sábado, agosto 19, 2023

Toxicomania de minorias versus toxicomania de massas na minissérie 'Império da Dor'


A pior crise de saúde pública nos EUA, entre e epidemia da AIDS e a pandemia do coronavírus. Uma epidemia de opioides iniciada com o lançamento do analgésico OxyContin, em 1995, fabricado pela Purdue Pharma, que matou 500 mil pessoas nas duas últimas décadas. Como a família Sackler descobriu a pedra filosofal da Big Pharma: o ciclo vicioso da dor e prazer com uma simples pílula. Esse é o tema da minissérie Netflix “Império da Dor” (2023) que explicita toda a hipocrisia por trás do debate em torno das drogas: o diferente tratamento dado à toxicomania de minorias e a toxicomania de massas. A primeira, criminalizada e alvo de toda a condenação moral pelas mídias. E a segunda, a criação legalizada da dependência química em massa sob aprovação das agências federais que executam uma inversão mercadológica: primeiro inventa-se a droga, depois a doença.

As drogas acompanharam até aqui toda a história humana. Em suas diversas formas (alucinatórias, analgésicas, estimulantes etc.) elas sempre fizeram parte de um sistema simbólico religioso, metafísico, cultural ou, na modernidade, como prescrição científica.

Estimulantes de trabalho regidos pelos ciclos das estações do ano; indutoras de alterações de consciência em rituais xamânicos, ocultistas ou esotéricos; ou analgésicos para aliviar as dores cotidianas prescritas pela farmácia tradicional que ainda repercutia os antigos conhecimentos alquímicos de manipulação.

Porém, tudo começa a mudar na sua forma mais dessacralizada, dessimbolizada e mercantil: a pílula. 

Os nazistas foram os primeiros a descobrir essa forma “aerodinamizada” das drogas – liberadas de quaisquer pruridos rituais, morais ou médicos: pílulas de Pervertin, composto à base de metanfetamina para criar os super soldados das blitzkriegs, sem sono, sem fome, resistentes à dor, concentração ótima e autoconfiança lá em cima. E a catastrófica junção do vício, guerra e violência. 

Enquanto isso, nos EUA, o patriarca Arthur Sackler, sentiu o vento desses novos tempos e transformou a indústria farmacêutica através de campanhas publicitárias revolucionárias voltadas diretamente para os médicos – a descoberta do marketing direto, invertendo a lógica: a necessidade não está mais no paciente, mas no mercado. Primeiro, descobre-se a droga. Depois, inventa-se a doença.

Mais tarde, seu sobrinho, Richard Sackler, descobriu a síntese, a pedra filosofal para a toxicomania de massas: no final, tudo é uma questão de fugir da dor, no seu sentido mais amplo: física, mental, existencial, moral etc. Todos buscamos o prazer, que é sempre efêmero. Então vem mais uma vez a dor. E a pílula é o caminho para mais um ciclo de prazer.

Lembra-se da campanha do Prozac nos anos 1990, “Take a Pill!”? 

Pois Richard Sackler fará isso nos anos com o OxyContin produzido pela Purdue Pharma, droga-chave para o surgimento da epidemia dos opióides nos EUA, que devastou vidas, corroeu famílias e relações pessoais. Gerando uma batalha judicial da Justiça dos EUA e escritórios de advocacia contra a gigante farmacêutica.

Esse é o tema da minissérie Netflix Império da Dor (Painkiller, 2023), criada pela dupla Micah Fitzerman-Blue e Noah Harpster, baseada em um artigo da revista New Yorker “Pain Killer: An Empire of Deceit and the Origin of America’s Opioid Epidemic”.

A minissérie é centrada em Richard Sackler (Matthew Broderick) que seguiu a cartilha de seu tio Arthur (Clarck Gregg) para empurrar o OxyContin (basicamente um comprimido de heroína com uma fórmula de liberação lenta), primeiro com subornos e manipulações semânticas em relatórios para a FDA (Food and Drug Administration) – com expressões ambíguas do tipo “acredita-se que não cause dependência”.



E depois da aprovação federal, seduzindo médicos com promotoras de vendas sexy ao estilo “Barbie Malibu”, que chegavam em cidadezinhas da América profunda guiando reluzentes porches e ferraris. 

Sob o encalço da promotora pública Eddie Flowers (Uzu Aduba), sua própria família também vítima da corrosão que as drogas podem provocar. Ela investiga o trágico impacto da OxyContin, tentando encontrar alguma prova material de crime da Purdue Pharma, que convença seus superiores a abrir uma queixa-crime.

Império da Dor suscita uma discussão clássica que envolve a hipocrisia no tratamento da questão das drogas: a toxicomania de massas versus a toxicomania de minorias. Enquanto a heroína, cocaína etc. são reprimidas como práticas nefastas de subculturas (punk, disco etc.) que afrontam a moralidade da ordem pública, os mesmos princípios ativos (opióides, metanfetamina, efedrina etc.) são processados química e mercadologicamente pela Big Pharma para criar a dependência em massa. Sob a aprovação de agências federais como FDA ou Anvisa.

A Minissérie

Para Império da Dor, todo o sistema de saúde americano tem sangue nas mãos e todos os envolvidos são cúmplices.  

Ganância e ego são as forças duplamente devastadoras, direcionando os executivos da Purdue Pharma que usaram marketing enganoso para ganhar bilhões com o OxyContin, as representantes de vendas “Barbie Malibus” que venderam um medicamento que não entendiam, os médicos que prescreveram demais para embolsar mais dos planos de saúde e as agências governamentais que carimbaram a aprovação ao invés de regulamentar sob grossas lupas.



A minissérie em seis episódios é estruturada no depoimento da procuradora pública Edie Flowers, entrevistada por um escritório de advocacia que planeja uma grande ação civil interestadual. Toda em flashback, acompanhamos uma irônica descrição do sucesso fármaco-industrial da família Sackler, do patriarca à grande descoberta do sobrinho Arthur: a pílula e seu aspecto mercadológico “amigável”: diferente das toxicomanias de minorias que envolvem seringas, traficantes e mortes, ao contrário, a pílula oferece a solução para uma dependência legal – tudo legalmente prescrito, tão rápido e prático como engolir um comprimido.

O programa cria um arco de subtramas e personagens que envolve a trajetória “self made man” de Shannon Schaeffer (West Duchovny) como promotora de vendas que galga o sucesso na Purdue Pharma e um mecânico chamado Glen Kryger (Taylor Kitsch), que junto com sua família administra uma oficina de carros. Após um acidente, o médico prescreve OxyContin para a dor, levando Glen a inevitável dependência e a ruína familiar e financeira. 

Aos poucos, os episódios vão descrevendo, como pano de fundo para essas subtramas, o caos social provocado pela epidemia dos opioides nos EUA nos anos 1990 e primeiras décadas desse século: crescimento exponencial de mortes, acidentes de carro, farmácias saqueadas e a escalada da criminalidade com o mercado negro do produto.

Império da Dor explora uma narrativa de oposições claras e bem didáticas ao espectador: de um lado, a história da representante de vendas Schaeffer como a nova garota que aprenderá da pior forma possível como ela faz parte de um sistema corrupto; de outro, os momentos O Lobo de Wall Street mostrando o luxo, festas e celebração da riqueza em festas exclusivas de Richard Sackler, seus diretores e gerentes de vendas; tudo isso contraposto à lenta decida ao inferno da dependência de Glen Kryger e o sofrimento da sua esposa e irmão.



Desde o início, quando a procuradora Eddie Flowers consegue convencer seu chefe a abrir denúncia pública contra a Purdue Pharma, a estratégia da família Sackler é a de fugir de qualquer responsabilidade jogando com essa oposição entre toxicomania de minorias e de massas: os viciados seriam uma minoria nas mãos de traficantes que desvirtuam a função do OxyContim. Na verdade, a Purdue Pharma é que seria a vítima final, junto com seus consumidores que se medicam de forma “científica”.

Mas Eddie e sua equipe de procuradores públicos busca a “smoking gun”: provas materiais de que os médicos são aliciados pelas representantes a prescreverem quantidades cada vez maiores de pílulas, gerando o ciclo vicioso que fez a Purdue Pharma uma gigante do setor.



Como sabemos em notícias recentes, em 2021 encerrou-se o litígio entre a Justiça dos EUA e a gigante farmacêutica – um acordo em que a família Sackler pagará 4,5 bilhões de dólares em troca da imunidade em eventuais ações judiciais de pacientes prejudicados. Claro que os fundos desse montante veem do patrimônio da Purdue Pharma, cuja falência foi decretada em 2019.

Enquanto isso, os Sacklers continuam gozando dos gigantescos lucros que embolsaram com a morte estimada em 500.000 pessoas nas últimas duas décadas, desde que a OxyContin foi lançada em 1995. 

A pior crise de saúde pública nos EUA, entre e epidemia da AIDS e a pandemia do coronavírus. 

No final, quem foi condenada foi a pessoa jurídica. Enquanto a pessoas física, Richard Sacklers e membros da diretoria da própria família, saíram ilesos e com os bolsos cheios.

A virtude da minissérie Império da Dor é mostrar de forma bem didática toda a hipocrisia da discussão das drogas e seus efeitos. Uma realidade tão antiga quanto a própria humanidade.

Como sempre, que é condenado é sempre exclusivamente a toxicomania de minorias. Enquanto a de massas continua matando ainda mais. 


  

 

Ficha Técnica

 

Título: Império da Dor (minissérie)

Diretor: Micah Fitzerman-Blue e Noah Hapster

Roteiro:  Micah Fitzerman-Blue e Noah Hapster

Elenco:   Uzu Aduba, Matthew Broderick, Taylor Kitsch, West Duchovny

Produção: Blue Harp, Film 44

Distribuição: Netflix

Ano: 2023

País: EUA

   

 

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