"Estranho", "Diferente", "Entediante", "Falso". Pelas críticas não se trata de um filme comum. "1,99 - Um Supermercado Que Vende Palavras" de Marcelo Masagão consegue transformar em narrativa visual os abstratos mecanismos do fetichismo das marcas e do consumo. Dessa forma, Masagão evita cair no lugar-comum das críticas à sociedade de consumo.
Fazer uma crítica à sociedade
de consumo já se tornou um lugar-comum, principalmente porque ela acaba vítima
de duas armadilhas: primeiro a da análise moralista com a visão de que no consumo
“o ter substitui o ser” ao induzir as pessoas ao “consumismo” de “bens
supérfluos”. E, segundo, a de reduzir o consumo à sua superficialidade, isto é,
ao mero ato de aquisição de bens materiais. Ambas as críticas acabam convergindo
para a solução reformista: se o consumo é uma questão de excesso e de
superfluidade, então devemos professar o “consumo consciente”.
No filme “1,99 – Um supermercado
que Vende Palavras” (2003) o diretor Marcelo Masagão consegue driblar essas armadilhas de análise ao propor
uma visão mais radical sobre a sociedade de consumo: o seu problema não é que
as pessoas sejam definidas pelo que elas têm, mas que suas identidades sejam construídas a partir do que desejam, idealizam e sonham traduzido por marcas e
mercadorias. Pouco importa se de fato as pessoas comprem. O consumo já está
muito além disso, está no campo psíquico do desejo, da intenção, da
fantasia, em outras palavras, do fetiche.
O filme “1,99” é composto de
uma série de “sketches” que se passam em um supermercado imaginário, todo assepticamente
branco, que vende ao invés de produtos caixas vazias com dizeres com slogans
bem conhecidos (como “Just do it”) até frases de auto-ajuda. Vemos consumidores
arrastando seus carrinhos como robôs apáticos e melancólicos atraídos pelos
slogans dos produtos genéricos nas prateleiras: “seja você mesmo”, “você é
único”, “você conhece, você confia” etc.
Marcelo Masagão cria uma série
de pequenas estórias cínicas e irônicas tal como a cena do caixa eletrônico que
sugere uma relação sexual com o usuário que insere o cartão na máquina até
culminar com o “orgasmo”, a saída do dinheiro; a máquina da “visão” 360° onde o
consumidor vê sua vida em perspectiva e acompanha as marcas de produtos que
estiveram associadas a cada momento desde a infância até a vida adulta; a excêntrica cena da vaca com os dizeres “justo
do it” da qual jorram das tetas leite já achocolatado sugerindo o viés
científico e tecnológico do consumo onde a natureza já foi processada
industrialmente.
Masagão conta que o filme foi
concebido após ler o livro “Sem Logo” de Naomi Klein que discute a necessidade
das marcas cada vez mais fetichizarem suas imagens, resultando que o slogan ou
o valor agregado à marca se torna mais importante que o próprio produto.
Necessidade de Fetiche
Todo o filme vai desenvolver essa
análise de um consumo cuja materialidade do produto (seu valor de uso,
necessidade ou funcionalidade) desapareceu para, em seu lugar, o consumidor
procurar ideias, conceitos e atitudes.
A certa altura da narrativa
vemos metaforicamente a imagem de uma serpente (o fetiche) devorando um rato (a
necessidade). “Necessidade de Fetiche?” pergunta a inscrição em uma das caixas
da prateleira.
Magistralmente Masagão vai tecendo ao longo
dos skecthes duas consequências dessa “necessidade de fetiche”: a
imaterialidade do consumo e o esvaziamento espiritual do consumidor.
O filme divide a narrativa em
dois espaços: o interior do supermercado (branco, limpo e asséptico) e o exterior
(escuro, sujo, com pilhas de pneus velhos). A alusão é clara: o “apartheid” da
sociedade de consumo. Lá fora estão os excluídos que sonham entrar no supermercado,
ficam caminhando em círculos como zumbis diante da entrada. Uma funcionária
sobre patins escolhe dois dos excluídos, não para também entrarem na festa do
consumo mas para trabalharem como seguranças ao lado do erótico caixa
eletrônico.
Mas há um detalhe: todos os que
estão lá fora procuram imitar gestos e atitudes daqueles que estão no interior
do supermercado “1,99”: se os incluídos começam a fazer ginástica, os excluídos
imitam lá fora; se os celulares tocam e os “incluídos” atendem com gestos
caricatos, lá fora os “excluídos” repetem os mesmos gestos. Fora do
supermercado os “excluídos” imitam, invejam, sonham embora, de fato, não
consumam (a não ser produtos piratas como mostrado em um close no tênis Nike falsificado
de um excluído sentado em um pneu velho).
Masagão expõe, dessa maneira, o
abstrato e perverso mecanismo por trás da fetichização do consumo: o desejo
frustrado da maioria que não consegue comprar os produtos de marca,
involuntariamente agrega valor a produtos consumidos por uma minoria que se
dispõe a pagar valores absurdos. E por que? Por causa da inveja e frustração
que agrega valor à marca-fetiche.
As
agências transnacionais de publicidade descobriram que a verdadeira fonte de
lucro no consumo não está na compra em si do produto mas no fato dele se tornar
mundialmente desejável, o que agrega ainda mais valor, ao lado da
tecnologia e da boa imagem de apresentação. Se o “excluído” não possui dinheiro
para comprar o tênis de marca, ele pelo menos o deseja, sonha com a
possibilidade de um dia poder comprá-lo. Este desejo ardente daqueles que não
podem comprar agrega ainda mais valor ao tênis “de marca”, ou seja, encarece-o
ainda mais. Os poucos que irão comprá-lo acharão natural pagar a exorbitância
do preço, afinal, milhões desejam comprá-lo e “só” ele pode tê-lo.
Por
isso, para as agências de publicidade e empresas transnacionais não há oposição
entre riqueza e pobreza, consumidores e não-consumidores, “descolados” e
“remediados”. No marketing globalizado ambos os lados se complementam ao se inserirem
nos mesmos perfis: o indivíduo sócio-economicamente inferior involuntariamente
agregando valor a um produto que jamais poderá comprar, embora o deseje. O
segregado do consumo sem saber participa dinamicamente dele com o desejo.
Dessa
forma o sistema globalizado convive facilmente com a segregação sócio-cultural
ao absorvê-la dentro de um equilíbrio dinâmico!
A grande virtude do filme “1,99” é transformar
em imagem um mecanismo tão abstrato como o do fetichismo do consumo. Masagão
nos mostra didaticamente por meio dos sketches a ampliação da noção de consumo,
da sua imaterialidade que invade a vida psíquica.
Zumbis vagam no supermercado
Uma grande sacada do filme é a
forma como expressa a apatia e vazio existencial dos personagens-consumidores.
Percebemos que enquanto observam os slogans das embalagens, suas mentes estão
longe, desejando outras coisas que não estão ali nas prateleiras: “procuro mulher
loira e ousada, que tenha muita celulite, quadril largo e seja carente” pensa
um dos consumidores, isto é, o oposto dos padrões de beleza publicitária.
Mais uma vez Masagão consegue
expressar em imagens o abstrato mecanismo de inversão do fetichismo: qualidades
humanas são transpostas para objetos e ideias, enquanto homem procura
possuí-las para recuperar o que perdeu. “Se a Nike fosse uma pessoa como ela
seria?”, costumam perguntar as pesquisas sobre a imagem institucional de
marcas, como se as griffes fossem entidades vivas, com caráter e personalidade,
enquanto os consumidores se tornam apáticos e vazios porque sempre temos a
sensação de que marcas, objetos e tecnologia sempre nos superam, estão além das
expectativas, eles sempre nos surpreendem.
O pesquisador Giacomo Marramao
chama isso de “hipertrofia de expectativa” (MARRAMAO, Giacomo. “Kairós –
Apologia Del Tiempo Oportuno”, Barcelona: Gedisa, 2002): diante do aparato do
Marketing e da indústria do entretenimento em sempre nos surpreender e tentar
expressar nossos desejos e fantasias em objetos e marcas, passamos a
experimentar uma sensação de “descarrilamento do presente”, uma dilatação dos
horizontes de expectação, parece que estamos sempre aquém vivendo cada momento como fosse o próximo.
O resultado é a redução das
margens da experiência, o aqui e agora vivido com apatia, vazio emocional e
indiferença. A imagens de Masagão de personagens-consumidores se arrastando
como zumbis no supermercado, com rostos fantasmagóricos iluminados de baixo para
cima, são precisas em representar esse descarrilamento emocional.
Mas dentro desse mal estar
nosso psiquismo ainda buscamos a experiência concreta, longe dos perfis
socialmente médios apresentados pelas marcas. Ainda buscamos a “mulher de
quadril largo, com celulite, culote e carente”.
Ficha Técnica
- Título: 1,99 - Um Supermercado que Vende Palavras
- Diretor: Marcelo Masagão
- Roteiro: Marcelo Masagão e Gustavo Steinberg
- Elenco: Márcio Camargo, Sergio Capezzuto, Giseli Duarte, Patrícia Gordo, Chico Neto
- Produção: Agencia Observatório, Bits Produções
- Trilha Musical: Wilm Mertens
- País: Brasil
- Ano: 2003
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