sexta-feira, julho 18, 2014

Lição para trainees da TV Globo: análise de um vídeo "fractal"

Sintoma? Ato falho? Autoparódia? Provocação? Talvez seja tudo isso, um verdadeiro vídeo “fractal” (figura geométrica similar a um padrão que se repete em escala maior) feito para promover o Programa de Trainees 2014 da TV Globo. Certamente, a primeira lição para os trainees da emissora poderia ser a de analisar esse vídeo performado por Marcius Melhem e Marcelo Adnet: um general estilizado recruta jovens de 18 anos para o alistamento na “maior emissora de comunicação do... Brazziilll” (o nome do País em sotaque inglês). Sabendo-se das polêmicas origens da TV Globo no período da ditadura militar, podemos encontrar no “teaser” promocional o reflexo da corda bamba em que se encontra atualmente a TV Globo entre ter que ser politicamente de oposição e, ao mesmo tempo, aparentar transparência e modernidade.

O “Banco de Talentos”, site de recrutamento onde a TV Globo forma sua verdadeira reserva de mão de obra cadastrando candidatos a diversos programas corporativos da emissora, publicou uma página do Programa de Trainee Globo 2014. Visualmente a página é interessante e até saudosa: lembra os projetos visuais da extinta MTV Brasil com as fontes de texto irregulares, o grafismo com ares retro e no destaque Marcelo Adnet em cena do vídeo promocional do programa.

Se o gigante se conhece pelo dedo, esse vídeo promocional é uma ótima oportunidade para os jovens candidatos conhecerem o DNA da emissora na qual pretendem trabalhar. O site possui até uma página intitulada “Conhecendo a Rede Globo” onde encontramos um daqueles textos com estilo corporativo eufemístico falando de “missão”, “sonhos” e “líderes”.


Mas é no vídeo promocional que o futuro trainee pode conhecer a verdadeira Rede Globo, sua origem, história e natureza. De uma forma irônica, quase como um chiste ou ato falho, a emissora deixa escapar nas suas metáforas a origem e vocação histórica. O vídeo é um verdadeiro fractal da TV Globo: figura geométrica não-euclidiana cuja estrutura é similar a um padrão que se repete em uma escala maior.

O vídeo


O vídeo inicia com um general estilizado feito pelo comediante Marcius Melhem fazendo uma alusão às antigas propagandas do Exército brasileiro convocando para o alistamento militar obrigatório: “você que tem 18 anos...” Ao fundo uma enorme bandeira com o logo da TV Globo convertida numa analogia à bandeira nacional. A composição do general estilizado, a bandeira ao fundo e a entonação ironicamente lembram o espírito propagandístico do “Brasil, Ame-o ou Deixe-o” do antigo regime militar brasileiro (1964-1985).

Para quem conhece a história da emissora, sabe que a Globo cresceu sob o apoio do regime militar que ela própria não só apoiou como participou ativamente da desestabilização do governo Goulart (1962-64) que criou condições políticas para o golpe militar em 1964. Tanto que, no ano passado, as Organizações Globo não resistiram às crescentes manifestações (“A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura”) e através do Jornal O Globo reconheceu 50 anos depois que o apoio ao Golpe foi um erro.

Que as corporações vejam os processos seletivos pela metáfora militarista do recrutamento isso não é novidade: depois de anos de discursos humanistas nas organizações sobre “capital humano”, “gestão holística” etc., a empresas continuam através dessas metáforas gerenciais militares mostrando que continuam a mesma – hierarquizadas, verticalizadas e autoritárias. Mas no caso desse vídeo do programa global de trainees há algo a mais: um ato falho sobre suas origens? Um provocativo autodistanciamento irônico? Um incontrolável cacoete que lembraria aquele do Dr. Fantástico do filme de Kubrick cujo braço direito involuntariamente se levantava para fazer a saudação nazi?

O fato é que assistindo ao vídeo podemos claramente perceber índices e alusões que confirmariam todas essas hipóteses:

Generais, condecorações e Big Brother


(a) A composição da bandeira nacional/TV Globo, general estilizado em um púlpito remete iconicamente a todo o imaginário cinematográfico e pop dos golpes e ditaduras militares nas chamadas “repúblicas de bananas” da América Latina dos anos 1960-70. Um ato falho revelador das históricas origens da emissora?

(b) A certa altura o general estilizado de Marcius Melhem fala “venha fazer parte da maior empresa de comunicação... (pausa dramática) do Brazilll”, fala o nome do País com um sugestivo sotaque inglês. Nas controvertidas origens da emissora, discute-se o famoso Caso Globo/Time-Life, acordo financeiro e tecnológico com o grupo norte-americano firmado em 1965, à época ilegal pela Constituição brasileira não permitir a participação estrangeira em uma empresa nacional de comunicação.

Isso sem falar na ingerência logística e ideológica da CIA na criação das condições políticas e ideológicas para o Golpe Militar no qual a TV Globo assumidamente participou. Uma alusão irônica? Provocação? Ato falho? Realmente, a figura de um general estilizado falando “Brasil” com sotaque inglês dá no que pensar...
Acima:
cena do documentário
"Muito Além do Cidadão Kane";
Abaixo: Adnet como
trainee condecorado

(c) Marcelo Adnet sendo condecorado pelo general estilizado. Uma irresistível alusão icônica a famosa sequência do censurado documentário inglês Muito Além do Cidadão Kane (Beyond Citizen Kane, 1993) onde mostra imagens do telejornalismo da emissora mostrando Roberto Marinho sendo condecorado em uma cerimônia militar para ilustrar a tese de que a TV Globo crescia fora de qualquer controle público ou político – veja fotos ao lado e sobre o documentário clique aqui.

(d) Autorreferência irônica da TV Globo: a certa altura do vídeo vemos um grupo de soldados/trainees correndo pela cidade cenográfica da emissora cantando “e na Globo vou crescer sem entrar entrar no BB”, sob a discordância de Pedro Bial, apresentador do reality Big Brother Brasil, que balança a cabeça negativamente. Alusão cínica a todas as críticas aos brothers que chegam à fama e fortuna sem talento ou mérito? Ironia da ascensão social por atalhos como fazem apresentadores da emissora como Luciano Huck que durante a Copa sugeriu que as garotas pegassem um turista gringo para se casarem?

(e) Marcelo Adnet surge empunhando uma metralhadora, vira o boné para trás e invade o prédio da emissora de forma ameaçadora, pulando a catraca da portaria sob o olhar assustado de funcionários. Mais alusões irônicas, dessa vez a protestos e “ataques” contra o prédio da emissora nas manifestações de rua do ano passado – pichações, raio laser etc. Mas logo isso passa e assume a figura do trainee que bate obedientemente continência.

TV Globo sob tensão


 Desde o documentário Muito Além do Cidadão Kane já era apontado que a TV Globo sentia a necessidade de se livrar da associação que sempre teve com o regime militar brasileiro, principalmente com o retorno à normalidade democrática ao País. Essa necessidade se tornou ainda maior com a escalada das manifestações de rua e a animosidade contra equipes de reportagem da Globo que se viam na obrigação de retirar qualquer identificação da emissora ou fazer imagens aéreas.

À crise de audiência e de credibilidade do seu jornalismo, a TV Globo respondeu com uma mudança estética do Fantástico e telejornais, abandonando a estética futurista space opera de Hans Donner para adotar uma repaginada visual mais orgânica e “comunitária” (mais interatividade com direito a simulações de reunião de pauta jornalística). O resultado está sendo uma linguagem cada vez mais autista: auterreferencial e metalinguística, com programas que fazem alusões a outros programas da própria emissora, pautas de ficção que se misturam com não-ficção e a obsessiva necessidade de demonstrar “transparência”, nem que seja apenas estética – como o estúdio de vidro que cobria a Copa no canal SporTV da Globo.


A TV Globo vive a tensão de se demonstrar independente e transparente ao mesmo tempo em que assumiu o papel de oposição ao Governo Federal diante de uma oposição político-partidária hesitante. O vídeo do programa de trainees da emissora pode ser o sintoma dessa contradição de ao mostrar, de um lado, a imagem comunitária, moderna e interativa e, do outro, o fantasma do passado que de forma fractal teimosamente reaparece em seus produtos.



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