Estamos vivendo a época da combinação infernal entre empreendedorismo e motivação coach – o paroxismo de toda a literatura de autoajuda, desde o seminal livro “Como Fazer Amigo e Influenciar Pessoas” de 1936. O resultado disso é mostrado na comédia dramática de humor negro “Crumb Catcher” (2023): ressentimento motiva um idoso garçom que se considera um “empreendedor e inventor” que tenta encontrar um investidor para sua última aposta: um dispositivo para limpar migalhas das mesas de restaurantes. E um casal de noivos, aparentemente ricos, sai da sua festa de casamento seguido pelo “garçom empreendedor” que pretende convencê-los a investir no negócio. Nem que seja à base da chantagem e extorsão. Porém, o casal vive a sua própria tensão das diferenças de classes sociais. Uma combinação explosiva: luta de classes e a polidez eufemista da propaganda coach que a qualquer momento pode se transformar numa explosão de violência.
Empreendedorismo e estratégias motivacionais coach são fenômenos cada vez mais inseparáveis. A ideia do empreendedorismo (outrora restrita aos grandes capitães da indústria que fizeram o capitalismo, orientados pela ética protestante do trabalho como bem nos explicou o sociólogo Max Weber), através da mídia e do populismo político de extrema-direita, acabou se tornando numa estratégia desesperada de sobrevivência de uma massa de desempregados - a pièce de résistance da ideologia meritocrática numa economia em que não há mais emprego formal para exercer o mérito.
E as pseudofilosofias motivacionais coach são o paroxismo de toda a literatura de autoajuda, desde o seminal livro de Dale Carnegie chamado “Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas”, de 1936. Também, a desesperada busca de encontrar dentro de si mesmo alguma energia extra para fazer frente a um mundo em que todas as portas de oportunidades estão se fechando.
Tanto o ideário da autoajuda quanto os workshops e experiências de imersão coach produzem um perigoso efeito colateral: o sentimento de culpa (afinal, se você fracassou a culpa é exclusivamente sua por não entendido bem as dicas do guru) e o ressentimento. Sentimentos diligentemente explorados politicamente pela extrema-direita – se fracassei, tenho que buscar algum bode expiatório para aliviar a pressão do fracasso.
Por isso, culpa, ressentimento, luta de classes e vingança tornaram-se uma combinação explosiva nesse século, chamando a atenção de diretores e roteiristas no cinema e audiovisual. Desde o filme sul-coreano premiado pelo Oscar Parasita (2019), uma sequência de produções que aprofundaram esse abismo psíquico dos nossos tempos: série Round 6 (2021), O Menu (2022), Triângulo da Tristeza (2022), entre outras.
Mas certamente a estranha comédia dramática de humor negro Crumb Catcher (2024) é até aqui a que melhor combinou de uma forma bizarra esse caldo cultural de empreendedorismo, motivação coach e desespero. Que pode ser sintetizada da seguinte maneira: uma história de quando a polidez do propagandista empreendedor se transforma numa explosão de violência.
No filme de estreia do diretor Chris Skotchdopole conhecemos um garçom envelhecido que se autodenomina “inventor e empreendedor”. Um garçom cansado de trabalhar para buffets que organizam festas caras para clientes ricos. Ele sabe que o relógio da idade está correndo e ele não quer ficar para trás como um perdedor na corrida da escalada social.
Então, ele aposta tudo na sua última cartada: uma invenção que, segundo o seu material de divulgação (caprichados cartazes e folders que parecem ter queimado suas últimas economias), irá “limpar a América” – uma máquina com um design vintage, pensada para evitar que o garçom interrompa conversas românticas de casais em restaurantes: o “crumb catcher”, um dispositivo para limpar migalhas da mesa manuseada pelo próprio cliente. Sem mais ter que pedir ajuda ao garçom.
O leitor provavelmente já deve ter conhecido esse tipo de homem: um vendedor autoconfiante, prolixo, com uma irritante lábia com o ritmo dos discursos de telemarketing. Incapaz de discernir quando é o momento de parar ou perceber os sinais não verbais de irritação da vítima da propaganda. Tão autoconfiante que simplesmente não consegue parar.
Talvez o leitor já tenha tentado evitar um desses, e sabe como às vezes é difícil.
As fronteiras entre a polidez coach e a violência são tênues. É o que nos mostra o filme Crumb Catcher. Um wannabe de empreendedor que tudo o que procura é um empurrão inicial, alguém que invista dinheiro para impulsionar sua invenção. E, por que não, o dinheiro dos noivos supostamente milionários, de uma suntuosa festa de casamento na qual serviu?
Mas e se a obstinação desse “empreendedor”, motivado pelo ressentimento e desespero por ter passado a sua vida servindo ricos, explodir em terror e violência?
O Filme
Crumb Catcher começa com uma tensa sessão de fotos dos noivos que chegam à festa após a cerimônia de casamento. Entre Shane (Rigo Garay) e Leah (Ella Rae Peck) há uma cliama de tensão e desconforto.
Ele (um descendente porto-riquenho) está claramente desconfortável com o ambiente sofisticado, que seus pais aparentemente desaprovam pela disparidade social; ela inconscientemente "corrige" tudo que Shane fala – afinal, foi a sua família que pagou todos os custos da festa. Ela trabalha em publicidade para uma editora que está preparando a máquina de divulgação para lançar o primeiro livro de Shane.
Parece ser mais do que um casamento: é uma parceria comercial, no qual Shane e Leah estão apostando tudo na autobiografia sobre preconceito e intolerância na vida de um hispano-americano no país – lembrando o filme Ficção Americana, no caso sobre um escritor negro.
Shane acorda na manhã seguinte ainda de smoking, com uma ressaca que obscurece qualquer lembrança do que se passou na festa. A noiva, irritada, ordena que ele vá para o carro para que eles possam dirigir para o norte do estado, para uma casa de férias chique que o dono da editora empréstou para a lua de mel.
A atmosfera já tensa é aumentada quando Shane expõe sérias dúvidas sobre a publicação do livro autobiográfico que eles trabalharam por cinco anos, temendo que isso cause dor indevida à sua família. Claro que a ambiciosa Leah não concorda com isso.
Quando entram no carro são abordados por John (John Seperedako), o garçom da festa pedindo desculpas pelo problema com o bolo de casamento, e oferecendo uma garrafa de espumante como pedido de desculpas do buffet.
Mas tudo começa a adquirir uma atmosfera bizarra quando, ao chegaram na casa de campo, descobrem que foram seguidos por John. Em um carro carregado de quinquilharias, ao lado de uma bartender desagradável chamada Rose (Lorraine Farris) que trabalhou na festa.
O pretexto foi para entregar um bolo de casamento atrasado. Mas aos poucos, a polidez começa a dar lugar a um caso de chantagem e extorsão.
John e Rose são um par de vigaristas valdevillianos. Que obriga o casal a assistir a uma elaborada apresentação sobre invenção de John, o “crumb catcher”, com direito a flipchart, cartazes, folders graficamente bem elaborados e uma demonstração performática do dispositivo – no qual o casal é coagido a participar.
Tudo o que John quer é um adiantamento inicial, um capital para dar início ao empreendimento que promete “limpar a América”.
Leah não sabe, mas Shane está sendo chantageado com um vídeo de escândalo sexual dele na festa. Que ele mal se lembra.
A questão é que John acredita que o casal é milionário... Mal sabe ele que a casa é emprestada e o casal está apostando na virada financeira com a publicação do livro de Shane.
Como um filme dos irmãos Cohen, Crumb Catcher é uma comédia negra de erros.
Crumb Catcher poderia ter explorado satisfatoriamente sua premissa dentro das limitações de um curta.
Mas a direção de Skotchdopole mantém tensão suficiente, e seu roteiro proporciona complicações suficientes para manter os espectadores entretidos com o desastre de quatro mãos. Há até um pouco de pungência no final (todos os protagonistas são antipáticos, bloqueando a identificação do espectador que procura o “mocinho” da história), quando a guerra total entre os recém-casados e o casal de “empreendedores” assume a forma de uma perseguição veicular perigosamente embriagada em estradas rurais sinuosas.
Os livretos e folders e papel couchê brilhante, ricamente ilustrados inspirados na publicidade ao estilo Norman Rockwell nos quais John queimou seus últimos tostões têm um preço: o sucesso a qualquer custo.
É o momento em que o empreendedorismo, motivado por uma autoconfiança insana, pode rapidamente se transformar em violência. Uma comédia de humor negro, como Crumb Catcher.
Ficha Técnica |
Título: Crumb Catcher |
Diretor: Chris Skotchdopole |
Roteiro: Chris Skotchdopole, Larry Fessenden, Rigo Garay |
Elenco: Rigo Garay, Ella Rae Peck, John Seperedako, Lorraine Farris |
Produção: Glass Eye Pix, Gigant Pictures |
Distribuição: Music Box Films |
Ano: 2023 |
País: EUA |