Desde que os nazistas e fascistas chegaram ao poder na Europa com o apoio do rádio e cinema, a esquerda continua sem entender até hoje o que aconteceu. Ainda acha que as massas são enganadas pelas ideologias, manipulações e mentiras. E que a sua missão (inglória) é denunciar fake news, desmascarar farsas, na esperança de que um dia as massas caiam em si e descubram a verdade. A questão é que a ideologia não se define pela “falsa consciência”, mas pela força do imaginário. E o imaginário não é derrotado pela “razão”, “verdade” ou “Ciência”. Somente um outro imaginário pode derrotar o imaginário dominante. Depois de uma história vendo seus oponentes usando a vanguarda midiática e tecnológica para impor seu imaginário, a esquerda ainda insiste na “crítica ideológica”. Sua única chance será criar um outro imaginário, muito diferente do atual, auto descritivo: o imaginário da “luta e resistência”.
Certa vez em 1933, no Palácio dos Esportes em Berlim, um pouco antes da vitória de Hitler, dois propagandistas, um comunista e outro nazista, discursavam. O comunista começou a falar com um discurso recheado de citações das partes mais complicadas de O Capital sobre “contradição principal”, “taxa de lucro média” e cada vez mais cifras. O público nada entendia e assistia entediado.
Então, apareceu o nazista. E foi fulminante: “quando vocês trabalham no escritório o que os Srs. e Sras. fazem o dia inteiro? Escrevem números, somam, subtraem! E o que os Srs. ouviram do Sr. orador que me antecedeu? Números e mais números. De tal forma que a frase do nosso Führer encontrou uma confirmação inesperada: comunismo e capitalismo são os dois lados de uma mesma moeda!”.
Essa pode ser considerada a “cena primitiva” do trauma histórico que a esquerda até hoje não conseguiu entender. Lá nos anos trinta do século passado, ironicamente os nazistas utilizavam todas as ideias das vanguardas dos teóricos russos do cinema tais como Eisenstein, Vertov ou Kulechov. Muito além do rádio, a propaganda política através do cinema foi a arma eficaz para fazer uma incisão decisiva no imaginário coletivo do povo alemão.
Como foi possível o povo alemão ter agido contra seus próprios interesses? As vítimas apoiarem os próprios algozes? O proletário apoiar as próprias metas guiadas pelos interesses da burguesia? A resposta que a esquerda tem até hoje é essa: foi a ideologia nazi-fascista, sedutora e persuasiva que tinha ao seu serviço a máquina de propaganda do Terceiro Reich.
Essa resposta traz em si uma certa concepção da ideologia, mais precisamente como falsa consciência – ideologia seria um discurso (ou “narrativa”, como se fala atualmente) que mente, manipula, oculta a realidade através da falsidade. Isso implicaria que a missão de todo esforço político de oposição é denunciar a alertar para as massas como estão sendo alienadas, enganadas por um discurso mitificador que as hipnotiza diariamente através dos meios de propaganda.
A esquerda estaria do lado da racionalidade, da verdade, mobilizando todos os recursos críticos (sociológicos, linguísticos, semióticos, jornalísticos etc.) para revelar às massas a sua condição existencial de explorada e enganada.
Porém, a missão não é nada fácil: os meios de comunicação e a indústria publicitária e de propaganda estão em mãos muito poderosas, as mãos daquela elite que perpetra a falsa consciência. Enquanto no campo político e econômico historicamente as esquerdas colecionam apenas derrotas: golpes, contrarrevoluções, guerras, traições etc.
Luta e Resistência
Por isso, o imaginário, ou melhor, a autodescrição que as esquerdas fizeram de si mesmas é a da luta e resistência. Um auto-imaginário que atravessa discursos, slogans políticos e a própria produção cultural dessa “esfera pública proletária” – música popular, teatro, literatura e assim por diante.
Na atualidade, as denúncias sobre as fake news e a forma como elas são exploradas pela extrema-direita nas redes sociais acabam reforçando ainda mais esse imaginário da esquerda baseada nessa concepção de ideologia enquanto falsa consciência: fake news continuariam a exercer a velha função das ideologias, isto é, propagar mentiras para continuar enganando as massas.
Para o jornalismo corporativo, fake news somente seriam combatidas com informações verdadeiras e profissionais. Enquanto para a mídia progressista, resta perpetuar o papel da “resistência e luta”: denunciar, denunciar e denunciar! Não é por menos que nesse momento há um match entre esquerdas e mídia corporativa: ambos atacam as fake news e defendem a judicialização da questão.
A questão é que desde a “cena primitiva” do Palácio dos Esportes em 1933, a esquerda é refém da velha concepção da ideologia como falsa consciência, tão velha que é anterior as ideias de Karl Marx que colocou a questão da ideologia num patamar superior – a discussão filosófica da alienação e econômica do fetichismo da mercadoria. E que a prática política da esquerda não entendeu nada.
Wilhelm Reich e o seu livro Psicologia de Massas do Fascismo deu início a uma linha antidogmática dentro do marxismo que tentou compreender como, apesar das evidências reais (a primeira delas, a tragédia humana da Segunda Guerra Mundial) as massas continuam mantendo as relações de dominação que se voltam contra elas mesmas.
Imaginário e Aparelhos Ideológicos de Estado
Se Reich procurou politizar a psicanálise freudiana, mais tarde o pensador francês Louis Althusser tentou fazer o mesmo, dessa vez com Lacan através do seu conceito de Aparelhos Ideológicos de Estado e a concepção da ideologia como imaginário que poderia ser sintetizado em três pontos:
(a) Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE): o aparelho escolar, religioso, midiático, jurídico, familiar, político e cultural;
(b) Antes de uma “falsa consciência”, a ideologia é uma representação da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência – é o imaginário que domina as relações humanas com a realidade, como nos comprova não apenas a psicanálise, mas também a línguística, a semiótica e a semiologia. A discussão do imaginário está além da dualidade realidade/ficção, verdade/mentira;
(c) A ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeitos – a ideologia constitui os indivíduos como sujeitos concretos e seu efeito elementar: a de reconhecer “evidências”, diante das quais, inevitável e naturalmente, exclamamos: “é evidente! É exatamente isso! É verdade!
Indo diretamente ao ponto, o que os AIE impõem não são meramente falsas consciências, mentiras ou fake news. Os AIE irradiam imaginários. Isso significa que os acontecimentos das mentiras, manipulações ou fake news são apenas a ponta do iceberg de um imaginário mais profundo – mais precisamente, são esses acontecimentos que interpelam os indivíduos como sujeitos (aquele momento quando o indivíduo reage: “É evidente! É exatamente isso!”).
Vamos dar dois exemplos dessa construção do imaginário nas condições reais de existência.
(1) “Mulher é flagrada comendo marmita na garupa de moto e vídeo viraliza”
A cena foi registrada em Recife, Pernambuco, no dia 06/08. Imagens postadas no perfil @recifeordinario viralizaram ao mostrar uma mulher comendo uma marmita na garupa de uma moto em movimento.
As reações foram bem significativas: “Recife é para os fortes”; “Ela só tinha um Uber Moto, uma marmita e um sonho”; “Parabéns para essa guerreira!”.
O que deveria ser um flagrante da precarização da vida cotidiana (para começar, a precarização do próprio trabalho dentro da intensificação do paradigma neoliberal), virou elogio da luta de uma pessoa que tem um sonho e vai atrás com coragem, da positividade moral em “ralar” na vida e “fazer os corre” para sobreviver.
Diante das condições materiais difíceis, construiu-se o imaginário da “vida dura” como algo moralmente bom porque educa pela dor, pelas dificuldades. Essa é a gênese da concepção fascista da vida, cuja fórmula Adorno sintetizou da seguinte maneira: “aquele que é duro contra si mesmo adquire o direito de sê-lo contra os demais e se vinga da dor que não teve a liberdade de demonstrar, que precisou reprimir” (“Educação após Auschwitz” In: Theodor W. Adorno – coleção grandes cientistas sociais, São Paulo: Ática, p.39).
Mesmo que denunciemos com argumentos racionais, sociológicos, humanistas etc., essa concepção da “dureza” da vida é evidente por si mesma. Principalmente quando um outro AIE, o religioso (neopentecostal) constrói semioticamente a fé como escudo e arma em adesivos espalhados em vidros de carros e para-choques de caminhões: fé e religião como elementos motivacionais para resistir e suplantar os “perrengues” do dia a dia.
(2) Um conto na bomba semiótica de secessão brasileira
O jornal “Folha de São Paulo”, em 2014, após a vitória de Dilma Rousseff na eleição presidencial, foi o primeiro veículo a detonar a bomba semiótica de secessãoatravés de um infográfico-animação chamado “Folhacóptero”: “O folhacóptero sobrevoa com você alguns mapas que ajudam a explicar a divisão do país no primeiro turno das eleições. As desigualdades econômicas criaram um muro invisível separando o Brasil em dois. Ele correria por 8 mil kms (...)”. A lição era: os mais pobres e menos educados votaram no PT; enquanto o Sul-Sudeste mais rico e educado não.
Enquanto publicações estrangeiras como a “The Economist” usaram infográficos mais neutros e elegantes para explicar as desigualdades históricas do Brasil, nossa grande mídia usa a imagem do muro, simbolicamente carregada de ódio e separatismo.
Diante da controversa declaração do governador de Minas Gerais, Romeu Zema, defendendo uma frente Sul-Sudeste contra o Norte-Nordeste. Segundo ele, “a vaquinha que produz pouco”, associando à notícia, a Folha publica na sessão “Praça do Leitor” um conto chamado “Chore em casa, sorria na rua”, cuja moral é: reclamar na rua é sinal de fraqueza, portanto chore na cama que é lugar quente...
O conto fala de dois irmãos nordestinos que vem para o Sudeste em busca de oportunidades. Trabalham como pedreiros. Um estudou, fez telecursos primeiro e segundo Grau, faculdade, até chegar à presidência do grupo. Enquanto o irmão, sem estudar, continuou como pedreiro, casado e com filhos para cuidar com seus parcos recursos.
“Em casa, pelo menos poderemos dizer que choramos por não termos a coragem de arriscar um pouco mais e ousar aprender. Assim é na vida. Aprendamos com nossas próprias fraquezas!”, encerra o leitor.
Temos a continuidade do imaginário proto fascista da dureza da vida, dessa vez justificando a divisão dos brasileiros em duas categorias: aqueles que choram e aqueles que aprendem com a dureza.
Esse imaginário da “vida dura” relaciona-se com a realidade material como categoria de pensamento. Categoria cognitiva em torno da qual gravita uma constelação de conceitos como rudeza, relações assimétricas entre fortes e fracos, força etc.
Notícias sobre, por exemplo, violência policial em morros e periferias tornam-se evidentes por si mesmas: passam a ser encaradas como algo lógico, numa realidade marcada pela dureza.
Diante da irradiação e reforço cotidiano desse imaginário através dos AIE, o imaginário da esquerda (resistência e luta) passa a não ter o menor sentido. Apesar de todo significado humanista e libertário no qual se fundamenta esse imaginário, tornou-se extemporâneo. Sem nenhuma força para se contrapor a um imaginário que é reforçado pelas próprias evidências: as notícias da grande mídia.
É impossível se contrapor ao imaginário com denúncias, com a racionalidade ou a “verdade”. Se a ideologia não é falsa consciência, mas uma ontológica relação imaginária com a realidade material, somente a criação de um novo imaginário pode se opor ao imaginário dominante.
Argumentos racionais, denúncias ou “desmascaramentos” não viralizam. A força de qualquer viralização está no imaginário.
Este humilde blogueiro não tem uma proposta pronta. Ainda esse diagnóstico é incipiente. Mas tudo deve começar pela substituição do imaginário da “luta e resistência” com a qual sempre a esquerda se identificou.
Quem sabe, a construção do imaginário da “vida boa”, contrapondo-se ao imaginário proto fascista atual?