O Gótico, o Estranho e o Fantástico são elementos presentes em diversos gêneros cinematográficos representando a erupção de medos arcaicos e inconscientes que paradoxalmente são instrumentalizados pela indústria do entretenimento. São a base da linha de continuidade entre a narrativa fílmica e a experiência religiosa do "Sagrado".
Conceitos recorrentes nas análises empreendidas por esse blog, vamos agora tentar precisar melhor essas ideias e estabelecer alguns contrastes.
Apesar das importantes diferenças entre os gêneros fílmicos ficção científica, filme noir, horror e fantasia, todos eles partilham dos mesmos elementos góticos: o obscurecimento das fronteiras entre mundos familiarmente realistas e estranhas terras de estranhos sonhos; a mistura ambígua entre percepção e projeção; o conflito entre razão e inconsciência.
Esses elementos
góticos estão intimamente relacionados com o movimento do Romantismo no séculos
XVIII-XIX. Samuel Taylor Coleridge, autor do conto The Rime of Ancient Mariner, parece sugerir isso ao afirmar que:
“Pessoas e personagens sobrenaturais, ou no mínimo românticas, ainda que se transfiram para dentro da nossa natureza íntima dando um interesse humano e um aspecto de verdade suficientes para suspender a descrença do momento, constituem a fé poética.”[1]
O que Coleridge
chama de “sobrenatural” ou “romântico”, poderíamos definir como gótico: uma
narrativa como The Rime na qual
presenças invisíveis, locais exóticos e eventos extraordinários são dominantes.
Esse tipo de trabalho paira entre a realidade e a fantasia de maneira que
passamos a considerar seriamente eventos que, de outra forma, normalmente não
aceitaríamos. Este nível de dissolução das fronteiras entre credulidade e
incredulidade é a chamada “ironia romântica”. Leva o leitor a acreditar no
inacreditável. Encoraja-o a questionar a realidade empírica.
Freud indiretamente
corrobora com essa tese de Coleridge ao afirmar que o sentimento gótico cresce
a partir de uma insolucionável ambigüidade. Freud sustenta que as pulsões
inconscientes provêem da inesperada erupção de medos que foram por muito tempo
reprimidos. O inconsciente é o retorno do reprimido, a perturbadora fusão entre
o conhecido e o desconhecido. De um lado essa pulsão reprimida é monstruosa,
chocante, motivo pelo qual foi a muito escondido no inconsciente. Ao mesmo
tempo essa mesma energia inconsciente deve necessariamente retornar por ser a
força essencial da motivação e organização psíquica.
Vamos pegar um
exemplo: imaginemos um homem em um museu mal iluminado que testemunha a um
assustador evento: uma estátua ganhando vida como no filme "Uma Noite no Museu". Ele está aterrorizado pelo
espetáculo, mas tem uma sensação de déjà
vu como se tivesse vivenciado essa experiência muitas vezes antes. A
estátua viva personifica o medo arcaico do morto que retorna à vida. Essa
experiência estremece as categorias essenciais da civilização racional. Pelo fato
de o homem no museu ter por muito tempo reprimido esse primitivo e oculto medo,
a estátua passa a produzir nele um sentimento simultâneo de repulsa e atração:
ele tem repulsa pela erupção do estranho, mas, ao mesmo tempo é atraído pela
revelação daquilo que vem de suas próprias profundezas.
O estranho evento do artifício
que ganha vida é repetidamente exibido em numerosos filmes que apresentam essa
atmosfera gótica e irônica: o familiar – o empírico status quo – torna-se estranho. E o desconhecido – o inconsciente bizarro
– torna-se familiar. Somente um terceiro elemento, impalpável, pode reconciliar
esta abertura.
A diferença entre o Fantástico e o
Estranho
Em seu trabalho
sobre o fantástico, Tzvetan Todorov enfatiza a conexão entre o inconsciente e a
ambigüidade. Embora Todorov faça uma distinção entre o fantástico e o estranho,
sua definição de fantástico pode se estender à noção freudiana de inconsciente.
(veja TODOROV, Tzvetan, Introdução à Literatura Fantástica. São
Paulo: Perspectiva, 1992)
Para ele a
ambigüidade é a essência do fantástico, é a sua irredutível ambigüidade – a incapacidade
de dizer se um acontecimento é natural ou sobrenatural. Ao contrário, o
Estranho pode ser explicado por meio da razão: após instituir um desequilíbrio
entre a realidade e o sobrenatural, o evento insólito pode ser equacionado por
meio das leis da realidade material. Como vimos acima, a erupção do inconsciente
reprimido descrita por Freud é dotada de uma ambigüidade semelhante à noção de
fantástico de Todorov: a nebulosa relação entre o positivo (o natural, o
familiar) e o misterioso (o sobrenatural, o desconhecido).
No final de um
conto fantástico ou gótico, seja ele The
Rime de Coleridge ou O Iluminado (The
Shinning, 1977) de Kubrick, os
espectadores estarão sempre diante de, no mínimo, duas interpretações válidas e
diametralmente opostas: será que o protagonista de The Rime experimentou terrores sobrenaturais ou sofreu insanas
alucinações? O Hotel Overlook de O
Iluminado era literalmente perseguido por espíritos ou tudo não passou de projeções
psíquicas do protagonista atormentado? Essas questões permanecem sem resposta.
Por isso, essa irredutibilidade produz o terror associado com o modo gótico, o
medo pelo desconhecido. Mas essa confusão também abre possibilidades de
transcendência, de ir para além do dado.
Gnose: percepção intuitiva do Todo
E como o gótico
está conectado com o gnóstico? Se Freud demonstra como o estranho que aflora do
inconsciente produz neurose e psicose, Heidegger vai nos mostrar, sob o ponto
de vista filosófico, como o estranho vai inspirar conhecimento e energia. Tal como
Freud, Heidegger vai encarar o estranho como um modo de abertura onde o
familiar torna-se desconhecido e o desconhecido torna-se íntimo.
“Algumas vezes, porém, aquilo que vem ao encontro no interior de um mundo reconhecível não o faz com a familiaridade usual: em nosso mundo mais próximo está presente o estranho, o não-familiar, o que choca. O estranho é algo que impõe um obstáculo ao sentido, é a falta de um significado claro, de referencialidade. O não-familiar é o que não entra logo em relação, em conformidade com meu entorno cotidiano. É precisamente o esforço de compreensão do estranho que propicia aberturas de sentido, ou seja, que abre as possibilidades de iluminação dos entes. Este “choque” se mostra no contexto da lida cotidiana na forma do imprevisível, da perturbação da totalidade referencial. A quebra do sentido habitual de algo onde alguma coisa a torna “visível”, força-nos a uma pausa para percebê-la. Ela escapa, neste momento, à obviedade inerente ao mundo, aparecendo como não mais pertencente a ele.”[2]
O fato dessa
totalidade referencial ser a base na qual percebemos a presença do mundo, a
ruptura da familiaridade pela ausência de uma racionalidade que outrora
pertencia à totalidade fechada traz à tona “a pálida e insignificante presença
do mundo”. Esta ausência que perturba o lidar no mundo é, para Heidegger, o
que, afinal, traz à luz suas potencialidades não percebidas. O que suspeitamos
ser sonhos misteriosos, o abismo do Ser, é o núcleo da sua vida, o mais
intrínseco princípio. Conduzido a esse abismo – do nem isso, nem aquilo – tornamo-nos
inseguros. Mesmo assim, por ser o nada tudo, e a ausência (esta totalidade
referencial impessoal e não percebida) a dimensão impessoal que gera todas as
presenças, passamos a nos assegurar de estarmos tomados por uma visão da
origem. Esta estranha erupção é a gnose,
a percepção intuitiva do todo.
Jung e a “experiência
religiosa imediata”
Como vimos até aqui, o Gótico, o Estranho e o Fantástico exploram
representações do medo arcaico da erupção do inconsciente repetidamente
dramatizado em filmes. Dessa maneira podemos aproximar essa discussão às ideias
sobre experiência numinosa e a psicologia da religião tal qual apresentada por
Jung.
Para Jung, o
magnífico desenvolvimento científico e técnico da nossa época corresponde,
diretamente, a um assustador desprezo à instrospecção e ao esquecimento do
psiquismo humano. Mas, muito mais antigo do que todo desenvolvimento
civilizatório, está o medo e a aversão primitivos a tudo que está confinado no
inconsciente. A vida social é acompanhada pela contínua preocupação da
possibilidade dos perigos psíquicos, e são numerosas as tentativas de reduzir
tais riscos. Um exemplo é a criação das áreas culturais de tabus. Há inúmeros
ritos mágicos cuja única finalidade é a defesa contra as tendências imprevistas
e perigosas do inconsciente. Mais tarde, a sociedade criará sistemas simbólicos
cada vez mais complexos para deter, filtrar ou racionalizar essa ameaça.
"Desde os albores da humanidade observa-se uma pronunciada propensão a limitar a irrefreável e arbitrária influência do "sobrenatural", mediante fórmulas e leis. E este processo continuou através da história, sob a forma de uma multiplicação de ritos, instituições e convicções. Nos dois últimos milênios a Igreja cristã desempenha uma função mediadora e protetora entre essas influências e o homem."[3]
Um exemplo é o
das relações nada amistosas da Igreja com os sonhos. Nos escritos da Idade
Média não se nega a possibilidade de os sonhos serem genuínas revelações
divinas. Mas a Igreja se reserva o direito de decidir, em cada caso, se os
sonhos têm origens revelatórias ou são causadas por doenças físicas, emoções
violentas ou a astúcia do demônio.
A Igreja não mantinha relações nada amistosas com os sonhos |
Jung observa que
com a derrubada da barreira dogmática pelo protestantismo o rito perde a
autoridade da sua eficácia, tornando o homem desamparado para confrontar com
sua experiência interior. Os matizes mais sutis do cristianismo tradicional (a
missa, a confissão, a liturgia e a função do sacerdote como representante
hierárquico de Deus) são perdidos. Em compensação, com a perda da autoridade da
Igreja, reforçou a autoridade da Bíblia. Mas, revelou-se pouco apta para
fortalecer o caráter divino das Escrituras Sagradas, pois certas passagens da
Bíblia podem ser interpretadas de maneiras diferentes.
"Ela [a religião] tem
a finalidade evidente de substituir a experiência imediata por um grupo adequado
de símbolos envoltos num dogma e num ritual fortemente organizados. A Igreja
Católica os mantém, por força de sua autoridade absoluta. A "Igreja"
protestante (se ainda se pode falar em "Igreja") os mantém pela
ênfase da fé na mensagem evangélica. Os homens estarão adequadamente
protegidos contra a experiência religiosa imediata, enquanto estes dois
princípios forem válidos."[4]
Como “experiência religiosa imediata” Jung está se referindo à
experiência numinosa, nos termos colocados por Rudolf Otto traduzido pela frase
mysterium
tremendum fascinans et augustum[5]. O numinoso é um efeito que apodera e domina o
sujeito, mais sua vítima do que criador. Condição do sujeito e independente da
sua vontade, a percepção da presença do numen suscita o sentimento de grandeza,
de maravilhamento, de respeito. É a percepção do misterioso, do inteiramente
outro que ultrapassa a esfera do usual, do inteligível e do familiar. O mysterium representaria o das
ganze Andere (o totalmente outro), o qualitativamente diferente, que
apresenta dois conteúdos: o tremendum, elemento repulsivo, que causa
medo ou terror, e o fascinans, o que atrai, fascina.
Esta experiência
religiosa imediata, a experiência numinosa (fascinante por ser uma manifestação
do magma reprimido do inconsciente e repulsivo por ser a erupção do Estranho,
ou seja, daquilo que é potencialmente desestabilizador) que necessita ser
controlada pelos sistemas simbólicos religiosos para que a natureza ambígua e
perturbadora do numen seja diluída.
Com o
enfraquecimento de toda ritualística e liturgia católicas e o relativismo
protestante, assim como a influência da chamada ilustração científica que
afasta inclusive homens religiosos que não conseguem conciliar a religiosidade
com a ciência, novas formas de mediação devem ser criadas. Surgem formas
secularizadas de, simbolicamente, lidar com a “experiência religiosa imediata”,
isto é, com o fluxo do psiquismo humano que vem à tona na vida cotidiana. O
cinema seria uma delas.
Autores como
Massimo Canevacci consideram o cinema uma máscara tecnológica que
espetaculariza uma hipo-estrutura arcaica, isto é, como as máscaras
ritualísticas antigas, continua a esconder e mostrar os conteúdos arquetípicos
do inconsciente. Este seria o “espírito do cinema”:
“A tela do cinema é um véu de maia que esconde por trás de si o fato de que não há nada a esconder, a não ser a potência mimética da repetição. A repetição do igual como conteúdo do cinema é assim arrebatadora e transcendente, na medida em que reformula em termos modernos um enigma constante, que a humanidade sempre arrastou consigo e que sempre atualiza: como a potência da monotonia consegue aliar-se com aquela ‘zona’ que Freud situou além do princípio do prazer”[6]
A linha de continuidade entre o ritual da missa, a narrativa fílmica e a sala do cinema |
Canevacci vê uma
linha de continuidade secularizada ente ritual da missa católico, a narrativa
fílmica e a sala de projeção do cinema. Assim como a repetição do ritual da
missa, fortemente simbólico e funcional, tem a capacidade de restaurar um equilíbrio
entre vida cotidiana e eterno retorno, sagrado e profano, igualmente o cinema
reproduzirá, em todas as fases do show fílmico, os mesmos eventos durante o
drama do Calvário: nascimento, afirmação e morte do herói, depois o sacrifício
da ressurreição até a vitória do bem. Para o autor, a própria arquitetura das
duas salas é idêntica com platéia, galerias e corredores no meio. Este drama
cosmológico divino é mimetizado pelo próprio comportamento do espectador ao
consumir o rito:
“(...) a apresentação do ingresso, a entrada na grande e escura sala de projeção, a reconfirmação da aventura, a saída para o ar livre à guisa da ressurreição, o feliz retorno para casa (...) O fato de que se volte sempre ao cinema (ou à missa) para ver sempre a mesma história, saber que é preciso revê-la e desejar a coerção para poder suportar a ordem de coisas existente, tem sua origem na articulação entre hábitos imprimidos nos anos da puberdade e hábitos herdados hipo-estruturalmente desde a gênese da civilização”[7]
Monotonia versus
princípio do prazer, profano versus sagrado, tédio versus fascinação, arquétipo
versus civilização. A articulação desses dois pólos dentro de uma narrativa e
uma ritualística que mimetiza o drama da quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem
parece ser a motivação por trás do prazer do espectador cinematográfico. Além
do mais, o chamado “estado cinematográfico” favoreceria esse prazer mimético: a
história narrada e os diversos mecanismos da linguagem cinematográfica colocam
o espectador em um plano intermediário da vigília que em nossa vida cotidiana
chamamos de “devaneio” ou “sonhar acordado”:
“Diferentemente do sonho, estamos conscientes da situação ficcional. Encontramo-nos numa situação limite: freqüentemente mergulhamos completamente na ficção e acabamos por nos desligar da realidade temporal e espacial que nos rodeia”[8]
Por meio de
dispositivos da narrativa clássica que permitem a identificação do espectador
com a diegése fílmica, o espectador encontra-se fascinado em reconhecer
conteúdos arcaicos do inconsciente representados simbolicamente na tela. Mas a
narrativa não permite que o fascinans
alcance o tremendum. O fascinante
pode ser atrativamente chocante ou eletrizante, mas não se converte numa
experiência numinosa.
O filme gnóstico
colocará aqueles dois pólos em tensão, sem apresentar uma resolução (o retorno
à ordem) aguardada pelo espectador. Através dos recursos como a ironia,
ambigüidade, etc, o filme gnóstico vai propiciar a experiência de
transcendência por meio da desconstrução da ordem. Os vazios interpretativos,
paradoxos, narrativas em abismo desconstroem, por assim dizer, a narrativa
clássica ou convencional não permitindo o funcionamento dos mecanismos de
identificação habituais do espectador, criando condições que potencialmente
podem colocá-lo diante do numen.
Notas
[1] COLERIDGE, Samuel Taylor. Biographia Literaria, Volume II,
Princeton: Princeton University Press, 1983, p.5-6.
[2] SILVA, Antônio Almeida R. da, “Relação entre Espaço e Lugar no pensamento de Martin Heidegger”
Correlatio, n. 11, Universidade Metodista de São Paulo. Disponível em http://www.metodista.br/ppc/correlatio/correlatio11/relacao-entre-espaco-e-lugar-no-pensamento-de-martin-heidegger/
(acessado em 09/01/2009).
[3]
JUNG, Karl G., Psicologia e Religião. Petrópolis: Vozes
[4]
IDEM, p. 48.
[5]
OTTO, Rudolf, The Idea of the Holy: An Inquiry Into the Non-Rational Factor in the Idea of the Divine and its Relation to the Rational, London: Oxford University Press.
[6]
CANEVACCI, Massimo, Antropologia do
Cinema, São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 34.
[7]
Idem, p.47.
[8]
RAMOS, Fernão, “Intriga e Devaneio”, In: Folhetim, Folha de São Paulo,
12/08/1984, p.11.
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