O filme “Sob a Pele” foi lançado em 2013, mas tem o sabor dos filmes sci-fi cult dos anos 1970: intensidade visual subjetiva, montagens dissociativas e estranhos efeitos sonoros. Estamos aqui no velho tema da invasão alienígena. Porém, narrado de uma forma ambígua: um alien travestido de mulher sexy e misteriosa vaga pelas ruas de Glasgow, Escócia, dirigindo uma van e atraindo homens para o que parece ser uma dança de acasalamento fatal. O que está acontecendo? Qual é o plano? A vanguarda de um plano de invasão alienígena? Ou algum tipo de turismo sexual intergaláctico? Como nos informa o título, o filme explora a dualidade entre o interior e o exterior do ser. E, como superfície, a pele é a grande metáfora.
Sob a Pele (Under the Skin, 2013) é um filme de ficção científica fora do tempo. No meio de uma onda de filmes de invasões massivas alienígenas com gigantescas naves espaciais e tecnologias do outro mundo, desde Independence Day (1996), esse filme do diretor Jonathan Glazer (Birth, 2004) pertence aos anos 1970.
Seu tempo pertence a uma década em que diretores como Jodorowsky (The Holy Mountain), Nicolas Roeg (O Homem Que Caiu na Terra) pensavam o sci-fi com intensos visuais subjetivos, montagens dissociativas e estranhos efeitos sonoros.
Na atualidade, eventualmente surgem cineastas como Jonathan Glaze que exploram essas estranhas fronteiras da ficção científica. Fronteiras nas quais alienígenas, humanos e espectadores se confundem, criando estranhas fronteiras metalinguísticas. Um filme que parece querer nos dizer o seguinte: “aqui está uma experiência nada comum, com algumas imagens, sons e situações que te tiram do conforto. Quando acabar, pense no que viu e o que isso fez com você”.
Numa primeira leitura, Sob a Pele é um filme sobre invasão alienígena no qual Scarlett Johansson interpreta um alien travestido de mulher sexy e misteriosa que vaga pelas ruas de Glasgow, Escócia, dirigindo uma van e atraindo homens para o que parece ser uma dança de acasalamento fatal.
É um tipo de filme que exige uma nova visualização para descompactar mais significados que muitas vezes se perdem numa primeira leitura: o filme também nos diz sobre questões dos papéis de gênero, sexismo e, em um nível meta, da própria relação do espectador com esses clichês cinematográficos.
O experimentalismo do filme está principalmente nas sequências em que “A Mulher” (Johansson como o alien sem nome) roda pelas ruas na direção de uma van em busca aleatória de novas vítimas. A maioria das abordagens são com não-atores, transeuntes por acaso encontrados nas calçadas, capturados por câmeras ocultas colocadas pelo diretor no veículo. Resultando em situações espontâneas em cenas envolvendo personagens masculinos jovens e envolventes.
O resultado é uma curiosa situação metalinguística para o espectador: como os transeuntes abordados fogem totalmente dos clichês fílmicos das vítimas, de repente somos colocados no mesmo nível de experiência do alienígena – vemos esses personagens com o mesmo olhar da primeira vez do alienígena.
O forte sotaque escocês e as reações as mais imprevisíveis diante surpresa de ser abordado por uma garota tão sexy na direção de uma van, coloca o próprio espectador na condição alien, como se estivéssemos em outro planeta – aquele planeta do real, fora do universo ficcional cinematográfico.
Por um lado, Sob a Pele se diferencia do tema “invasão alien” tradicional (esquadra de discos voadores e tripods destruindo cidades com a intenção de exterminar a espécie humana) ao descrever uma estranha e ambígua “invasão” – se é que podemos assim definir. Um alien sob a pele de uma mulher atraente com o apoio operacional de motociclistas aparentemente também alienígenas disfarçados. O que está acontecendo? Qual é o plano? São eventos aleatórios ou a vanguarda de um plano de invasão alienígena? Ou algum tipo de turismo sexual intergaláctico que descobriu nas ruas de uma cidade escocesa presas fáceis?
Mas, por outro lado, o filme revisita a clássica derrota de aliens em nosso planeta: não resistem à ameaça viral que os terráqueos representam. No clássico Guerra dos Mundos (1953) foram os micro-organismos presentes em nossa atmosfera que mataram os marcianos; em Independence Day (1996), dessa vez um vírus eletrônico inserido na rede de computadores alienígenas. E em Sob a Pele, o vírus cultural representado pelo sexismo e misoginia.
O Filme
A abertura de Sob a Pele é muito mais figurativa do que real: imagens imersivas e hipnóticas.
Vemos uma tela preta com um pequeno ponto branco no meio. O ponto cresce incrementalmente, ou se aproxima, antes de se moldar em um padrão de anéis que sugere simultaneamente uma dilatação do canal de nascimento, os estágios de uma separação de foguete e um eclipse lunar visto através da lente de um telescópio. O que está acontecendo? O filme não nos diz exatamente. Talvez esta seja a “heroína”, o personagem de Johansson, caindo na terra ou pousando na terra. Talvez.
Em seguida, vemos um homem em uma motocicleta recuperando o corpo de uma jovem mulher (também Johansson) e a mulher vestindo seu corpo como se poderia vestir um conjunto de roupas. Quem é o motociclista? Ele é o companheiro dela? Quem é ela? Um astronauta de outro mundo que caiu na Terra? A vanguarda em uma invasão alienígena? Uma turista sexual intergaláctico que visita a Terra como um americano quando visita Amsterdã ou Bangkok?
Mas depois caímos em cenas reais pelas ruas de Glasgow. A Mulher sai e entra na van. O homem da motocicleta vai embora. A Mulher vai a um shopping e lojas de roupas. Ela compra um top e um casaco de pele. Ela também aplica maquiagem no rosto depois de ver outros humanos fazendo isso. Ela começa sua caçada. Muitas das pessoas com quem ela acaba falando fazem parte de fotos espontâneas. Essas eram pessoas em geral na estrada que foram capturadas por meio de câmera escondida.
Os alienígenas estão na Terra procurando homens. Os homens não são realmente aleatórios. Estes são homens que são selecionados com base em quão sozinhos eles estão – se namoram, têm família, para onde estão indo etc. A Mulher anda por aí procurando por esses homens.
Uma vez que ela encontra sua presa, ela as leva ao seu covil: a aparência é de um prédio antigo, mas em seu interior há um grande vazio: um piso escuro reflexivo que parece se comportar como água, como fosse uma espécie de piscina de colheita. A Mulher, no entanto, caminha bem em cima dela. Enquanto os homens, que parecem estar em algum tipo de transe, não percebem que estão afundando dentro desse líquido escuro. No fundo dessa Piscina de Colheita de vítimas, os humanos permanecem vivos por um tempo até o interior do corpo ser absorvido, restando nada além do que a pele, que fica flutuando.
Será que a carne humana seria uma iguaria no planeta deles?
O que percebemos é que, pouco a pouco, A Mulher vai adquirindo empatia com os humanos, compreendendo melhor suas reações, motivações e emoções. Aparentemente, começa a crescer um conflito entre o seu papel de chamariz e o seu interesse genuíno pelos humanos.
A pele e seu interior – alerta de Spoilers à frente
Como nos informa o título do filme, a narrativa explora essa dualidade entre o interior e o exterior do ser. E, como superfície, a pele é a grande metáfora.
A beleza sexualmente atraente da Mulher é uma aparência que seduz as vítimas aleatórias solitárias. Mas nas suas rápidas conversas para sondar as vítimas, ela aos poucos vai descobrindo as emoções e motivações humanas que estão para além da superfície.
Ela aos poucos começa a se arrepender do seu papel de isca e começa a ter um comportamento errante entre os humanos, após abandonar a van e deixar uma das vítimas fugir da piscina de águas escuras – o que deixa os motociclistas tensos, sendo obrigados a matar a vítima que fugiu. Afinal, poderá denunciá-los.
Porém, a sequência final é a síntese dessa dualidade que é central no argumento do filme. A Mulher é perseguida por um madeireiro em um parque florestal que pretende estuprá-la. Ele é atraído pela sua aparência, até descobrir acidentalmente o que está sob sua pele: ao agredi-la, sua pele é rasgada, revelando a pele escura do alienígena. Para o horror o madeireiro que foge. Para retornar com um galão para jogar combustível no alien e queimá-lo vivo.
A ironia parece proposital: o atacante se sentiu atraído pela aparência da Mulher. E quando conheceu o seu verdadeiro “interior”, resolveu matá-la.
Isso conecta-se com a trágica jornada do alien em sua crescente empatia com os humanos, na medida em que passou a conhecê-los muito além da superfície.
A entidade alienígena é destruída através da fórmula clássica: a perigosa natureza viral humana – aqui em Sob a Pele, não mais um vírus biológico ou informático. Mas agora, o vírus do Mal representado pelo sexismo e misoginia.
Ficha Técnica |
Título: Sob a Pele |
Diretor: Jonathan Glazer |
Roteiro: Walter Campbell, Jonathan Glazer, Michel Faber |
Elenco: Scarlett Johansson, Jeremy McWilliams, Lynsey Taylor McKay |
Produção: Film4, British Film Institute (BFI) |
Distribuição: HBO Max |
Ano: 2013 |
País: Reino Unido |