sábado, agosto 24, 2024

Os Três Cavaleiros do Apocalipse pós-moderno no terror 'Oddity'


Discutir sobre a natureza da pós-modernidade implica falar sobre os chamados “Três Cavaleiros do Apocalipse”: Nietzsche, Marx e Freud – aqueles que tiraram a centralidade da Razão e colocaram no lugar, respectivamente, o demasiado humano, o peso do legado do passado e o inconsciente. O thriller irlandês de terror “Oddity” (2024) transforma essas armas do Apocalipse em um conto sobrenatural com um atrevido humor negro no qual a racionalidade científica se opõe ao sobrenatural e o Oculto. O confronto entre um médico psiquiatra de comanda um hospital psiquiátrico com criminosos dementes e uma sensitiva proprietária de uma loja de antiguidades que vende objetos amaldiçoados. Razão vs. sobrenatural na elucidação de um assassinato que expõe o destino da Razão: transformar-se em “racionalização”, isto é, em álibi para o demasiado humano.

Nas discussões sobre a natureza da pós-modernidade fala-se sobre os chamados “Três Cavaleiros do Apocalipse”: Marx, Nietzsche e Freud. Os três pensadores que definitivamente dissolveram o humanismo ao retirar o homem da centralidade da História. Para Marx, o homem não faz a sua própria história como quer, mas segundo as circunstâncias e o legado deixado pelo passado.

Nietzsche, o livre-arbítrio é uma falácia por ser um atributo usado pelos moralistas para persuadir que o homem é a causa de si mesmo.

E Freud retira da centralidade aquilo que distinguiria a humanidade: a Razão. Para o pai da Psicanálise, o homem não é um ser racional, mas racionalizante. Isto é, o motor das ações humanas seria inconsciente (impulsivas, pulsionais etc.). O manto que envolveria a Razão (o centro da ilusão do livre-arbítrio) seria o da racionalização: todo o discurso moral e científico funcionaria como um álibi para justificar e ocultar de que a origem de toda ação humana é “demasiado humana” (Nietzsche) – impulsos inconscientes.

Portanto, seria todo o edifício religioso, moral e científico da civilização meras racionalizações, álibis, pretextos, justificativas para tornar mais nobres as ações humanas? Mais ainda do que ideologias, as racionalizações dão o verniz necessário para normalizar o demasiado humano impulso por poder, dominação, manipulação, exclusivismo etc.

Extrapolando os insights freudianos, justamente por essa natureza racionalizante, a Ciência se isola na sua torre de marfim, desconectando-se de outras realidades mais sensíveis: o imaginário, o espiritual, a magia, o Oculto. Racionalização é abstração. E quando a Ciência fecha em si mesma, criando um sistema tautológico, fechado em si mesmo.

O surpreendente filme de terror de Damian Mc Carthy, Oddity (2024), produção que fez parte da Seleção do Fantasia Festival de Quebec, suscita essas questões ao confrontar uma instituição total na forma de um hospital psiquiátrico com um caso de um horroroso assassinato de uma mulher cometido supostamente por um paciente que fugiu no meio da noite da instituição.



E, como pivô da narrativa, um psiquiatra responsável pelos diagnósticos e laudos sobre ocorrências daquele hospital.

E, como contraponto da racionalidade científica, uma loja de antiguidade repleta de objetos amaldiçoados gerenciado por uma sensitiva cega – mas com os outros sentidos totalmente abertos para uma realidade mágica alheia à racionalização científica.

Essa mulher assassinada é a própria esposa do psiquiatra que coordena todas as atividades da instituição psiquiátrica. E a sensitiva cega, a ainda inconformada pela assustadora forma como a sua própria irmã foi assassinada – desde o início sabemos que ela é o polo de tensão desse thriller sobrenatural. Silenciosamente, desconfia da forma como as investigações policiais foram encerradas e um doente mental responsabilizado pelo crime.

E pretende desenterrar a verdade sobre a morte da irmã. E ela conta com um companheiro: uma figura de madeira horrível em tamanho real com uma boca escancarada e uma cabeça cheia de buracos, vindo diretamente da sua loja de objetos antigos amaldiçoados.

A cinematografia do diretor irlandês é elegante, bonita e com uma narrativa lenta, com um senso de humor negro atrevido e com uma clara devoção pelas tradições do gênero.

Mas o argumento propulsor da história vem diretamente dos nossos três cavaleiros do apocalipse: a oposição entre Ciência e Magia e o discurso científico como racionalização e discurso de poder.

O Filme

Oddity abre com uma sequência forte. Dani (Carolyn Bracken) está sozinha em uma antiga casa de campo de pedra, longe da civilização. Há uma batida alta na porta uma noite. Ela abre um pequeno visor da porta e vê um homem (Tadhg Murphy) com um brilho selvagem. Ele tem um olho de vidro. Diz a ela, com urgência, que viu alguém entrar na casa e ela está em terrível perigo. Dani está, naturalmente, desconfiada desse homem de aparência assustadora, e ela hesita em acreditar nele. Pode ser uma armadilha. No entanto, ela ouviu barulhos de rangido no andar de cima. Talvez ele esteja certo? Mas ela realmente quer acreditar nesse estranho?



O filme então, surpreendentemente, salta um ano à frente, deixando-nos em suspense. Dani foi morta naquela noite, e o evento está envolto em mistério. Seu viúvo Ted (Gwilym Lee) faz uma visita a uma pequena loja de curiosidades, administrada pela irmã gêmea cega de Dani, Darcy (também interpretada por Bracken). 

Ele veio para entregar um objeto: um olho de vidro, o mesmo olho de vidro usado pelo homem suspeito da sequência inicial. Talvez Darcy, uma sensitiva que pode "ler" objetos, seja capaz de "ver" através desse olho e descobrir o que aconteceu com sua amada irmã. 

Ted não parece ansioso para descobrir o que aconteceu com Dani. Ele inclusive já começou a namorar outra pessoa, a glamourosa Yana (Caroline Menton), uma propagandista da indústria farmacêutica. 

Ted e Yana fazem uma viagem de fim de semana até a casa de pedra, agora reformada. Darcy faz uma visita surpresa, e ela vem carregando uma relíquia de família: um assustador homem de madeira em tamanho real que é colocado sentado em uma mesa de jantar. 

O homem de madeira, e é uma criação aterrorizante. O rosto do homem de madeira está inundado de agonia, sua boca aberta em um grito. Darcy o coloca na mesa, como se ele estivesse pronto para uma refeição. 

Yana está apavorada. Ted é médico (ele trabalha em um hospital psiquiátrico para os doentes mentais criminosos) e é cético em relação a toda essa bobagem de fantasmas, sensitivos ou fenômenos paranormais. Razão pela qual dá pouca importância à investigação parapsicológica de Darcy.

Ele tem que voltar para o hospital, então ele deixa Yana sozinha com Darcy (e o homem de madeira). 

O homem de madeira se senta à mesa durante toda a noite escura. Às vezes, no entanto, ele parece ter mudado de lugar. Ele não está onde deveria estar. Yana é estranhamente atraída pelo homem de madeira. O que isso significa, o que isso transmite? A atmosfera de ameaça nesta casa de pedra de forma estranha é tão espessa que quase não há oxigênio. Qualquer terror que Dani tenha enfrentado naquela noite na cena que abriu o filme ainda está vivo.



Oddity faz um uso genial daquilo que o chamado “Paradigma do Roteiro Syd Field” (norte-americano considerado o guru dos roteiros cinematográficos) chama de “pinça”: cena, fala ou objeto que coloca a trama em movimento no primeiro ato. Para depois ser retomado no terceiro ato, após o plot twist, com um novo sentido que amarra a trama.

A duas pinças são apresentadas no primeiro ato: uma velha sineta de hotel da loja de antiguidades (como sempre, carregando uma maldição), e a recorrente imagem de um internado do hospital psiquiátrico, sempre mostrado de costas, com uma máscara ao estilo Hannibal Lecter de O Silêncio dos Inocentes.

O sonho da Ciência – Alerta de Spoilers à frente

A polarização narrativa é entre o médico Ted (a Ciência) e a sensitiva Darcy (a Magia). Na medida em que o filme avança, vamos compreendendo a extensão do poder de Ted naquela comunidade. E, como ele próprio afirma acerta altura, ele pode escrever qualquer coisa, emitir qualquer laudo, que logo será aceita como verdade científica.

Assim Ted deu como caso encerrado ao assassinato da própria esposa: supostamente, o autor foi um dos internos fugitivos. Ted é metódico, organizado, disciplinado. E, estranhamente indiferente com a tragédia, em pouco tempo começando a namorar com uma colega de trabalho.

Ted é o discurso científico e seu papel de racionalização – ocultar um crime cometido e organizado pelo próprio marido. Para abrir caminho para sua amante.




Mas os objetos “amaldiçoados” da loja de antiguidades revelam a Darcy tudo o que ocorreu. Mas, principalmente, levanta a questão: quem realmente está assombrado, a casa ou os vivos?

Espiritualistas e esotéricos acreditam que os ambientes em que vivemos nos transmitem energias. Isso porque paredes e objetos têm memória – afinal, testemunha tudo o que acontece ao longo do tempo nos cômodos e espaços. 

Mágoas, ressentimentos, dor, ódio; mas também alegria, entusiasmo, amor, paixão seriam absorvidos pelo ambiente:  cimento, tijolos, madeira e outras matérias-primas que absorveriam as vibrações naquele ambiente, formando ondas eletromagnéticas.

Realidade ou não, o fato é que essa ideia dá sentido ao arquétipo dos fantasmas e casas mal-assombradas como materializações ou condensações dessas vibrações que repercutem nos vivos. 

Quem está assombrado? A casa ou os vivos? De certa forma, Oddity renova os tropos da casa mal-assombrada, cânone do gênero – na verdade é a consciência dos vivos que assombram as casas. Ocultada pela racionalização científica de Tedy.

A genial “pinça” da velha sineta de balcão de hotel, na cena final, vai lembrar bastante a tela de Francisco Goya “El Sueño de la Razon Produce Monstruos”.

A palavra espanhola “sueño” pode significar tanto “sonho” como “sono”. Com essa máxima, Goya parecia antever a ambiguidade da utopia projetada pelo Iluminismo de que Razão varreria da sociedade a superstição e a religião, afastando a ignorância e trazendo a luz e o progresso da racionalidade. De certa forma Goya, na arte, antecipou a crítica à Modernidade que a filosofia (Nietzsche), a psicanálise (Freud) e a economia política (Marx) fariam logo depois: paradoxalmente a Razão geraria o seu inverso – a irracionalidade, as guerras tecnologizadas, a violência, a exploração e os novos totalitarismos centrados na engenharia social proporcionado pelas novas ferramentas tecnológicas. 

E em Oddity, o sonho da Ciência é a consciência culpada pelos crimes ocultados pela racionalização científica. 


 

Ficha Técnica

 

Título: Oddity

Criação:  Damian Mc Carthy

Roteiro: Damian Mc Carthy

Elenco: Carolyn Bracken, Johnny French, Gwilym Lee, Caroline Menton, Steve Wall

Produção: Keeper Pictures

Distribuição: IFC Films

Ano: 2024

País: Irlanda

 

Postagens Relacionadas

 

Em 'Night's End' o sonho da Razão produz monstros

 

 
Minissérie 'Inside Man': ciência e religião na jornada simbólica de Ulisses

 

 

Luto e a gnose na experiência quase-morte em 'A Casa Sombria'

 

 

 

Em "Relic" a perda do elo geracional cria fantasmas que aterrorizam as novas gerações

 

 

 

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review