terça-feira, julho 22, 2014
Wilson Roberto Vieira Ferreira
A série de curtas “Killer Cuisine” (2010) do norte-americano
Ross Goodman é uma surreal e hilária paródia dos clichês da gastronomia midiática: um
cozinheiro, cujo avô foi um açougueiro na Alemanha à época do nazismo, fuma
compulsivamente na cozinha enquanto manipula alimentos e facas de forma
agressiva, sob uma trilha sonora que varia de um melancólico blues às músicas
de terror B nos anos 1950. Enquanto isso uma mulher é amarrada e embebedada
com vinho branco à espera de ser o próximo ingrediente culinário. Os curtas são uma
verdadeira aula sobre aquilo que em linguagem cinematográfica se chama “efeito
Kuleshov” e também suscitam um debate sobre os alimentos regidos pela lógica do
“look” e do “light” dos chefes de cozinha midiáticos. Veja os curtas.
O entorno do Shopping Eldorado em São Paulo parou em
longas filas nesse último domingo para ver uma apresentação de Buddy Valastro,
o chefe estrela do reality show televisivo Cake
Boss. Ônibus de excursões, gente aguardando 24 horas na fila, pessoas
dormindo em carros, tudo para ver o confeiteiro mestre dos bolos fazendo uma
breve demonstração e posando para fotos com alguns sortudos.
Acabou a era dos programas culinários na TV com
ex-donas de casa como a Palmirinha ou a “maravilhosa cozinha de Ofélia”. Hoje
culinária virou Gastronomia e as tradicionais donas de casa foram substituídas
por chefes de cozinha onde seus programas oferecem mais do que receitas e
preparos de pratos para a família: transformaram-se em reality shows com
histórias de empreendedorismo, vitórias e derrotas.
Se o leitor quiser um antídoto a essa midiatização generalizada
dos alimentos com surrealismo combinado com pitadas de sátira e horror em torno
da Gastronomia, então terá na série de curtas de Ross Goodman chamada Killer Cuisine um (desculpe o
trocadilho) prato cheio. Nos curtas, o protagonista é um ensimesmado chefe que
fuma compulsivamente enquanto cozinha, com um estranho sotaque que mistura
inglês, francês e italiano às voltas com sua coleção de facas dispostas como
numa sala de cirurgias. E para completar, seu avô foi um açougueiro alemão à
época do regime nazista...
O irônico é que seus curtas são verdadeiras aulas
culinárias: o primeiro curta ensina a fazer húmus com salada mediterrânea e o
segundo, um prato de filé de frango recheado com queijo e ervas acompanhado de
quinoa. Tudo com uma locução em of de
uma delicada voz feminina, mas com toques de agressividade e violência: sim!
Tirar a casca de um pepino ou abrir um peito de frango pode ser encarado como um
ato cruel.
Cozinha
retro e assassina
A série Killer
Cuisine tem uma estética retro: em preto e branco (para que fluídos e
texturas dos alimentos assumam estranhos aspectos) e com trilha musical entre
melancólicos blues ou sons que saíram de filmes de terror B dos anos 1950.
Além disso, os curtas são uma autêntica aula de
edição e montagem, principalmente sobre aquilo que em linguagem cinematográfica
se chama “efeito Kuleshov”: a montagem (justaposição de planos, transições,
trilha sonora etc.) pode levar a um conjunto de evocações do real, muito além
do que aquilo que os enquadramentos estão objetivamente mostrando. No primeiro
curta, os passos de uma receita de húmus e os manuseios dos ingredientes de uma
salada podem se transformar em uma atmosfera de tensão e horror.
A sátira dos curtas de Ross Goodman parece não se
voltar às origens antropológicas do alimento – aquilo que fez o homem transcender
a Natureza e entrar no reino da Cultura ao superar a crueza dos alimentos
através do fogo – o frito, o cozido e o assado. Seu alvo é a afetação da
Gastronomia midiática que busca a popularização mantendo fragmentos de signos
da alta Gastronomia – o uniforme do chefe, o sotaque francês, a taça de vinho
branco para o chefe degustar a cada pausa como se buscasse inspiração
artística. O toque politicamente incorreto são as baforadas de cigarro enquanto
prepara os pratos. E uma vítima que é torturada e embebedada enquanto espera
ser o próximo ingrediente da Killer Cuisine.
A
cozinha ornamental, look e light
A midiatização dos alimentos produz aquilo que uma
vez o semiólogo francês Roland Barthes chamou de “cozinha ornamental”: um tipo
de cozinha que persegue o chic, a
distinção, o exclusivo escondendo os alimentos nos molhos, cremes, coberturas, fondants e geleias. Uma cozinha que se
esforça em atenuar, ou mesmo mascarar, a origem primária dos alimentos: a
brutalidade da carne, o abrupto dos crustáceos, gosmas, fluídos, cascas e
sementes.
Como não poderia deixar de ser, a culinária
televisiva é uma experiência eminentemente cromática e visual e, por isso, deve
ser regido pelos princípios do look e
do light. Assim como o corpo tem que
ser “descorporificado” (deve ser excluído tudo que lembre sua animalidade como
a rugosidade, a textura, a resistência, a umidade, dobras, estrias etc.), da
mesma forma do alimento e o próprio ato de comer devem ser neutralizados de
tudo aquilo que lembre que ainda somos animais que descendem da natureza.
Um alimento não é simplesmente cru: ele foi lavado,
cortado, descascado ou temperado. A fuga da natureza é reforçada por uma
espécie de “barroco delirante”, como dizia Barthes: cogumelos recortados, arabescos
de frutas cristalizadas, pontilhados de cerejas, raspas de cascas de limão, ingredientes
montados em elaborados pratos com estampas coloniais. Envolto em uma complexa
ornamentação o alimento acaba se tornando uma jazida incerta.
A crueza somente é admitida em pratos camponeses,
rurais ou regionais: o osso buco, o músculo, a rabada, o leitão desmembrado em
um cepo rústico colocado em abundante gordura animal em enormes pratos de ferro
acabam se tornando a fantasia rural de esnobes da cidade.
O alimento deve ter um look para ter valor de troca e ser cotado no mercado. Ao ser
submetido ao império visual, o alimento passa a ter o mesmo destino dos
alimentos processados industrialmente: a inversão entre a matéria e a cor. Como
os alimentos devem ser sedutores e nos fazer comê-los “com os olhos”, passamos
a nos encontrar numa substituição progressiva da relação direta da percepção
humana com os materiais pela hipertrofia das representações visuais.
Assim como nos supermercados a coloração real das
carnes é substituída por arranjos de luz, acomodação em travessas de isopor
enroladas em plástico ou montadas em arranjos com legumes e verduras, na
gastronomia midiática as cores são hiperrealizadas na crosta, molhos,
coberturas, filetes e cortes ornamentais.
O paroxismo dessa desconexão entre a materialidade,
forma e cor está na confeitaria de Buddy Valastro e seus bolos que emulam
estádios de basebol, carros, arranha-céus e transatlânticos. O espírito do seu
sucesso midiático reside na fantasia mimética e kitsch da classe média em
relação aos objetos – cinzeiros que imitam selas de cavalo, isqueiros em forma
de cigarro, jarros de suco de plástico em forma de abacaxi.
Muitos nutricionistas já observaram as consequências
dessa inversão na percepção humana entre matéria e cor e as consequência para a
saúde como, por exemplo, a obesidade – a cor e a forma dos alimentos poderiam
enganar a percepção humana como o caso dos alimentos líquidos ou pastosos que
muitas vezes pode engordar muito mais do que o alimento sólido.
A série Killer
Cuisine é estimulante, pois atrás da sua paródia politicamente incorreta
desconstrói todos os clichês da gastronomia midiática. Os curtas de Ross
Goodman demonstram que diante da cultura midiática que nos envolve, somente o
exagero, o mau gosto proposital e estética trash
têm alguma força para denunciar as estratégias ficcionais onde até a natureza
transforma-se em caricatura dela mesma.
Ficha
Técnica
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Título: Killer
Cuisine
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Direção: Ross Goodman
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Roteiro:
Alex Khan
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Elenco: Ross
Goodman, Ariella Trina, Ben Stinson, Shannon Sigler (voz)
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Produção:
CP4 Productions
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Distribuição:
on line
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Ano: 2010
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País: EUA
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