sexta-feira, agosto 25, 2023

A atmosfera distópica da cultura corporativa no filme 'Corner Office'


A frieza dos ambientes corporativos é um tema bem explorado pelo cinema em diversos gêneros: da comédia em “The Office” ao sci-fi opressivo da série “Ruptura” - ambientes com atmosfera distópica, estéril, labirínticos e cinzentos. Organizações burocráticas modernas tão autocentradas que parecem ter esquecido o seu propósito: é mais importante reproduzir o status quo do que permitir qualquer inovação que, remotamente, possa desafiar a hierarquia . “Corner Office” (2022) é uma comédia sombria sobre o novo funcionário que chega otimista uma organização, para descobrir a hipocrisia da cultura corporativa: a ilusão de que somos livres para pensar fora da caixa. Lá descobre que penas em um lugar poderá ser criativo e independente: em uma misteriosa sala atrás de uma porta que só ele consegue enxergar. O problema é que uma organização não pode tolerar uma atitude tão disruptiva. 

Para o pensador social Max Weber, a burocracia moderna era uma forma avançada de organização administrativa, com base no método racional e científico – processo civilizatório inevitável em qualquer tipo de organização, seja ela de natureza pública ou privada. Condição sine qua non indispensável para o desenvolvimento de uma nação.

O escritor Franz Kafka talvez tenha sido o primeiro escritor a perceber a ambiguidade da organização – como a burocracia se transforma num poder oculto, força anônima que se transforma em uma máquina de moer seres humanos. Como estrutura burocrática torna-se tão obsessiva e autocentrada que os cidadãos inocentes acabam se tornando um culpado pelo próprio desconhecimento de um sistema labiríntico.

Mas ainda a crítica de Kafka ainda era dentro do contexto da modernidade triunfante da virada dos séculos XIX-XX. Ainda a burocracia era legitimada pelo imaginário da racionalidade tecnocientífica. A crítica de Kafka era distópica: como a tecnociência virava tão draconicamente eficiente que se voltava contra o próprio burocrata,

 A sequência de filmes recentes sobre a frieza corporativa, da comédia à ficção científica, mostra que algo mudou na essência da burocracia das organizações: deixaram de ser máquinas tecnocientíficas para se transformarem em espécies de seitas, regidas por toda uma metafísica corporativa compostas por ideias que mais parecem slogans propagandísticos motivacionais – objetivos, missão, visão, valores. 

Se Weber acreditava que a burocracia era uma forma de dominação legitimada pela racionalidade técnica, hoje ela parece muito mais preocupada em inspirar, motivar e engajar. Muitas vezes de maneira análoga a uma seita.

Para começar, a comédia The Office, passando pela corporação transformada em um game reality show em O Método, a ironia gore de Mayhem, os caprichos de um empregador anônimo que obriga os funcionários a se matarem em The Belko Experiment ou ainda a recente série sci-fi Ruptura no qual funcionários submetem-se a uma clivagem cerebral para tornarem-se mais engajados em uma organização.

O ponto em comum em todos esses filmes está o ponto de partida kafkiano: são organizações genéricas, tão autocentradas que não fica clara a finalidade ou o propósito. Para existir apenas para se autorreproduzir como um fim em si mesmo. 



Seguindo essa linha encontramos o filme Corner Office (2022), baseado no livro “The Room” de Jonas Karlsson. O nosso herói anônimo é Orson (Jon Hamm), mais novo funcionário de uma corporação chamada presunçosamente de “The Authority”. Num enorme complexo de concreto austero de escritórios com uma paleta de cores acinzentada, ocupada por funcionários silenciosos trajando ternos marrons que representam todo o leque de espécimes dos escritórios: fofoqueiros, hostis, desconfiados, puxa-sacos, dedos-duros e um chefe vaidoso.

Todos sob uma luz florescente e divididos em espaços geométricos, numa atmosfera estéril cujas preocupações principais é despachar relatórios sobre não se sabe o que, e preocuparem-se com o piso: todos devem usar capas de sapatos em azul hospitalar para manter o piso asséptico.

Orson chega ao seu novo emprego otimista, querendo “ver a luz”. Mas tudo o que encontrará será o aspecto mais insidioso, hipócrita e absurdo da cultura corporativa: a ilusão de que somos livres para pensar fora da caixa. Porém, as regras não declaradas e subjetivas garantem que nunca sejamos capazes de soltar as rédeas de nossa imaginação em uma organização. 

Então, vamos descobrir como as coisas se desdobram para o protagonista de Corner Office e se ele é capaz de decifrar com sucesso a natureza intrínseca das pessoas ao seu redor.

O Filme

Orson é um profissional competente que conhece bem o seu trabalho. Mas é péssimo em habilidades sociais – concentrado no trabalho, ele não aprendeu a arte do “small talk”. Para ele, sem sentido e fútil. Mas todos nós sabemos que numa organização a proficiência profissional nunca é o suficiente.

Orson pode ver através das intenções das pessoas e quase perfeitamente verificar o que estava acontecendo em suas mentes. 



Ele viu que Mitchell (Bill Marchant) estava com medo de ser demitido da empresa, mas estava camuflando seu medo através de seu comportamento. Ele notou que Carol (Allison Riley) tinha um complexo de superioridade onde ela achava que sabia tudo, enquanto Shanon (Kimberley Shoniker) apenas buscava validação e era uma pessoa do mais alto nível. 

Todos eles pensavam que eram capazes de disfarçar suas verdadeiras intenções, mas havia Orson, sentado em silêncio em um canto do escritório e examinando cada gesto feito ou palavra falada por todos. Orson começa a ter problemas com as coisas mais estranhas, como, por exemplo, a jaqueta que seu colega Rakesh (Danny Pudi) usava. Ele não gostou da cor e, além disso, não gostou de como a mesa de Rakesh estava desarrumada.

Mas tudo muda quando descobre no mesmo andar uma porta, num canto, entre o banheiro e o elevador – essa porta abre para um escritório totalmente diferença da decoração monótona e estéril reinante. A decoração é um sonho modernista, com paredes decoradas com grandes painéis de madeira, pôsteres em arte abstrata, uma coleção de discos e pick-up e uma grande mesa executiva. Diferente do restante do prédio, aquela sala é quente e convidativa.

Lá ele consegue ser produtivo, criativo e inovador – isolado dos irritantes jogos de aparências dos colegas de escritório.

O problema é que ninguém mais vê aquele escritório de canto. Tudo que veem é Orson parado, olhando para o nada, virado para a parede.



Os colegas e o chefe o confrontam: aquela sala não existe! Seu comportamento disruptivo começa incomodar a todos, por acreditar ver algo que todos dizem não existir. 

Como último recurso, seu chefe o envia para uma psiquiatra. Orson promete não mais falar sobre o misterioso novo escritório, sob ameaça de ser demitido. 

Mas Orson tem um plano para continuar trabalhando deforma criativa e inovadora naquele escritório secreto.

A cultura da nova organização

Qual a natureza daquele escritório de canto? Uma fuga da matrix corporativa? Algum vórtice espaço-tempo? Ou uma mera fantasia escapista de Orson, entediado com a maneira como as pessoas se comportam em torno dele, escondendo para debaixo do tapete todos os seus desconfortos.

Corner Office é uma comédia sombria sobre como a cultura corporativa cria organizações tão autocentradas que o conhecimento profissional passa a ser o que menos importa. O mais importante, é ter os “colaboradores” engajados e motivados, mesmo que sejam medíocres e falsos. É quando a “inteligência emocional” (a capacidade ótima de adaptação) torna-se mais valorizada do que o currículo ou a experiência profissional. O conhecimento do ofício.



Orson descobrirá da pior forma possível que as modernas organizações estão muito mais preocupadas com a reprodução (da autoridade, do status quo etc.) do que com a produção – uma organização muito mais centrada no conformismo do que na irrupção, inovação ou experimentação.

Estudos sobre a ética e a cultura do novo capitalismo de Richard Sennett (“A Corrosão do Caráter” e “A Cultura do Novo Capitalismo”) descreve como as novas organizações tornam-se ambientes de “regras invisíveis” que nada têm a ver com capacitação profissional, mas com “inteligência emocional” dos funcionários (ou eufemisticamente chamado de “colaboradores”): sem relação com a práxis os sistemas tornam-se fechados em si mesmos, autopoiéticos - tipos de sistemas que são cegos em relação ao que lhe é exterior, ou seja, o mundo exterior não seria nada mais do que um produto secundário da auto-referência. 

Regras que existem não para tornar mais eficiente a realização de uma finalidade original (satisfação de clientes, vitória ou produção de bens e serviços), mas para autorreprodução do sistema como fim em si mesmo.

Orson é um profissional discreto, metódico e determinado, que chegou na The Authority com o objetivo de avançar pela qualidade do seu trabalho. Descobriu que naquela aconchegante sala secreta ele era capaz de fazer qualquer coisa. Mas também descobrirá que a The Authority não está assim tão interessada pelo talento individual. Ela está mais preocupada com o conformismo dos “colaboradores” e a reprodução da organização em si, a autoridade.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Corner Office

Diretor: Joachim Back

Roteiro:  Ted Kupper, Jonas Karlsson

Elenco:   Jon Hamm, Danny Pudi, Sara Gadon

Produção: Tilt 9 Entertainment

Distribuição: EO Media Distribution

Ano: 2022

País: EUA

   

 

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