quarta-feira, setembro 28, 2011

Reflexões sobre o Gótico, o Estranho e o Fantástico

O Gótico, o Estranho e o Fantástico são elementos presentes em diversos gêneros cinematográficos representando a erupção de medos arcaicos e inconscientes que paradoxalmente são instrumentalizados pela indústria do entretenimento. São a base da linha de continuidade entre a narrativa fílmica e a experiência religiosa do "Sagrado".


Conceitos recorrentes nas análises empreendidas por esse blog, vamos agora tentar precisar melhor essas ideias e estabelecer alguns contrastes.


Apesar das importantes diferenças entre os gêneros fílmicos ficção científica, filme noir, horror e fantasia, todos eles partilham dos mesmos elementos góticos: o obscurecimento das fronteiras entre mundos familiarmente realistas e estranhas terras de estranhos sonhos; a mistura ambígua entre percepção e projeção; o conflito entre razão e inconsciência.

Esses elementos góticos estão intimamente relacionados com o movimento do Romantismo no séculos XVIII-XIX. Samuel Taylor Coleridge, autor do conto The Rime of Ancient Mariner, parece sugerir isso ao afirmar que:
“Pessoas e personagens sobrenaturais, ou no mínimo românticas, ainda que se transfiram para dentro da nossa natureza íntima dando um interesse humano e um aspecto de verdade suficientes para suspender a descrença do momento, constituem a fé poética.”[1]
O que Coleridge chama de “sobrenatural” ou “romântico”, poderíamos definir como gótico: uma narrativa como The Rime na qual presenças invisíveis, locais exóticos e eventos extraordinários são dominantes. Esse tipo de trabalho paira entre a realidade e a fantasia de maneira que passamos a considerar seriamente eventos que, de outra forma, normalmente não aceitaríamos. Este nível de dissolução das fronteiras entre credulidade e incredulidade é a chamada “ironia romântica”. Leva o leitor a acreditar no inacreditável. Encoraja-o a questionar a realidade empírica.

Freud indiretamente corrobora com essa tese de Coleridge ao afirmar que o sentimento gótico cresce a partir de uma insolucionável ambigüidade. Freud sustenta que as pulsões inconscientes provêem da inesperada erupção de medos que foram por muito tempo reprimidos. O inconsciente é o retorno do reprimido, a perturbadora fusão entre o conhecido e o desconhecido. De um lado essa pulsão reprimida é monstruosa, chocante, motivo pelo qual foi a muito escondido no inconsciente. Ao mesmo tempo essa mesma energia inconsciente deve necessariamente retornar por ser a força essencial da motivação e organização psíquica.

Vamos pegar um exemplo: imaginemos um homem em um museu mal iluminado que testemunha a um assustador evento: uma estátua ganhando vida como no filme "Uma Noite no Museu". Ele está aterrorizado pelo espetáculo, mas tem uma sensação de déjà vu como se tivesse vivenciado essa experiência muitas vezes antes. A estátua viva personifica o medo arcaico do morto que retorna à vida. Essa experiência estremece as categorias essenciais da civilização racional. Pelo fato de o homem no museu ter por muito tempo reprimido esse primitivo e oculto medo, a estátua passa a produzir nele um sentimento simultâneo de repulsa e atração: ele tem repulsa pela erupção do estranho, mas, ao mesmo tempo é atraído pela revelação daquilo que vem de suas próprias profundezas. 

O estranho evento do artifício que ganha vida é repetidamente exibido em numerosos filmes que apresentam essa atmosfera gótica e irônica: o familiar – o empírico status quo – torna-se estranho. E o desconhecido – o inconsciente bizarro – torna-se familiar. Somente um terceiro elemento, impalpável, pode reconciliar esta abertura.

A diferença entre o Fantástico e o Estranho

Em seu trabalho sobre o fantástico, Tzvetan Todorov enfatiza a conexão entre o inconsciente e a ambigüidade. Embora Todorov faça uma distinção entre o fantástico e o estranho, sua definição de fantástico pode se estender à noção freudiana de inconsciente. (veja TODOROV, Tzvetan, Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992)

Para ele a ambigüidade é a essência do fantástico, é a sua irredutível ambigüidade – a incapacidade de dizer se um acontecimento é natural ou sobrenatural. Ao contrário, o Estranho pode ser explicado por meio da razão: após instituir um desequilíbrio entre a realidade e o sobrenatural, o evento insólito pode ser equacionado por meio das leis da realidade material. Como vimos acima, a erupção do inconsciente reprimido descrita por Freud é dotada de uma ambigüidade semelhante à noção de fantástico de Todorov: a nebulosa relação entre o positivo (o natural, o familiar) e o misterioso (o sobrenatural, o desconhecido).

No final de um conto fantástico ou gótico, seja ele The Rime de Coleridge ou O Iluminado (The Shinning, 1977) de Kubrick, os espectadores estarão sempre diante de, no mínimo, duas interpretações válidas e diametralmente opostas: será que o protagonista de The Rime experimentou terrores sobrenaturais ou sofreu insanas alucinações? O Hotel Overlook de O Iluminado era literalmente perseguido por espíritos ou tudo não passou de projeções psíquicas do protagonista atormentado? Essas questões permanecem sem resposta. Por isso, essa irredutibilidade produz o terror associado com o modo gótico, o medo pelo desconhecido. Mas essa confusão também abre possibilidades de transcendência, de ir para além do dado.

Gnose: percepção intuitiva do Todo

E como o gótico está conectado com o gnóstico? Se Freud demonstra como o estranho que aflora do inconsciente produz neurose e psicose, Heidegger vai nos mostrar, sob o ponto de vista filosófico, como o estranho vai inspirar conhecimento e energia. Tal como Freud, Heidegger vai encarar o estranho como um modo de abertura onde o familiar torna-se desconhecido e o desconhecido torna-se íntimo.
“Algumas vezes, porém, aquilo que vem ao encontro no interior de um mundo reconhecível não o faz com a familiaridade usual: em nosso mundo mais próximo está presente o estranho, oo-familiar, o que choca. O estranho é algo que impõe um obstáculo ao sentido, é a falta de um significado claro, de referencialidade. Oo-familiar é o que não entra logo em relação, em conformidade com meu entorno cotidiano. É precisamente o esfoo de compreensão do estranho que propicia aberturas de sentido, ou seja, que abre as possibilidades de iluminação dos entes. Este “choque” se mostra no contexto da lida cotidiana na forma do imprevisível, da perturbação da totalidade referencial. A quebra do sentido habitual de algo onde alguma coisa a torna “visível”, força-nos a uma pausa para percebê-la. Ela escapa, neste momento, à obviedade inerente ao mundo, aparecendo comoo mais pertencente a ele.”[2]
O fato dessa totalidade referencial ser a base na qual percebemos a presença do mundo, a ruptura da familiaridade pela ausência de uma racionalidade que outrora pertencia à totalidade fechada traz à tona “a pálida e insignificante presença do mundo”. Esta ausência que perturba o lidar no mundo é, para Heidegger, o que, afinal, traz à luz suas potencialidades não percebidas. O que suspeitamos ser sonhos misteriosos, o abismo do Ser, é o núcleo da sua vida, o mais intrínseco princípio. Conduzido a esse abismo – do nem isso, nem aquilo – tornamo-nos inseguros. Mesmo assim, por ser o nada tudo, e a ausência (esta totalidade referencial impessoal e não percebida) a dimensão impessoal que gera todas as presenças, passamos a nos assegurar de estarmos tomados por uma visão da origem. Esta estranha erupção é a gnose, a percepção intuitiva do todo.

Jung e a “experiência religiosa imediata”

Como vimos até aqui, o Gótico, o Estranho e o Fantástico exploram representações do medo arcaico da erupção do inconsciente repetidamente dramatizado em filmes. Dessa maneira podemos aproximar essa discussão às ideias sobre experiência numinosa e a psicologia da religião tal qual apresentada por Jung.

Para Jung, o magnífico desenvolvimento científico e técnico da nossa época corresponde, diretamente, a um assustador desprezo à instrospecção e ao esquecimento do psiquismo humano. Mas, muito mais antigo do que todo desenvolvimento civilizatório, está o medo e a aversão primitivos a tudo que está confinado no inconsciente. A vida social é acompanhada pela contínua preocupação da possibilidade dos perigos psíquicos, e são numerosas as tentativas de reduzir tais riscos. Um exemplo é a criação das áreas culturais de tabus. Há inúmeros ritos mágicos cuja única finalidade é a defesa contra as tendências imprevistas e perigosas do inconsciente. Mais tarde, a sociedade criará sistemas simbólicos cada vez mais complexos para deter, filtrar ou racionalizar essa ameaça.
"Desde os albores da humanidade observa-se uma pronunciada propensão a limitar a irrefreável e arbitrária influência do "sobrenatural", mediante fórmulas e leis. E este processo continuou através da história, sob a forma de uma multiplicação de ritos, instituições e convicções. Nos dois últi­mos milênios a Igreja cristã desempenha uma função mediadora e protetora entre essas influências e o homem."[3]
Um exemplo é o das relações nada amistosas da Igreja com os sonhos. Nos escritos da Idade Média não se nega a possibilidade de os sonhos serem genuínas revelações divinas. Mas a Igreja se reserva o direito de decidir, em cada caso, se os sonhos têm origens revelatórias ou são causadas por doenças físicas, emoções violentas ou a astúcia do demônio.

A Igreja não mantinha relações nada amistosas
com os sonhos
Jung observa que com a derrubada da barreira dogmática pelo protestantismo o rito perde a autoridade da sua eficácia, tornando o homem desamparado para confrontar com sua experiência interior. Os matizes mais sutis do cristianismo tradicional (a missa, a confissão, a liturgia e a função do sacerdote como representante hierárquico de Deus) são perdidos. Em compensação, com a perda da autoridade da Igreja, reforçou a autoridade da Bíblia. Mas, revelou-se pouco apta para fortalecer o caráter divino das Escrituras Sagradas, pois certas passagens da Bíblia podem ser interpretadas de maneiras diferentes.
"Ela [a religião] tem a finalidade evidente de substituir a experiência imediata por um grupo adequado de símbolos envoltos num dogma e num ritual fortemente organizados. A Igreja Católica os mantém, por força de sua autoridade absoluta. A "Igreja" protestante (se ainda se pode falar em "Igreja") os mantém pela ênfase da fé na mensagem evangélica. Os homens estarão adequada­mente protegidos contra a experiência religiosa imediata, en­quanto estes dois princípios forem válidos."[4]

Como “experiência religiosa imediata” Jung está se referindo à experiência numinosa, nos termos colocados por Rudolf Otto traduzido pela frase mysterium tremendum fascinans et augustum[5]. O numinoso é um efeito que apodera e domina o sujeito, mais sua vítima do que criador. Condição do sujeito e independente da sua vontade, a percepção da presença do numen suscita o sentimento de grandeza, de maravilhamento, de respeito. É a percepção do misterioso, do inteiramente outro que ultrapassa a esfera do usual, do inteligível e do familiar. O mysterium representaria o das ganze Andere (o totalmente outro), o qualitativamente diferente, que apresenta dois conteúdos: o tremendum, elemento repulsivo, que causa medo ou terror, e o fascinans, o que atrai, fascina.  

Esta experiência religiosa imediata, a experiência numinosa (fascinante por ser uma manifestação do magma reprimido do inconsciente e repulsivo por ser a erupção do Estranho, ou seja, daquilo que é potencialmente desestabilizador) que necessita ser controlada pelos sistemas simbólicos religiosos para que a natureza ambígua e perturbadora do numen seja diluída.

Com o enfraquecimento de toda ritualística e liturgia católicas e o relativismo protestante, assim como a influência da chamada ilustração científica que afasta inclusive homens religiosos que não conseguem conciliar a religiosidade com a ciência, novas formas de mediação devem ser criadas. Surgem formas secularizadas de, simbolicamente, lidar com a “experiência religiosa imediata”, isto é, com o fluxo do psiquismo humano que vem à tona na vida cotidiana. O cinema seria uma delas.

Cinema e experiência religiosa


Autores como Massimo Canevacci consideram o cinema uma máscara tecnológica que espetaculariza uma hipo-estrutura arcaica, isto é, como as máscaras ritualísticas antigas, continua a esconder e mostrar os conteúdos arquetípicos do inconsciente. Este seria o “espírito do cinema”:
“A tela do cinema é um véu de maia que esconde por trás de si o fato de que não há nada a esconder, a não ser a potência mimética da repetição. A repetição do igual como conteúdo do cinema é assim arrebatadora e transcendente, na medida em que reformula em termos modernos um enigma constante, que a humanidade sempre arrastou consigo e que sempre atualiza:  como a potência da monotonia consegue aliar-se com aquela ‘zona’ que Freud situou além do princípio do prazer”[6]
A linha de continuidade entre o
ritual da missa, a narrativa fílmica e
a sala do cinema
Canevacci vê uma linha de continuidade secularizada ente ritual da missa católico, a narrativa fílmica e a sala de projeção do cinema. Assim como a repetição do ritual da missa, fortemente simbólico e funcional, tem a capacidade de restaurar um equilíbrio entre vida cotidiana e eterno retorno, sagrado e profano, igualmente o cinema reproduzirá, em todas as fases do show fílmico, os mesmos eventos durante o drama do Calvário: nascimento, afirmação e morte do herói, depois o sacrifício da ressurreição até a vitória do bem. Para o autor, a própria arquitetura das duas salas é idêntica com platéia, galerias e corredores no meio. Este drama cosmológico divino é mimetizado pelo próprio comportamento do espectador ao consumir o rito:
“(...) a apresentação do ingresso, a entrada na grande e escura sala de projeção, a reconfirmação da aventura, a saída para o ar livre à guisa da ressurreição, o feliz retorno para casa (...) O fato de que se volte sempre ao cinema (ou à missa) para ver sempre a mesma história, saber que é preciso revê-la e desejar a coerção para poder suportar a ordem de coisas existente, tem sua origem na articulação entre hábitos imprimidos nos anos da puberdade e hábitos herdados hipo-estruturalmente desde a gênese da civilização”[7]
Monotonia versus princípio do prazer, profano versus sagrado, tédio versus fascinação, arquétipo versus civilização. A articulação desses dois pólos dentro de uma narrativa e uma ritualística que mimetiza o drama da quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem parece ser a motivação por trás do prazer do espectador cinematográfico. Além do mais, o chamado “estado cinematográfico” favoreceria esse prazer mimético: a história narrada e os diversos mecanismos da linguagem cinematográfica colocam o espectador em um plano intermediário da vigília que em nossa vida cotidiana chamamos de “devaneio” ou “sonhar acordado”:
“Diferentemente do sonho, estamos conscientes da situação ficcional. Encontramo-nos numa situação limite: freqüentemente mergulhamos completamente na ficção e acabamos por nos desligar da realidade temporal e espacial que nos rodeia”[8]
Por meio de dispositivos da narrativa clássica que permitem a identificação do espectador com a diegése fílmica, o espectador encontra-se fascinado em reconhecer conteúdos arcaicos do inconsciente representados simbolicamente na tela. Mas a narrativa não permite que o fascinans alcance o tremendum. O fascinante pode ser atrativamente chocante ou eletrizante, mas não se converte numa experiência numinosa.

O filme gnóstico colocará aqueles dois pólos em tensão, sem apresentar uma resolução (o retorno à ordem) aguardada pelo espectador. Através dos recursos como a ironia, ambigüidade, etc, o filme gnóstico vai propiciar a experiência de transcendência por meio da desconstrução da ordem. Os vazios interpretativos, paradoxos, narrativas em abismo desconstroem, por assim dizer, a narrativa clássica ou convencional não permitindo o funcionamento dos mecanismos de identificação habituais do espectador, criando condições que potencialmente podem colocá-lo diante do numen. 

Notas


[1] COLERIDGE, Samuel Taylor. Biographia Literaria, Volume II, Princeton: Princeton University Press, 1983, p.5-6.
[2] SILVA, Antônio Almeida R. da, “Relação entre Espaço e Lugar  no pensamento de Martin Heidegger” Correlatio, n. 11, Universidade Metodista de São Paulo. Disponível em http://www.metodista.br/ppc/correlatio/correlatio11/relacao-entre-espaco-e-lugar-no-pensamento-de-martin-heidegger/ (acessado em 09/01/2009).
[3] JUNG, Karl G., Psicologia e Religião. Petrópolis: Vozes
[4] IDEM, p. 48.
[5] OTTO, Rudolf, The Idea of the Holy: An Inquiry Into the Non-Rational Factor in the Idea of the Divine  and its Relation to the Rational, London: Oxford University Press.
[6] CANEVACCI, Massimo, Antropologia do Cinema, São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 34.
[7] Idem, p.47.

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