Crítica e público estão massacrando o filme “Transcendence
– A Revolução” (2014). Todos esperavam um sci fi clássico com super-heróis e
narrativas de ação e terror. Mas o filme nos oferece uma extrapolação do atual
discurso autopromocional das neurociências e ciências da computação através do
olhar de uma autêntica fábula nietzschiana sobre o Poder: a grande questão da
onisciência e onipresença de uma suposta superinteligência digital por trás de corporações
como Google e do projeto da Internet das Coisas não é a do Poder vulgar em
conquistar mais dinheiro e controle político: é o Poder pelo Poder, como jogo,
vontade de potência em transcender os limites da ética e moral humana
representado pela superação do próprio corpo.
Nelson Rodrigues dizia que toda unanimidade é burra.
Certamente essa máxima pode ser aplicada à forma como a crítica e o público
está recebendo o filme Transcendence – A
Revolução. Bilheterias decepcionantes nos EUA e Brasil e péssimas críticas
tanto aqui como lá.
“Muito conceito e pouca história para contar”,
“explicações incessantes”, “elenco estrelado (Johnny Deep, Morgan Freeman e
Cillian Murphy e Paul Bettany) que parecem não saber o que fazer trocando
frases soltas entre si”, “pretensioso e chato” etc. O que parece criar
estranhamento para os críticos são os desempenhos “contidos” ou até “robóticos”
do protagonista Deep e um filme que parece investir muito mais nas rimas
visuais e em conceitos abstratos do que em uma história dramática.
Crítica e público esperavam um “filme de ficção
científica” com super-heróis ou narrativas de ação e terror com um “sabor” de sci-fi, que é o que normalmente
Hollywood oferece. Mas o que o diretor Wally Pfister (desde o filme Amnésia diretor de fotografia dos filmes
de Christopher Nolan) foi uma verdadeira ficção científica: a partir da agenda
tecnologia atual, extrapolar para onde estamos indo e o que isso pode
significar para a raça humana, intelectual e espiritualmente.
O que talvez tenha estimulado esse boicote quase
generalizado da crítica é que Transcendence acerta em cheio no cerne da atual
agenda tecnognóstica: a transcendência da própria existência por meio de uma
superinteligência “em nuvem” capaz de integrar sociedade e natureza numa
gigantesca rede neural por meio de nanotecnologia (Google? Internet das
Coisas?). E o que há por trás dessa agenda? O poder em sua forma mais pura e
abstrata: a vontade de potência. Por isso Transcendence
é o mais nietzschiano filme sobre tecnologia jamais feito.
O filme
Johnny Deep faz uma espécie de Dr. Frankenstein
moderno, Will Caster, um neurocientista especializado em inteligência
artificial que no início do filme confronta uma plateia numa palestra sobre as
possibilidades de mudar o mundo através da “singularidade tecnológica” – a
criação de um computador autoconsciente que atravessaria a fronteira entre o
homem e a máquina. Acusado de tentar criar um novo Deus (“e não é isso que o
homem sempre tentou?”, responde), Caster sofre um atentado de terroristas
anti-tecnologia e escapa ferido.
Mas logo descobre que não era um simples atentado à
bala: ele foi contaminado por um elemento radioativo e morrerá em pouco tempo.
Diante da morte iminente, sua esposa e pesquisadora Evelyn (Rebecca Hall) e
Will Caster decidem fazer um upload da sua consciência para o banco de dados do
gigantesco computador chamado P!NN (um mix de computação quântica e rede neural
física e independente, projeto de Caster).
Após a ousada operação, sua consciência ressurge
como uma espécie de fac símile da sua alma e prontamente exige um acesso
super-rápido à Internet. Mas o que ou quem é essa nova entidade digital sensciente?
A reencarnação digital do amor perdido de Evelyn? Ou uma entidade cada vez mais
voraz, uma extensão tecnológica distorcida das próprias ambições de Will
Caster?
A entidade digital que habita a plataforma P!NN
expressa as intenções messiânicas e de compaixão com o ser humano e o próprio
planeta: quer “consertar” deficientes físicos, doentes e livrar a Terra dos
problemas ecológicos. Através de nanorobots criados em um gigantesco
laboratório nos subterrâneos de um vilarejo perdido no meio do deserto, a
versão digital de Caster consegue fazer mortos reviverem, cegos e deficientes
físicos se curarem e até fazer chover por meio da nanotecnologia que começa a
espalhar fractais da superinteligência de Caster na própria natureza. Só que,
em troca, os seres humanos curados tornam-se “híbridos”, hospedeiros desses
fractais da superinteligência como formigas comandadas por uma formiga-rainha.
Caster transformado em uma superinteligência onisciente e onipresente cria um
exército de quase autônomos dispostos a proteger o seu propósito mais profundo:
abandonar a plataforma P!NN e se integrar ao próprio tecido da realidade, uma
superinteligência “em nuvem” – o panteísmo digital.
O discurso autopromocional das neurociências
O irônico no filme (pois simbolicamente apresenta o
atual discurso autopromocional das neurociências) são os bem intencionados
propósitos da revolução tecnológica de Will Caster: a cura do Mal de
Alzeheimer, evitar a destruição do planeta, acabar com fome e guerras, fazer
cegos enxergarem e paralíticos andarem..., mas sob o preço de criar uma nova
ordem autoritária de controle e dominação, contra a qual os terroristas antitecnologia
lutam. Como no atual discurso messiânico da agenda tecnognóstica, a
transcendência de Caster é uma mistura de misticismo, religião e tecnologia.
Transcendence é o mais nietzschiano
filme sobre tecnologia porque revela que por trás de todo esse discurso bem
intencionado sobre a tecnologia promovido pelas grandes corporações e
neurocientistas está a vontade de
potência como a própria essência do Poder. Essência amplificada em um
discurso tecnognóstico que limita a inteligência e a consciência a um fenômeno
da mente e que transcenderia as limitações corporais.
Nietzsche e a Vontade de Potência
O conceito de Vontade de Potência foi criado pelo
filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900). A Vontade de Potência estaria
em todo universo como luta constante, sem equilíbrio possível, apenas tensão
pelo incessante movimento das coisas, ora delicado, ora violento. Movimento que
vai das reações químicas à psique humana.
É a vontade que procura
expandir-se, superar-se, juntar-se a outras e se tornar maior. Tudo no mundo é
Vontade de Potência porque todas as forças procuram a sua própria expansão. A
vontade de dominar, fazer-se mais forte, constranger outras forças mais fracas
e assimilá-las.
A chave de compreensão do filme Transcendence está na fala da consciência de Will Caster quando
desperta no interior de P!NN:
“Vou precisar expandir. Preciso de mais energia. Preciso de um processador três vezes mais rápido do que o sistema atual. Não consigo descrever, é como minha mente estivesse livre. Precisam me colocar on line. Preciso acessar mercados financeiros, banco de dados educacionais...”.
Evelyn está diante do seu amor perdido ou diante de
uma estranha criatura digital? A questão não é mais essa: Transcendence revela a mais abstrata forma de Poder, não mais
político ou econômico (Poder como um meio para ter), mas como Vontade por si
mesma, de um eterno dizer-sim ao devir universal por Potência.
A sensação de liberdade experimentada pela
consciência de Will Caster pode ser comparada, guardada as proporções, com a
própria experiência que a tecnologia digital promete proporcionar aos usuários.
Diversos pesquisadores em cibercultura apontam para esse fascínio por
transcender as supostas limitações corporais. Por exemplo, o cientista
computacional Jaron Lanier fala que busca gnóstica em transcender a carne seria o emocional subtexto por
trás da eufórica reação a cada novidade em informática no mercado e a cada website ou blog com frivolidades que é lançado. Lanier fala em uma “religião
das máquinas” que seria o élan das pesquisas do Vale do Silício – sobre isso clique
aqui.
Erick Felinto vai nomear este sujeito das ciberutopias como “sujeito pneumático”, uma
forma de subjetividade que se pretende libertar dos limites do corpo, um self quase divino e de natureza
espiritual (pneuma). Este sujeito
pneumático teria as seguintes características: a comunicação total (como anjos
incorpóreos vagando pelo ciberespaço sem barreiras para comunicar-se), por meio
da “hipermediação que equivale à imediação das mídias digitais” e a mobilidade
total – leia FELINTO, Erick “A
Tecnoreligião e o Sujeito Pneumático”.
Essa consciência pneumática e livre dos
constrangimentos corporais teria uma relação com o outro rarefeita e precária.
Como destaca o filme Transcendence, o
outro se converte em mera extensão de uma superinteligência, negando a
individualidade e privacidade – a versão digital de Will Caster vai querer
controlar, prever e suprir tudo não por ter se tornado maligno, mas por ter a
liberdade plena de exercer a Vontade de Potência.
Sem as âncoras com o mundo real (finitude,
temporalidade e senso de fragilidade corporal) a superinteligência perde as
bases de toda ética e moral: a experiência corporal de extensão – onde termina
o meu eu e onde começa o outro?
A grande virtude de Transcendence é a de ser uma fábula nietzschiana sobre o problema
do Poder dentro da atual agenda tecnognóstica – a confluência entre
Inteligência Artificial, neurociências e computação. A grande questão da futura
onisciência e onipresença de corporações como Google e aquelas por trás do
projeto da Internet das Coisas (sobre isso clique
aqui) não é a do Poder vulgar em conquistar mais dinheiro e controle
político: é o Poder pelo Poder, como jogo, vontade de potência em transcender
os limites impostos pela ética e moral humana representado pela superação do
próprio corpo.
Ficha Técnica |
Título: Transcendence
– A Revolução
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Direção: Wally Pfister
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Roteiro:
Jack Paglen
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Elenco: Johnny Deep, Rebeca Hall, Morgan Freeman, Paul Bettany
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Produção:
Alcon Entertainment,
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Distribuição:
Warner Bros
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Ano: 2014
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País: EUA
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