Sintoma? Ato falho? Autoparódia? Provocação?
Talvez seja tudo isso, um verdadeiro vídeo “fractal” (figura geométrica similar
a um padrão que se repete em escala maior) feito para promover o Programa de
Trainees 2014 da TV Globo. Certamente, a primeira lição para os trainees da
emissora poderia ser a de analisar esse vídeo performado por Marcius Melhem e
Marcelo Adnet: um general estilizado recruta jovens de 18 anos para o
alistamento na “maior emissora de comunicação do... Brazziilll” (o nome do País
em sotaque inglês). Sabendo-se das polêmicas origens da TV Globo no período da
ditadura militar, podemos encontrar no “teaser” promocional o reflexo da corda
bamba em que se encontra atualmente a TV Globo entre ter que ser politicamente
de oposição e, ao mesmo tempo, aparentar transparência e modernidade.
O “Banco de Talentos”, site de recrutamento onde a
TV Globo forma sua verdadeira reserva de mão de obra cadastrando candidatos a
diversos programas corporativos da emissora, publicou uma página do Programa de Trainee Globo 2014. Visualmente a página é interessante e até saudosa: lembra os
projetos visuais da extinta MTV Brasil com as fontes de texto irregulares, o
grafismo com ares retro e no destaque Marcelo Adnet em cena do vídeo
promocional do programa.
Se o gigante se conhece pelo dedo, esse vídeo
promocional é uma ótima oportunidade para os jovens candidatos conhecerem o DNA
da emissora na qual pretendem trabalhar. O site possui até uma página intitulada
“Conhecendo a Rede Globo” onde encontramos um daqueles textos com estilo
corporativo eufemístico falando de “missão”, “sonhos” e “líderes”.
Mas é no vídeo promocional que o futuro trainee pode
conhecer a verdadeira Rede Globo, sua origem, história e natureza. De uma forma
irônica, quase como um chiste ou ato falho, a emissora deixa escapar nas suas
metáforas a origem e vocação histórica. O vídeo é um verdadeiro fractal da TV
Globo: figura geométrica não-euclidiana cuja estrutura é similar a um padrão
que se repete em uma escala maior.
O vídeo
O vídeo inicia com um general estilizado feito pelo
comediante Marcius Melhem fazendo uma alusão às antigas propagandas do Exército
brasileiro convocando para o alistamento militar obrigatório: “você que tem 18
anos...” Ao fundo uma enorme bandeira com o logo da TV Globo convertida numa
analogia à bandeira nacional. A composição do general estilizado, a bandeira ao
fundo e a entonação ironicamente lembram o espírito propagandístico do “Brasil,
Ame-o ou Deixe-o” do antigo regime militar brasileiro (1964-1985).
Para quem conhece a história da emissora, sabe que a
Globo cresceu sob o apoio do regime militar que ela própria não só apoiou como
participou ativamente da desestabilização do governo Goulart (1962-64) que
criou condições políticas para o golpe militar em 1964. Tanto que, no ano passado,
as Organizações Globo não resistiram às crescentes manifestações (“A verdade é
dura, a Globo apoiou a ditadura”) e através do Jornal O Globo reconheceu 50 anos depois que o apoio ao Golpe foi um erro.
Que as corporações vejam os processos seletivos pela
metáfora militarista do recrutamento isso não é novidade: depois de anos de
discursos humanistas nas organizações sobre “capital humano”, “gestão holística”
etc., a empresas continuam através dessas metáforas gerenciais militares
mostrando que continuam a mesma – hierarquizadas, verticalizadas e autoritárias.
Mas no caso desse vídeo do programa global de trainees há algo a mais: um ato
falho sobre suas origens? Um provocativo autodistanciamento irônico? Um incontrolável
cacoete que lembraria aquele do Dr. Fantástico do filme de Kubrick cujo braço
direito involuntariamente se levantava para fazer a saudação nazi?
O fato é que assistindo ao vídeo podemos claramente
perceber índices e alusões que confirmariam todas essas hipóteses:
Generais, condecorações e Big Brother
(a) A composição da bandeira nacional/TV Globo,
general estilizado em um púlpito remete iconicamente a todo o imaginário
cinematográfico e pop dos golpes e ditaduras militares nas chamadas “repúblicas
de bananas” da América Latina dos anos 1960-70. Um ato falho revelador das
históricas origens da emissora?
(b) A certa altura o general estilizado de Marcius
Melhem fala “venha fazer parte da maior empresa de comunicação... (pausa dramática)
do Brazilll”, fala o nome do País com um sugestivo sotaque inglês. Nas
controvertidas origens da emissora, discute-se o famoso Caso Globo/Time-Life,
acordo financeiro e tecnológico com o grupo norte-americano firmado em 1965, à
época ilegal pela Constituição brasileira não permitir a participação
estrangeira em uma empresa nacional de comunicação.
Isso sem falar na ingerência logística e ideológica
da CIA na criação das condições políticas e ideológicas para o Golpe Militar no
qual a TV Globo assumidamente participou. Uma alusão irônica? Provocação? Ato
falho? Realmente, a figura de um general estilizado falando “Brasil” com
sotaque inglês dá no que pensar...
Acima: cena do documentário "Muito Além do Cidadão Kane"; Abaixo: Adnet como trainee condecorado |
(c) Marcelo Adnet sendo condecorado pelo general
estilizado. Uma irresistível alusão icônica a famosa sequência do censurado documentário
inglês Muito Além do Cidadão Kane
(Beyond Citizen Kane, 1993) onde mostra imagens do telejornalismo da emissora
mostrando Roberto Marinho sendo condecorado em uma cerimônia militar para
ilustrar a tese de que a TV Globo crescia fora de qualquer controle público ou
político – veja fotos ao lado e sobre o documentário clique
aqui.
(d) Autorreferência irônica da TV Globo: a certa
altura do vídeo vemos um grupo de soldados/trainees correndo pela cidade cenográfica
da emissora cantando “e na Globo vou crescer sem entrar entrar no BB”, sob a discordância
de Pedro Bial, apresentador do reality Big
Brother Brasil, que balança a cabeça negativamente. Alusão cínica a todas as críticas aos brothers que chegam à fama
e fortuna sem talento ou mérito? Ironia da ascensão social por atalhos como
fazem apresentadores da emissora como Luciano Huck que durante a Copa sugeriu
que as garotas pegassem um turista gringo para se casarem?
(e) Marcelo Adnet surge empunhando uma metralhadora,
vira o boné para trás e invade o prédio da emissora de forma ameaçadora,
pulando a catraca da portaria sob o olhar assustado de funcionários. Mais
alusões irônicas, dessa vez a protestos e “ataques” contra o prédio da emissora
nas manifestações de rua do ano passado – pichações, raio laser etc. Mas logo
isso passa e assume a figura do trainee que bate obedientemente continência.
TV Globo sob tensão
Desde o
documentário Muito Além do Cidadão Kane já
era apontado que a TV Globo sentia a necessidade de se livrar da associação que
sempre teve com o regime militar brasileiro, principalmente com o retorno à
normalidade democrática ao País. Essa necessidade se tornou ainda maior com a
escalada das manifestações de rua e a animosidade contra equipes de reportagem
da Globo que se viam na obrigação de retirar qualquer identificação da emissora
ou fazer imagens aéreas.
À crise de audiência e de credibilidade do seu
jornalismo, a TV Globo respondeu com uma mudança estética do Fantástico e
telejornais, abandonando a estética futurista space opera de Hans Donner para
adotar uma repaginada visual mais orgânica e “comunitária” (mais interatividade
com direito a simulações de reunião de pauta jornalística). O resultado está
sendo uma linguagem cada vez mais autista: auterreferencial e metalinguística,
com programas que fazem alusões a outros programas da própria emissora, pautas
de ficção que se misturam com não-ficção e a obsessiva necessidade de
demonstrar “transparência”, nem que seja apenas estética – como o estúdio de
vidro que cobria a Copa no canal SporTV da Globo.
A TV Globo vive a tensão de se demonstrar
independente e transparente ao mesmo tempo em que assumiu o papel de oposição
ao Governo Federal diante de uma oposição político-partidária hesitante. O
vídeo do programa de trainees da emissora pode ser o sintoma dessa contradição
de ao mostrar, de um lado, a imagem comunitária, moderna e interativa e, do
outro, o fantasma do passado que de forma fractal teimosamente reaparece em
seus produtos.
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