situações de exceção, crises econômicas e políticas, pandemias,
ameaças terroristas, iminentes catástrofes geológicas, climáticas, astronômicas
e assim por diante numa espiral randômica.
Qual será o futuro? Há esperanças? Como sobreviver? Assista à próxima
edição e ouça o que nossos especialistas e colunistas têm a dizer!
Claro que nada é tão trash e
bizarro como caso do Bebê Diabo da penny
press brasileira dos anos 1970. Agora o sensacionalismo vem “credibilizado”
por pesquisas, números extraídos de digestos científicos, declarações editadas
de incautos chefes de pesquisas de tradicionais institutos etc. A partir de
fatos verdadeiros (o mosquito, a doença, a microcefalia etc.) apressam-se a
criar conexões e relações causais que, cientificamente, exigiriam demoradas
análises de dados de populações e teste laboratoriais.
Nada de beijos no Carnaval!
Como na atual “Pandemia da Temporada” do zika vírus que segue o mesmo
script das pandemias passadas que nunca se realizaram - sobre o conceito de "Pandemia da Temporada" clique aqui. O timing é preciso: em
plena sexta-feira de carnaval, a mídia divulga de forma bombástica pesquisa da
Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) sobre a possível transmissão do zika através de
saliva e urina. Nas escaladas dos telejornais e “cabeças” das matérias a
conexão é dada como cientificamente comprovada. Enquanto a declaração da chefe
da pesquisa, Myrna Bonaldo, espremida no meio da edição das matérias, falava em
“início de pesquisa” e de que ainda era necessário “massa crítica de dados”.
Evitar “beijos” e “aglomerações” foi o conselho em tom patibular dos
jornalistas, piada pronta no dia em que iniciava o Carnaval.
Se no caso do Bebê Diabo lá nos anos 1970 era explorado o imaginário
cristão de imigrantes nordestinos perdidos na cidade grande, agora é a
manipulação dos temas do nascimento (microcefalia), sexo (a possível
transmissão do zika pelo ato sexual, mais uma relação causal dada como certa
pela mídia) e morte (assustadoramente pandêmica e imprevisível por meio de um
micro-terrorista). Nascimento, sexo e morte, as experiências mais marcantes (e
as mais disciplinadas socialmente) da vida humana.
O caso da “epidemia midiática” da
febre amarela em 2008 foi bem documentado por diversas pesquisas. Uma delas, Epidemia Midiática: um estudo sobre a
construção de sentidos na cobertura da Folha de São Paulo sobre a febre
amarela, no verão 2007-2008, foi realizada pela Faculdade de Saúde Pública
(FSP-USP) mostrando como o discurso jornalístico transformou uma epizootia
(contagio em animais) em epidemia – contágio em humanos.
O efeito foi o aumento explosivo pela busca de vacina da febre amarela
onde a aplicação indiscriminada produziu casos de óbitos por doença
vicerotrópica, a mais grave reação adversa. A notícia da suposta epidemia de
febre amarela gerou sua própria epidemia: desinformação, pânico, filas,
vacinações desnecessárias, erradas etc.
Os supostos casos de febre amarela eram noticiados pela mídia como
verdadeiros, enquanto as pesquisas laboratoriais, clínicas e epidemiológicas
ainda estavam em fase final de apuração.
A cereja do bolo: o contágio sexual
Hoje o mesmo ocorre com as relações causais automáticas entre zika,
microcefalia e contágio sexual – esta, a cereja que faltava no bolo para a
mídia criar a “tempestade perfeita”.
Mas, em nota técnica emitida pela Abrasco (Associação Brasileira de
Saúde Coletiva) é destacada outras variáveis na epidemia de microcefalia como o
quadro sanitário de onde emergem os casos e o modelo de controle vetorial pelo
chamado “fumacê” – o uso de produtos químicos que desconsidera a fragilidade
biológica e socioambiental de comunidades pobres.
A exemplo do Malathion, neurotóxico para o sistema nervoso central e
periférico, além de provocar náuseas, vômitos, diarreia, dificuldade
respiratória e fraqueza muscular – sobre a nota da Abrasco clique aqui.
Refém que o Governo Federal é do agendamento da grande mídia, e às
vésperas das Olimpíadas, a presidenta se apressa em “declarar guerra ao zika” e
“formar um exército da paz e da saúde”.
Enquanto isso, a gripe comum mata 500 mil pessoas por ano no mundo; dois
milhões de mortes anuais por malária; dois milhões de mortes anuais por
diarreia e dez milhões de mortes anuais por doenças curáveis como sarampo ou
pneumonia. E que jamais ganham as primeiras páginas de jornais e escaladas dos
telejornais.
Mortes que poderiam ser evitadas por medidas simples como mosquiteiros e
soro caseiro. O que passa longe dos interesses da indústria biofarmacêutica,
interessada em medidas de saúde pública muito mais lucrativas.
Sabendo-se que esse setor, ao lado de armamentos e tabacos, é um dos que
mais investem em táticas de agendamento nas mídia mundiais, temos uma
convergência de interesses: para indústria biofarmacêutica o pânico e a
desinformação é bom para os negócios por criar pandemias autorrealizáveis (como
no caso da febre amarela no Brasil em 2008); e para a grande mídia, pânico e
medo produzem a falsa necessidade das suas informações, tentando recuperar uma
relevância inevitavelmente perdida.
Como se a vacina estivesse matando o próprio paciente.
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