sexta-feira, agosto 02, 2024

'As Bicicletas de Belleville': a animação que anteviu o que viria nesse século


Imagine se o Monsieur Hulot (personagem icônico de Jacques Tati) conhecesse Tim Burton; e Marquês de Sade se encontrasse com o infame ciclista flagrado dopado na Tour de France, Lance Armstrong. O resultado é a excêntrica, estranha, selvagem e mágica animação francesa “As Bicicletas de Belleville” (Les Triplettes de Belleville, 2003). É uma animação muito estranha para ser enquadrada em qualquer tradição estabelecida. A máfia francesa monta em “Belleville” (uma representação expressionista de Nova York) uma bizarra casa de apostas com ciclistas sequestrados da Tour de France. O animador Sylvain Chomet parece ter antevisto muitos aspectos do século que se iniciava: a hipertrofia comercial da Tour de France, a cooptação geopolítica da França (e de resto, da Europa inteira) pelos EUA na Guerra Fria 2.0 atual contra a Rússia, e a ascensão do universo das apostas com o domínio da tecnologia e financeirização.

“Chamá-lo apenas de estranho seria covarde. É assustador, excêntrico, esquisito, funky, grotesco, inescrutável, pervertido, maluco, mágico, estranho, muito estranho, rude e sobrenatural”. Assim o grande crítico de cinema Roger Ebert escreveu no Chicago Sun-Times em 2003, a respeito da animação francesa As Bicicletas de Belleville (Les Triplettes de Belleville, 2003).

Isso porque a produção de Sylvain Chomet se insere num tipo animação bem peculiar no universo fílmico.

Em geral o campo das animações é marcado pelo seu realismo, principalmente com a evolução da computação gráfica e animação 3D. Podem evocar mundos imaginários cujos habitantes - as criaturas marinhas em Procurando Nemo, as bruxas e princesas nos contos de fadas clássicos da Disney, as heroínas de olhos arregalados dos animes japoneses – mas se movem de maneiras mais ou menos realistas, com personagens antropomorfizados, através de cenários fantásticos. 

Mas há um outro tipo de animação (e os desenhos animados de Tex Avery e Chuck Jones vêm à mente) reescrevem as leis da física e as convenções da fisiologia para atender às suas próprias necessidades fantasiosas do roteiro.

As Bicicletas de Belleville, o primeiro longa-metragem de Sylvan Chomet, certamente pertence a esta segunda categoria. O universo de Chomet é de pura impossibilidade e antirrealista, onde tamanho, proporção e equilíbrio são governados pelos caprichos de sua caneta perversa e imaginação peculiar que redefine as leis da física.

Suponhamos que As Bicicletas de Belleville seja o momento em que o Monsieur Hulot se encontra com Tim Burton, e Marquês de Sade conhece o ciclista flagrado com dopping Lance Armstrong.

Embora essa imaginação tenha sido evidentemente alimentada por fontes tão diversas quanto Betty Boop, Jacques Tati e quadrinhos europeus, As Bicicletas de Belleville é muito estranho para ser assimilado a qualquer tradição conhecida.  

A animação de Chomet causa estranheza porque, em pleno início de século XXI, retoma todos os tropos dos filmes slapsticks do início do século XX- aliás, no qual se basearam todas os desenhos animados subsequentes, de Pica-Pau à turma do Pernalonga. 




Os filmes de humor pastelão slapstick (Chaplin, Gordo e o Magro, Buster Keaton, Harold Loyd etc.) eram irrealistas, desafiavam todas as leis naturais, produzidos para um primeiro público que ia ao cinema (ou “nickelodeons”, ou “teatro do níquel”) para ver na tela tudo o que desafiava o realismo – seja natural, político ou econômico.

Mas Chomet acrescenta algo mais crítico e selvagem: uma espécie de antevisão do que a Europa poderia esperar para as próximas décadas: como as tradições francesas se hiperrealizariam através do mundo dos negócios e da mídia promocional. E o papel decisivo dos EUA nesse processo.

Tudo na animação gira em torno de uma verdadeira instituição francesa: a Tour de France, volta de ciclismo de estrada que é o clímax do calendário do ciclismo profissional – criada em 1903 para alavancar as vendas do jornal L’Auto, virou talvez mais do que uma instituição. É um softpower nacional, que vende para o mundo as belezas rurais, vinícolas, castelos e palácios através das tomadas aéreas das transmissões de TV que acompanham pelotões de dezenas de ciclistas.

Etapas insanas, com subidas de mais de mil metros em ângulos agudos. Como diz numa das poucas linhas de diálogo da animação: “uma competição em que o corpo humano se funde com o aço!”.

Do jornal L’Auto, ciclistas passaram a ser patrocinados e formar equipes – patrocinadores como brasseries, delicatessens, boucheries etc. Na animação, ciclistas são acompanhados por divertidas vans carregando mockupsgigantescos dos seus produtos. 

Começa a crítica social de Chomet: quanto mais a máquina dos negócios se expande, mais os ciclistas são massacrados em demonstrações sensacionalistas de resiliência na TV – enquanto o traço do desenho de Chomet fica cada vez mais hiperbólico.



Porém, para os nossos heróis as coisas podem ficar ainda piores: Belleville (a representação expressionista de Nova York) entra em cena: a máfia francesa de Marselha monta um negócio de apostas em Belleville... com ciclistas sequestrados na Tour de France.

Revendo As Bicicletas de Belleville, é inacreditável vermos na abertura das Olimpíadas de Paris dessa uma animação realista com os Minions de Meu Malvado Favorito (animação americana dos Estúdios Universais), enquanto toda a rica tradição francesa de animações como Planeta Fantástico, A Pequena Loja dos Suicídios, Le Tableau entre inúmeras na sua história.

Simplesmente foi desprezada a rica história criativa e estranha da animação daquele país.

O Filme

 A abertura é um espetáculo em preto e branco: impertinente, exuberante e um pouco assustador. Evoca Josephine Baker e Fred Astaire (comidos por seus próprios sapatos) e apresenta as Trigêmeas do título original, um trio de cantores de scat – gênero criado por Louis Armstrong que consiste em cantar vocalizando sem palavras.



Essas celebridades acabam se transformando em imagens em um velho aparelho de televisão que pertence a Madame Souza, uma velha com óculos grossos e sapatos ortopédicos que vive em um prédio envelhecido com seu neto órfão, Champion, nas cercanias de Paris. 

Ele é um garoto sombrio e robusto que sorri apenas quando sua avó o presenteia com um triciclo, um presente que prenuncia sua eventual transformação em um ciclista do Tour de France de olhos tristes, magro, com panturrilhas e coxas hipertrofiadas.

A história é muito bizarra e maravilhosa para resumir, mas leva Madame Souza a Belleville, uma cidade de sonho semelhante a Manhattan povoada por comedores de hambúrgueres obesos, escoteiros cretinos e um diminuto chefe da máfia francesa de nariz vermelho. 

O neto de Madame Souza foi sequestrado junto com outros ciclistas, em plena Tour de France, por mafiosos marselheses que estão montando um negócio em Belleville, do outro lado do Atlântico: apostas em ciclismo, com os ciclistas pedalando bikes ergométricas, enquanto na tela são projetadas imagens das estradas da França.

Belleville (não deve ser confundido com o bairro de Paris de mesmo nome) também é o lar dos Trigêmeas, agora idosas e esquecidas, morando na periferia em ruínas. Subsistem alimentando-se de sapos e fazem música a partir de sons rítmicos tirados de eletrodomésticos, jornais cuidadosamente preservados, prateleiras de geladeiras e... roda de bicicleta.



As Bicicletas de Belleville é impiedoso com a representação expressionista de Nova York. Para começar, a Estátua da Liberdade consiste numa mulher obesa levando não uma tocha, mas um hamburguer.

A América como uma terra expressionista, onde tudo é exagerado, obeso, paroxista: levado pelo princípio da eficiência e pragmatismo, a máfia francesa encontra o lugar perfeito para turbinar seus negócios: transformar uma instituição francesa, o ciclismo (já hiperrrealizado pela TV e patrocinadores – e o escândalo do ciclista norte-americano, Lance Armstrong, colocando em xeque a própria competição foi um exemplo), num negócio muito mais lucrativo ao se render aos valores pragmáticos dos negócios na Belleville/Nova York.

Em As Bicicletas de Belleville, Sylvain Chomet parece ter antevisto muitos aspectos do século que se iniciava: a hipertrofia comercial da Tour de France, a cooptação geopolítica da França (e de resto, da Europa inteira) pelos EUA na Guerra Fria 2.0 atual contra a Rússia, e a ascensão do universo das apostas com a hegemonia da tecnologia e financeirização.


 

Ficha Técnica

 

Título: As Bcicletas de Belleville

Diretor:  Sylvain Chomet

Roteiro: Sylvain Chomet

Elenco: Michèle Cauchetaux, Jean-Claude Donda, Michel Robin

Produção: Production Champion, Vivi Film, France 3

Distribuição: Canal +, Vivi Films

Ano: 2003

País: França

 

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