quinta-feira, setembro 21, 2023

Pinochet, vampiros e teratopolítica no filme 'O Conde'


No aniversário de 50 anos do violento golpe militar do Chile (que em 1973 derrubou o governo socialista de Salvador Allende), estão sendo exibidos muitos filmes e documentários sobre aqueles acontecimentos. Mas nada se compara à produção Netflix “O Conde” (El Conde, 2023):  Augusto Pinochet, assume a forma de um monstro político, um vampiro centenário condenado a viver para sempre escondido depois de fingir a própria morte, para evitar a punição merecida depois de anos de assassinatos e corrupção. Um fascista-vampiro que passou séculos lutando contra qualquer revolução socialista ou democrática. E uma freira-exorcista decide extirpar o Mal daquele corpo, para livrar o mundo do golpismo diabólico. “O Conde” é um exemplo da estratégia semiótica da “teratopolítica”: demonizar o inimigo político até transformá-lo em uma anormalidade, aberração e perigoso veículo de contágio de ódio e violência. Uma estratégia ambígua que pode despolitizar cenários políticos complexos.

Este mês foi o aniversário dos 50 anos do golpe militar do Chile quando, em 11 de setembro de 1973, apoiado pelo EUA que planejavam até invadir o país com marines, o general Augusto Pinochet liderou a derrubada do presidente socialista Salvador Allende. Fazendo o país mergulhar numa noite de repressão, tortura e desaparecimento de milhares de opositores políticos, governado por uma junta militar que declarou o país em “estado de guerra” e “estado de sítio”.

Nesse momento uma leva de filmes e documentários está relembrando os detalhes dos trágicos acontecimentos que marcaram para sempre a história do Chile. 

E até reconhecimentos tardios, como o da TV Globo (doc. O Grande Irmão): só depois de 50 anos, a emissora (que apoiou a ditadura militar brasileira) “descobriu” que: (a) foi um golpe militar; (b) que os EUA deram apoio logístico e financeiro com CIA, além de enviar uma frota naval para a costa do país; e (c) as Forças Armadas brasileiras deram apoio logístico e de inteligência aos militares chilenos.

Mas de todas essas “homenagens”, nada se compara com a produção Netflix O Conde (El Conde, 2023), uma sátira afiada do diretor chileno Pablo Larraín, onde o monstro político do seu país, Augusto Pinochet (Jaime Vadell), assume a forma de um vampiro centenário condenado a viver para sempre escondido depois de fingir a própria morte, para evitar a punição merecida depois de anos de assassinatos e corrupção.

Uma espécie de fascista-vampiro, desde sempre inconformado por ter testemunhado a Revolução Francesa e ter visto a nobreza ser guilhotinada. E que jurou para si mesmo viajar pelo mundo, com a cabeça de Maria Antonieta debaixo do braço, para impedir quaisquer levantes revolucionários de socialistas, bolcheviques ou comunistas.

Um vampiro que se transformou numa espécie de Forrest Gump reanimado, ressurgindo nos conflitos políticos mais importantes da História.



Uma criatura eterna ao estilo do clássico de Bram Stoker, porém com algumas variações: o fascista-vampiro Pinochet rejuvenesce ao beber um smoothie batido no liquidificador feito de corações humanos liquefeitos, arrancado diretamente do peito de uma das suas incautas vítimas.

Com suas mordidas, cria um séquito de servos imortais. O atual, um ex-soldado do Exército Branco pró-czarista chamado Fyodor (Alfredo Castro) que lutou ao seu lado na fracassada luta contra a Revolução Bolchevique de 1917. Para mais tarde aportar no Chile junto com Fyodor e, juntos, irem à forra contra os comunistas – e se deliciar com os seus corações arrancados e liquefeitos.

Transformar odiados personagens políticos em monstros não é exatamente uma novidade. E nós brasileiros conhecemos isso muito bem. Por exemplo, a jurista Janaína Paschoal referia-se ao governo Lula como “República da Cobra”. Lula foi estampado na capa da Veja como um monstro-jararaca. O político Paulo Maluf mereceu muitas charges em que era representado como um demônio segurando um tridente. Ou ainda Bolsonaro costumava ser ilustrado com um zumbi de Walking Dead. Ou o presidente desinterino Michel Temer na versão Conde Drácula em um carro alegórico de uma escola de samba no Carnaval de 2017.

  Essa é a estratégia semiótica de teratopolítica, conceito derivado da teratologia (de “terato”, “monstro”): ramo da ciência médica preocupado com o estudo das causas ambientais que possam alterar o desenvolvimento pré-natal levando a desenvolvimentos anormais.

Teratopolítica: demonizar o inimigo através da simplificação, exagero, vulgarização até transformá-lo em uma anormalidade, aberração e perigoso veículo de contágio de patologias sociais como ódio, violência, intolerância e preconceito.



É uma estratégia semiótica ambígua: por um lado tem um forte efeito propagandístico pela codificação exagerada, aproximando o personagem da estética do grotesco barroco.

Mas, por outro, a teratopolítica tende a simplificar processos políticos e históricos, paradoxalmente através do exagero: processos histórico-políticos criam conjunturas complexas de interesses políticos e econômicos que vão muito além dos interesses do protagonista-alvo da teratopolítica.

O golpe do Chile não foi resultante do voluntarismo de Pinochet: sua sanha por poder, dinheiro, corrupção e... corações batidos em liquidificadores. Vai muito além da sua figura, que acaba virando “um fusível a ser queimado” pela opinião pública. Como se o seu exorcismo livrasse o país para sempre do Mal – a trama de interesses econômicos e geopolíticos que impulsionaram a queda e morte de Allende.

Como veremos, esse é o problema semiótico-ideológico do filme O Conde.

O Filme

Uma narração em inglês quase parecida com um conto de fadas (a razão para essa escolha será revelada nas sequências finais) impulsiona esse relato sombrio e divertido. Primeiro narrando as aventuras malévolas que Pinochet, então sob um nome diferente (“Pinoche”), desfrutou durante os anos que antecederam a Revolução Francesa. 

Movendo-se ao longo da história em todo o mundo, sempre ao lado da elite opressiva e desestabilizando ativamente quaisquer movimentos de esquerda, ele alimentou não apenas seu desejo por sangue, mas também sua predileção pelo fascismo. 



Ao longo dos séculos, Pinochet acumulou uma coleção de relíquias mórbidas de suas viagens históricas, incluindo o chapéu de Napoleão e a cabeça de Maria Antonieta. O designer de produção Rodrigo Bazaes fabrica seu covil isolado (uma espécie de versão aterrorizante da “Xanadu” de Cidadão Kane) com uma autenticidade impressionantemente vivida; cada item parece ter suportado a passagem do tempo.

O fascista-vampiro vive recluso nesse covil, ao lado de Fyodor e sua esposa Lucia (Gloria Münchmeyer), um lugar de uma atemporalidade sedutora figurado com uma impecável fotografia em preto e branco. 

Pinochet pega sua capa, insígnias e quepe de general e vira uma figura sombria voadora, contornando os prédios de uma grande cidade litorânea. O assassino voador busca vítimas aleatórias para se deliciar do seu elixir. 

As notícias dessa horrível caçada chegam às manchetes, alarmando os seus filhos já na meia-idade: uma matilha de gananciosos, de olho na fortuna escondida do pai-vampiros, fruto de anos de corrupção no Governo. Pinochet fingiu a sua morte para escapar dos tribunais, mas as notícias de um assassino em série que arranca corações chamam a atenção dos filhos – o pai está em ação outra vez. Então, rumam para o covil do pai, de olho na herança.

Mas também chama a tenção de uma freira-exorcista chamada Carmencita (Paula Luchsinger), que tem um plano: se passar como contadora que fará o inventário da fortuna e tentar exorcizar o Mal do corpo do fascista-vampiro.



Teratopolítica e Ideologia – Alerta de Spoilers à frente

Grande parte do filme acompanhamos a clássica estratégia semiótica da teratopolítica: o golpe militar e as mazelas que se sucederam (torturas, repressão política e corrupção envolvendo exército e empresas) são unicamente resultantes da voracidade maligna de fascista-vampiro Pinochet e o sadismo de Fyodor – principalmente como ele se divertia ao torturar presos políticos).

Esse é o problema ideológico de O Conde: a questão política do Chile não passa pela mobilização coletiva, mas a pela esperança de que a freira-exorcista despache o Mal do corpo de Pinochet para o Inferno.

Pinochet morreu, mas os interesses geopolíticos em transformar o país em um laboratório para os extremismos neoliberais (que estavam por trás do golpe de 1973) continuam dando as cartas no Chile ainda hoje.

A virtude de O Conde é o desfecho no qual o neoliberalismo é também representado teratopoliticamente: descobrimos que a voz que narra a saga do fascista-vampiro é de Margareth Thatcher (a ex-primeira-ministra britânica, famosa pela ortodoxia neoliberal que impôs de forma violenta ao país), também uma antiga vampira que vem em socorro de Pinochet para salvá-lo de seu melancólico destino.

Dessa maneira, O Conde faz uma importante conexão entre o neoliberalismo imposto ao Sul Global e a figura do fascista-vampiro Pinochet: afinal, o radicalismo econômico da cartilha neoliberal só pode ser enfiado goela abaixo de uma nação através da atmosfera política das ditaduras ou do populismo do extremismo de direita.

Ou através de mordidas e smoothies de fluídos vitais humanos.


 

   

Ficha Técnica

 

Título: O Conde

Criação: Pablo Larraín

Roteiro:  Gullermo Calderón, Pablo Larraín

Elenco:   Jaime Vadell, Gloria Münchmeyer, Alfredo Castro, Paula Luchsinger

Produção: Fabula

Distribuição: Netflix

Ano: 2023

País: Chile

   

 

Postagens Relacionadas

 

Miriam Leitão, capas de revistas e a teratopolítica

 

 

Revisitando o 7X1 de Brasil e Alemanha: uma bomba semiótica na guerra híbrida?

 

 

Cineteratologia: a ciência dos monstros no Cinema

 

 

 

Série 'Post Mortem: Ninguém Morre em Skarnes': o mito do vampiro muito além do Mal

 

 

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review