Como já refletiu pensadores
gnósticos como Valentim, a paranoia e esquizofrenia podem ou arrastar o
indivíduo à insanidade ou a um estado alterado consciência que abra espaço para
a gnose. Percebe-se na história do "cinema esquizoide" essa mesma
dualidade entre os ápices onde Hollywood permite a produção de filmes
esquizofrenicamente perturbadores e subversivos e "filmes de
recuperação", verdadeiros neurolépticos onde a paranoia é confinada nos
limites racionalizantes do mercado.
Desde
a transmissão radiofônica de “Guerra dos Mundos” de Orson Wells, pela rádio CBS
em 1938, que levou pânico à Nova York e costa leste americana pelo temor de uma
invasão marciana, a paranoia emerge na cultura midiática norte-americana:
quantas vezes a cidade de Nova York já foi destruída ou sitiada na
cinematografia americana por ETs, terroristas, catástrofes climáticas, guerras
nucleares, black-outs, meteoros etc.? Incontáveis vezes. A partir dos anos 40
com o filme Noir, simplesmente o cinema americano e as plateias passam a ficar
fascinados pela paranoia: um senso de que algo está fora da ordem na sociedade,
um segredo, um oculto centro do qual se irradia corrupção, demência.
Paranoia e Esquizofrenia andam lado a lado. A paranoia é a resultante da condição
esquizoide que pode ser sintetizada nas seguintes características: passividade,
experiência existencial e psiquismo fragmentado e incapacidade de estabelecer
uma fronteira entre realidade e fantasia. Se a esquizofrenia está próxima à paranoia,
no outro extremo, essa “enfermidade” também está muito próxima de uma
experiência mística ou “xamânica”. O psiquiatra R D Laing traçou um paralelo
entre ambas as condições: enquanto na esquizofrenia o indivíduo se afoga no
oceano da experiência, na vivência xamânica o indivíduo “aprende” a nadar e
atravessá-la. Isso se aproxima do gnosticismo valentiniano da paranoia como um
estado alterado de consciência que possibilitaria a gnose: o questionamento da
realidade in totum como construção artificial de algo ou alguém
que não nos ama. Se toda ideologia tem o seu momento de verdade (como nos
ensina Theodor Adorno), toda loucura tem o seu momento progressista como
resposta a uma condição de realidade sem sentido.
Em
nenhum lugar do mundo a ficção invade a realidade como nos EUA (e sua indústria
do entretenimento exporta essa condição para todo o planeta). O centro da sua
irrealidade não está em Hollywood, mas seminalmente localizado no Deserto de
Nevada com Las Vegas, os primeiros testes nucleares e a Área 51. É o polo
irradiador de paranoia e esquizofrenia em escala mundial. Ao mesmo tempo, o
florescimento do cinema como indústria também somente seria possível na
sociedade norte-americana pela própria natureza esquizo do dispositivo:
passividade (no sentido cinemático da passividade corporal em relação à
atividade mental) e a suspensão da descrença produzida pelas artimanhas do
roteiro e pelo “realismo cinematográfico” da edição e montagem.
Portanto, o tema da paranoia e esquizofrenia acompanha a própria história do cinema
americano, produzindo uma batalha interior entre as possibilidades
progressistas ou emancipadoras dessa condição (jornadas místicas, gnose) e a
contenção racionalizadora que reduz essa experiência a ameaça do Outro.
Jason Horsley faz essa trajetória no segundo capítulo do seu livro “The Secret
Life of Cinema”, descrevendo essa luta interna e as respostas da indústria
hollywoodiana no sentido de conter os potenciais de ruptura da condição esquizofrênica
e paranoica.
Se Orson Wells em “Guerra dos Mundos” involuntariamente transmite o
inconsciente coletivo da paranoia americana e, logo depois, o filme Noir vai
radicalizar essa percepção ao apresentar um mundo onde não há mocinhos e nem
bandidos e o Mal é a própria condição de uma realidade que se dissolve em chuva
e névoas, em resposta Hollywood reage com os filmes sci-fi que irão traduzir
esse inconsciente coletivo como medo da Guerra Fria. Séries de TV como “Além
da Imaginação” e filmes como “Vampiros de Almas”, “O
Ataque dos Discos Voadores”, o monstro de outro planeta em “stop
motion” em “A 20 Milhões de Milhas da Terra” onde Roma é salva
pelos americanos etc., reduz a paranoia ao medo do Outro. No Outro
(alienígenas, monstros, agentes corruptos infiltrados na sociedade) é projetada
a fragmentação do ego e a paranoia resultante de uma “multidão solitária”, no
sentido dado pelos estudos do sociólogo David Riesman nos anos 50. O paroxismo
da ameaça do Outro infiltrado chega com o filme The Village of the
Damned (1960) onde as crianças de uma localidade começam a tornar-se
seres alienígenas.
O Ápice do Cinema Esquizo
Nos
anos 60 e 70 com a chegada da contracultura a figura do Outro passa
progressivamente a sair de cena. A paranóia torna-se atual e com fundamentação
histórica. Filmes como Blow Up, Perdidos na Noite, Easy Rider, Um
Estranho no Ninho etc. começam a trazer um novo realismo misturado com
desespero, cinismo e paranóia política, dando ao tema uma nova maturidade. Os
próprios protagonistas desse período são retratados não mais como heróis
convencionais, mas, agora, potencialmente psicopatas, esquizóides, alienados e
revoltados. Jack Nicholson foi o porta-voz desse período (combinando
inarticulação e revolta com cinismo e integridade). Protagonistas instáveis,
obsessivos e paranóicos indicam um processo de maturidade do diagnóstico da
sociedade norte-americana: com a saída de cena do Outro, a origem de todo mal
só pode ser encontrado na sociedade, nas próprias instituições constitutivas.
Da desilusão e rebeldia sem causa, a paranóia e psicopatia passam a ser
respostas válidas e adequadas do herói para os novos tempos.
Jack Nicholson no filme "Um Estranho no Ninho" de 1975 |
Nos
anos 70 temos o ápice da maturidade desse tema em filmes como Laranja
Mecânica, Straw Dogs, O Fantasma do Paraíso, O Poderoso Chefão, Chinatown e
Taxi Driver.
“Esses filmes, como nenhum outro anteriormente conseguiu, chegam a ficar cara-a-cara com o dilema. Eles não apenas chegam a admitir a existência do problema, mas começam a sugerir o que está por trás dele. O que esses filmes têm em comum é um profundo senso de alienação, não unicamente em relação à sociedade, mas da humanidade ela mesma ou dos valores e pressupostos nos ela se constitui. Eles não oferecem qualquer tipo de solução, além de atos de violência sem sentido” (HORSLEY, Jason, The Secret Life of Cinema: Schizophrenic and Shamanic Journeys in American Cinema. London: McFarland, 2009, p. 42.)
Já
em Alien, o Outro retorna como catalizador da paranoia, mas com um
componente metafórico para os novos tempos da AIDS: o Mal como algo que se
dissemina viroticamente em uma nave que necessita de urgente assepsia (a nave
Nostromo era suja, úmida, com astronautas mal-educados e mulheres
masculinizadas).
O “Cinema Recuperativo”
Após
o auge artístico do cinema dos anos 70 onde os filmes foram provocantes,
subversivos e perturbadores, a violência amoral ou niilista cede lugar a formas
de violência sadística, primitiva e exibicionista (narcisismo thanático?) em
filmes como Sexta-Feira 13, Halloween, Pesadelos em Elmstreet etc.
Se, pelo menos, os filmes sci-fi e horror do passado assustavam visceralmente e
provocavam intelectualmente, nos anos 80 e 90 o “cinema recuperativo” enquadra
o mal estar diagnosticado em Taxi Driver: o Mal irrompe em típicos
bairros de subúrbio das classes médias, mas em locais sujos como porões,
garagens, celeiros e becos; medo e paranoia são problemas de assepsia e
controle. Jason e Fred Krugger não pertencem à condição humana, são Outros.
Formas de violência sadísticas, primitivas e exibicionistas |
Enquanto
isso, o Sci-fi se degenera em filmes de fantasia motivacional e New Age como Campo dos Sonhos e Forest Gump ou filmes quase espirituais como Ghost, Cidades
dos Anjos ou Amor Além da Vida. Toda a questão da esquizofrenia e paranoia
é reduzida à impossibilidade de comunicação ou a uma religiosidade na sua forma
mais deteriorada.
Ao
mesmo tempo, dois subgêneros surgem para traduzir a paranoia de uma forma
mercadologicamente aceitável: filmes que poderiam, por assim dizer, ser
denominados como “desconstruindo o Yuppie” e “teorias da conspiração”.
Depois de Horas, Procura-se
Susan Desesperadamente, Totalmente Selvagem são
exemplos de comédias sobre ansiedade: a paranoia do protagonista não se origina
de um conflito com a sociedade, condição humana ou consigo mesmo, mas da
constatação de que a vida é caos, acúmulos de infelizes coincidências sem
propósito ou sentido (percepção que, afinal, surge da resignação do indivíduo
nas grandes cidades).
Os novos paranoicos
Filmes
como Teoria da Conspiração, Cocoon, War Games, Starman, ET, etc,
vão transformar a paranoia em medo de conspirações. Os novos paranoicos agora
são crianças, idosos, e subempregados cuja paranoia origina-se do ressentimento
pela condição social subalterna. Toda a conspiração que porventura o
protagonista se vê enredado é proveniente de um genérico “sistema” ou de uma
figura inescrupulosa que está “corrompendo” os valores autênticos do sistema.
A
partir da segunda metade dos anos 90, o “cinema esquizo” passa a ter um
renascimento com um súbito interesse por escritores gnósticos como Philip K.
Dick e Cornac McCarthy (respectivamente O Homem Duplo e A Estrada),
roteiristas como Charlie Kauffman (Quero ser John Malkovitch e Brilho Eterno
de Uma Mente Sem Lembranças) com profundos temas, simbologias e
iconografias gnósticas e diretores como David Lynch (Inner Empire e
Mulholland Drive) ou Scorsese (Ilha do Medo). Novamente, vemos
protagonistas instáveis, potencialmente psicóticos e paranoicos, mas, dessa
vez, com um viés “xamânico”: a jornada conduz a um nível para além da ilusão e
da realidade. Como as duas faces de uma mesma situação, devem ser transcendidas
por meio do insight místico: a gnose.
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