domingo, julho 20, 2014

"Transcendence" mostra fábula nietzschiana sobre tecnologia e poder

Crítica e público estão massacrando o filme “Transcendence – A Revolução” (2014). Todos esperavam um sci fi clássico com super-heróis e narrativas de ação e terror. Mas o filme nos oferece uma extrapolação do atual discurso autopromocional das neurociências e ciências da computação através do olhar de uma autêntica fábula nietzschiana sobre o Poder: a grande questão da onisciência e onipresença de uma suposta superinteligência digital por trás de corporações como Google e do projeto da Internet das Coisas não é a do Poder vulgar em conquistar mais dinheiro e controle político: é o Poder pelo Poder, como jogo, vontade de potência em transcender os limites da ética e moral humana representado pela superação do próprio corpo.

Nelson Rodrigues dizia que toda unanimidade é burra. Certamente essa máxima pode ser aplicada à forma como a crítica e o público está recebendo o filme Transcendence – A Revolução. Bilheterias decepcionantes nos EUA e Brasil e péssimas críticas tanto aqui como lá.

“Muito conceito e pouca história para contar”, “explicações incessantes”, “elenco estrelado (Johnny Deep, Morgan Freeman e Cillian Murphy e Paul Bettany) que parecem não saber o que fazer trocando frases soltas entre si”, “pretensioso e chato” etc. O que parece criar estranhamento para os críticos são os desempenhos “contidos” ou até “robóticos” do protagonista Deep e um filme que parece investir muito mais nas rimas visuais e em conceitos abstratos do que em uma história dramática.

Crítica e público esperavam um “filme de ficção científica” com super-heróis ou narrativas de ação e terror com um “sabor” de sci-fi, que é o que normalmente Hollywood oferece. Mas o que o diretor Wally Pfister (desde o filme Amnésia diretor de fotografia dos filmes de Christopher Nolan) foi uma verdadeira ficção científica: a partir da agenda tecnologia atual, extrapolar para onde estamos indo e o que isso pode significar para a raça humana, intelectual e espiritualmente.


O que talvez tenha estimulado esse boicote quase generalizado da crítica é que Transcendence acerta em cheio no cerne da atual agenda tecnognóstica: a transcendência da própria existência por meio de uma superinteligência “em nuvem” capaz de integrar sociedade e natureza numa gigantesca rede neural por meio de nanotecnologia (Google? Internet das Coisas?). E o que há por trás dessa agenda? O poder em sua forma mais pura e abstrata: a vontade de potência. Por isso Transcendence é o mais nietzschiano filme sobre tecnologia jamais feito.

O filme


Johnny Deep faz uma espécie de Dr. Frankenstein moderno, Will Caster, um neurocientista especializado em inteligência artificial que no início do filme confronta uma plateia numa palestra sobre as possibilidades de mudar o mundo através da “singularidade tecnológica” – a criação de um computador autoconsciente que atravessaria a fronteira entre o homem e a máquina. Acusado de tentar criar um novo Deus (“e não é isso que o homem sempre tentou?”, responde), Caster sofre um atentado de terroristas anti-tecnologia e escapa ferido.

Mas logo descobre que não era um simples atentado à bala: ele foi contaminado por um elemento radioativo e morrerá em pouco tempo. Diante da morte iminente, sua esposa e pesquisadora Evelyn (Rebecca Hall) e Will Caster decidem fazer um upload da sua consciência para o banco de dados do gigantesco computador chamado P!NN (um mix de computação quântica e rede neural física e independente, projeto de Caster).

Após a ousada operação, sua consciência ressurge como uma espécie de fac símile da sua alma e prontamente exige um acesso super-rápido à Internet. Mas o que ou quem é essa nova entidade digital sensciente? A reencarnação digital do amor perdido de Evelyn? Ou uma entidade cada vez mais voraz, uma extensão tecnológica distorcida das próprias ambições de Will Caster?

A entidade digital que habita a plataforma P!NN expressa as intenções messiânicas e de compaixão com o ser humano e o próprio planeta: quer “consertar” deficientes físicos, doentes e livrar a Terra dos problemas ecológicos. Através de nanorobots criados em um gigantesco laboratório nos subterrâneos de um vilarejo perdido no meio do deserto, a versão digital de Caster consegue fazer mortos reviverem, cegos e deficientes físicos se curarem e até fazer chover por meio da nanotecnologia que começa a espalhar fractais da superinteligência de Caster na própria natureza. Só que, em troca, os seres humanos curados tornam-se “híbridos”, hospedeiros desses fractais da superinteligência como formigas comandadas por uma formiga-rainha. Caster transformado em uma superinteligência onisciente e onipresente cria um exército de quase autônomos dispostos a proteger o seu propósito mais profundo: abandonar a plataforma P!NN e se integrar ao próprio tecido da realidade, uma superinteligência “em nuvem” – o panteísmo digital.

O discurso autopromocional das neurociências


O irônico no filme (pois simbolicamente apresenta o atual discurso autopromocional das neurociências) são os bem intencionados propósitos da revolução tecnológica de Will Caster: a cura do Mal de Alzeheimer, evitar a destruição do planeta, acabar com fome e guerras, fazer cegos enxergarem e paralíticos andarem..., mas sob o preço de criar uma nova ordem autoritária de controle e dominação, contra a qual os terroristas antitecnologia lutam. Como no atual discurso messiânico da agenda tecnognóstica, a transcendência de Caster é uma mistura de misticismo, religião e tecnologia.

 Transcendence é o mais nietzschiano filme sobre tecnologia porque revela que por trás de todo esse discurso bem intencionado sobre a tecnologia promovido pelas grandes corporações e neurocientistas está a vontade de potência como a própria essência do Poder. Essência amplificada em um discurso tecnognóstico que limita a inteligência e a consciência a um fenômeno da mente e que transcenderia as limitações corporais.

Nietzsche e a Vontade de Potência


O conceito de Vontade de Potência foi criado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900). A Vontade de Potência estaria em todo universo como luta constante, sem equilíbrio possível, apenas tensão pelo incessante movimento das coisas, ora delicado, ora violento. Movimento que vai das reações químicas à psique humana.

É a vontade que procura expandir-se, superar-se, juntar-se a outras e se tornar maior. Tudo no mundo é Vontade de Potência porque todas as forças procuram a sua própria expansão. A vontade de dominar, fazer-se mais forte, constranger outras forças mais fracas e assimilá-las. 

A chave de compreensão do filme Transcendence está na fala da consciência de Will Caster quando desperta no interior de P!NN:
“Vou precisar expandir. Preciso de mais energia. Preciso de um processador três vezes mais rápido do que o sistema atual. Não consigo descrever, é como minha mente estivesse livre. Precisam me colocar on line. Preciso acessar mercados financeiros, banco de dados educacionais...”.
Evelyn está diante do seu amor perdido ou diante de uma estranha criatura digital? A questão não é mais essa: Transcendence revela a mais abstrata forma de Poder, não mais político ou econômico (Poder como um meio para ter), mas como Vontade por si mesma, de um eterno dizer-sim ao devir universal por Potência.

A sensação de liberdade experimentada pela consciência de Will Caster pode ser comparada, guardada as proporções, com a própria experiência que a tecnologia digital promete proporcionar aos usuários. Diversos pesquisadores em cibercultura apontam para esse fascínio por transcender as supostas limitações corporais. Por exemplo, o cientista computacional Jaron Lanier fala que busca gnóstica em transcender a carne seria o emocional subtexto por trás da eufórica reação a cada novidade em informática no mercado e a cada website ou blog com frivolidades que é lançado. Lanier fala em uma “religião das máquinas” que seria o élan das pesquisas do Vale do Silício – sobre isso clique aqui.

Erick Felinto vai nomear este sujeito das ciberutopias como “sujeito pneumático”, uma forma de subjetividade que se pretende libertar dos limites do corpo, um self quase divino e de natureza espiritual (pneuma). Este sujeito pneumático teria as seguintes características: a comunicação total (como anjos incorpóreos vagando pelo ciberespaço sem barreiras para comunicar-se), por meio da “hipermediação que equivale à imediação das mídias digitais” e a mobilidade total – leia FELINTO, Erick “A Tecnoreligião e o Sujeito Pneumático”.

Essa consciência pneumática e livre dos constrangimentos corporais teria uma relação com o outro rarefeita e precária. Como destaca o filme Transcendence, o outro se converte em mera extensão de uma superinteligência, negando a individualidade e privacidade – a versão digital de Will Caster vai querer controlar, prever e suprir tudo não por ter se tornado maligno, mas por ter a liberdade plena de exercer a Vontade de Potência.

Sem as âncoras com o mundo real (finitude, temporalidade e senso de fragilidade corporal) a superinteligência perde as bases de toda ética e moral: a experiência corporal de extensão – onde termina o meu eu e onde começa o outro?


A grande virtude de Transcendence é a de ser uma fábula nietzschiana sobre o problema do Poder dentro da atual agenda tecnognóstica – a confluência entre Inteligência Artificial, neurociências e computação. A grande questão da futura onisciência e onipresença de corporações como Google e aquelas por trás do projeto da Internet das Coisas (sobre isso clique aqui) não é a do Poder vulgar em conquistar mais dinheiro e controle político: é o Poder pelo Poder, como jogo, vontade de potência em transcender os limites impostos pela ética e moral humana representado pela superação do próprio corpo.


Ficha Técnica


Título: Transcendence – A Revolução
Direção: Wally Pfister
Roteiro: Jack Paglen
Elenco: Johnny Deep, Rebeca Hall, Morgan Freeman, Paul Bettany
Produção: Alcon Entertainment,
Distribuição: Warner Bros
Ano: 2014
País: EUA

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