sexta-feira, agosto 04, 2023

Operação Escudo, PMs de Cristo e fim dos livros nas escolas: a conquista política do imaginário


Três eventos simultâneos em São Paulo: a Operação Escudo na Baixada Santista vingando a morte de um policial militar (com anomalias que sugerem false flag), blindado pela grande mídia; a associação “PMs de Cristo" (vendendo bíblias com logo da PM-SP); e a abolição de livros didáticos nas escolas paulistas pelo governo do Estado – no lugar, equipamentos eletrônicos. “O Rio é o laboratório para o Brasil”, disse o interventor general Braga Netto em 2018. E agora, São Paulo é a bola da vez como laboratório de um projeto nacional do consórcio Forças Armadas/extrema-direita: a conquista do imaginário através do controle dos Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE): Mídia, Escola e Igreja. Enquanto o governo Lula tem no neodesenvolvimentismo 2.0 (picanha e cerveja para todos) o seu único projeto ideológico, a conquista do imaginário através dos AIE no cotidiano faz a cabeça daqueles que comem picanha e bebem cerveja.

Em fevereiro de 2018, o então interventor federal no Estado do Rio de Janeiro, General Braga Netto, fez uma críptica declaração: “Rio é um laboratório para o Brasil”. Segundo ele, um projeto para “salvar a credibilidade da segurança pública”.

Porém, o golpe militar híbrido (ceivado desde 2014 na Academia Militar das Agulhas Negras, Aman, ao lançar o candidato manchuriano Bolsonaro, culminado no impeachment de 2016 e finalizado com a vitória eleitoral do capitão da reserva em 2018) não se limitou a um mero golpe de Estado – instaurar um governo de ocupação que colocou mais de cinco mil militares aparelhando as instituições de Estado.

Indo muito além do economicismo neodesenvolvimentista 2.0 do atual governo (a certeza de que com picanha e cerveja para todos, as massas ficarão eternamente agradecidas a Lula e à concepção política progressista), esse golpe militar híbrido projetou para o futuro dois planos:

(a) Transformar as FA numa espécie de sistema operacional que roda em segundo plano no sistema político – invisível aos usuários (que prestam mais atenção aos ícones da interface), cria uma avalanche de informações dissonantes, factoides, mas, principalmente, não-acontecimentos. Como, por exemplo, o não-acontecimento da tentativa de golpe do 08/01 – de resto, mais um capítulo da simulação de um golpe militar old school que atravessou todo o governo Bolsonaro que teve dois objetivos: (1) criar uma paralisia estratégica na esquerda amedrontada em “esticar a corda”; (2) apagar as próprias digitais da FA em um golpe que já tinha sido dado - e ninguém percebeu, porque foi HÍBRIDO.

(b) Plano de longo prazo e em plena execução: fomentar as bases imaginárias no inconsciente coletivo para implementar uma nova ordem político-ideológica que realize de uma vez por todas a célebre profecia em 2005 do então senador catarinense Jorge Bornhausen: “porque a gente vai se livrar dessa raça [petistas, esquerda etc.], por, pelo menos, trinta anos”.

Plano de longo prazo que dá sentido à críptica frase proferida pelo general Braga Netto citada acima. 

Desde a intervenção (ou laboratório) no Rio de Janeiro, os passos para a concretização desse plano estão cada vez mais acelerados. E os sinais são cada vez mais evidentes.



Operação Escudo: false flag?

Era evidente que a eleição para o governo do Estado de São Paulo do bolsonarista e militar da reserva Tarcísio de Freitas (a nova criatura midiática, celebrado, por exemplo, pela “colonista” Eliane Catanhêde como “a direita moderna, liberal e inteligente” – clique aqui) repetiria no Estado a experiência do laboratório carioca. Claro, sem a dramaticidade de uma intervenção federal, mas com uma mentalidade militar comandando o processo.

A Operação Escudo na Baixada Santista (desencadeada após o assassinato de um policial da Rota por um “sniper do tráfico”, em meio à segunda edição da “Operação Impacto” na Baixada), que desencadeou uma sanha de vingança com até agora 16 mortos. Estendendo-se ao Litoral Norte depois que uma viatura policial foi baleada em Caraguatatuba. 

Blindado pela grande mídia (que ora relata tudo com um empirismo grosseiro, ora dá algum espaço a críticas apenas como notas de rodapé), o governador tece tranquilamente seu linguajar de um militar em ação. Expressões como “área conflagrada”, “efeito colateral” e “estamos juntos nessa guerra” são acriticamente ouvidas nos canais de notícia nas coletivas para imprensa.

Surpreendentemente, até a mídia progressista não questionou algumas visíveis dúvidas justificáveis que passaram a incomodar esse humilde blogueiro:

(a) “Sniper do tráfico”? A arma do autor do disparo, supostamente encontrada em um beco na favela Vila Júlia, é uma pistola 9mm – por acaso, isso é uma arma eficaz para um “atirador de elite” atingir uma policial no peito a mais de 50 metros?  

(b) O PCC entra em guerra apenas contra outras facções. Pelo menos em SP, desde os ataques de 2006 contra quartéis e brigadas da PM, o crime organizado evita confrontos para não atrapalhar os negócios nas “biqueiras” das diversas Sintonias – do “Bob”, maconha, do “100%”, cocaína, e das FMs, bocas de fumo - leia MANSO, Bruno Paes e DIAS, Camila Nunes, Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil, Todavia, 2018). Por que, de repente, agora o PCC coloca “snipers” para hostilizar policiais que se aproximam de comunidades?


Sniper do tráfico?


(c) Enquanto a Operação Escudo mobilizava 600 policiais mais a “Inteligência” da PM no Guarujá, o suposto “sniper do tráfico”, Erickson da Silva, se entregava bem distante, na Zona Sul da cidade de São Paulo. Segundo Erickson, se entregou para “uma pá de gente inocente não morrer”. Ora, um assassino de policial (e, ainda, da ROTA) sabe que seus dias estão eventualmente contados nesse mundo... mas as imagens na TV mostraram um atirador tranquilo, falante, caminhando calmamente e cercado por policiais. Mãos algemadas, mas nenhum deles o segurando ou arrastando-o. O que é de praxe nas imagens de capturas de bandidos.

(e) E, o tiro de misericórdia (desculpem o trocadilho) na opinião pública para promover a simpatia da Operação da PM: um aleatório ataque a uma viatura policial, as 6 horas da manhã, no urbanizado bairro de classe média do Campo Grande, Santos. Com uma vítima exemplar: uma mulher, uma policial militar que levou dois tiros nas costas (covardia!). Parada em frente a uma prosaica padaria – iria apenas tomar o seu café da manhã?

Todas essas dúvidas justificadas fazem lembrar a clássica estratégia de false flag, atualizada pela Teoria da Guerra Híbrida militar como “Loop OODA – Observação-Orientação-Decisão-Ação”. 

Em outras palavras, criar o problema para depois se apresentar para a opinião pública como solução. A mesma metodologia de engenharia do caos foi aplicada recentemente na Cracolândia, em SP: sistemática ação policial para espalhar o “fluxo” de traficantes e viciados pela região, tornando o problema numa metástase. Para depois comerciantes e moradores do Centro clamarem pela meganhagem policial como solução para uma questão fundamentalmente psico-social. 

Fé e meganhagem

Mas a “meganhagem” (policialização e militarização do cotidiano como lógica de pensamento) não pode se justificar por si mesmo. É necessário uma legitimação. Que só pode ser evidentemente religiosa.

É o caso dos “PMs de Cristo” (Associação dos Policiais Militares Evangélicos) que congrega 700 igrejas que oferecem oração diárias e palestras e eventos como encontros de famílias e valores cristãos motivacionais. No qual são vendidas bíblias personalizadas com o logo da Polícia Militar de SP na capa.

Isso é muito mais do que o velho Capelão nos quartéis que atendia individualmente soldados para compartilhar suas dificuldades e experiências com Deus. 

Mas chama a atenção a particular visão de fé neopentecostal – muito mais uma construção imagética do que conceito teológico.



Preste atenção, caro leitor, para os logos acima que representam a Fé nessa perspectiva. Imageticamente, o conceito de fé como arma e escudo. Muito mais ligado ao imaginário da Lei Mosaica do Velho Testamento (olho por olho, dente por dente”) do que pela nova ética cristã trazida por Jesus no Novo Testamento – perdão, compaixão, amor ao próximo etc.

Visão mosaica da fé cuja alusão predileta dos fiéis está no livro bíblico de Efésio 6:16 – “Tomando sobretudo e escudo da fé, com o qual podereis apagar todos os dardos inflamados do maligno”.  

Sabendo-se da interpretação literal que essas igrejas fazem dos textos bíblicos, não precisa muito esforço para perceber a conexão entre a meganhagem policial e essa concepção de fé como escudo e arma.

Concepção que se espalha para os civis, como não apenas discurso motivacional para uma concepção de vida encarada como lutas e dificuldades, mas também como categoria de pensamento que aceita como “lógica” a meganhagem policial. Ou uma concepção fascista de vida que busca uma tradução política em candidatos “anti-política”.

Basta dar uma olhada nessa foto abaixo da traseira de um caminhão bolsonarista: em cima, a bandeira brasileira. E na altura do para-choque, o logo da fé como arma e escudo e a exortação: “Basta ter!”. Com letras cujo design lembra sangue descendo por uma superfície.



Educação para o precariado

Não é mera coincidência que, enquanto a Rota vinga em civis a morte de um policial no Guarujá, o secretário da educação do governo de SP, Ricardo Feder, anuncia que vai acabar com livros didáticos na rede das escolas públicas estaduais.

A gestão do governador Tarcísio de Freitas não utilizará os 10 milhões de exemplares para os alunos do ensino fundamental 2 (6º ao 9º ano) no próximo ano, optando por material digital em vez de livros didáticos. Pela primeira vez, as escolas estaduais paulistas não receberão os livros do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), administrado pelo Ministério da Educação (MEC). 

Para além da questão suspeita do secretário ter ligação com empresa de equipamentos eletrônicos (Multilaser Industrial S/A), é mais uma ação que visa o controle desse imaginário do inconsciente social: preparar corações e mentes da nova geração para a precarização promovida pelo Capitalismo Cognitivo e de Plataforma – ao invés de uma educação voltada para produção de conhecimento, ensinar as competências cognitivas necessárias para lidar com interfaces digitais e planilhas. 

Competências simples e diretas que podem ser passadas por slides de PowerPoint. Livros didáticos são meros ruídos nessa nova escola em que professores viram “instrutores” ou “facilitadores”. 

E então, o ciclo se fecha: o trabalho precarizado proporciona uma vida difícil. Em que a concepção de fé neopentecostal como escudo e arma ganha sentido – a meganhagem como categoria de pensamento de uma vida que consiste em lutar contra inimigos – concorrência, pressão financeira, sobrevivência etc. É a concepção fascista de vida.



Em síntese, o que temos é que São Paulo é a bola da vez dos “laboratórios” imaginados pelo general Braga Netto. Laboratórios que lembram o clássico controle dos Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE), no sentido dado pelo pensador francês Louis Althusser – Meios de Comunicação, Escola e Igreja - Leia ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado, Paz & Terra, 2022.

Lembrando que Althusser defendia duas teses em relação à ideologia reforçada pelos AIE: (a) a ideologia é uma representação da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência; (b) A ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeito. 

Escola, Igreja e Mídia não representam as condições reais de existência, mas o imaginário que interpela os indivíduos como sujeitos: viram “evidências” - é evidente! É exatamente isso! É verdade! Porque a fé como arma e escudo torna-se evidente num mundo de “snipers do tráfico” ou PowerPoints tornam-se necessários em um tipo de trabalho precarizado em que livros didáticos não têm o menor sentido.

Enquanto o governo Lula se mantem no Economicismo 2.0 (“picanha e cerveja”) como única política ideológica, Forças Armadas e extrema-direita executam metodicamente o projeto de controle dos AIE e do imaginário. Para formar a base social de apoio a futuros governos que realizem a profecia de Jorge Bornhausen.

No passado, a esquerda dizia que o imaginário era o arquiteto da revolução - “A imaginação no Poder!” era a exortação no Maio de 68. 

Hoje ironicamente é a extrema-direita que é a mais “revolucionária”: colocaram em prática as ideias de um teórico comunista.

   

 

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