sábado, agosto 05, 2023

Em 'LOLA' o lado prometeico e sombrio de cada progresso tecnocientífico


Desde o cultuado “Primer” (2004) não se viu um filme tão engenhoso sobre viagem no tempo quanto “LOLA” (2022). Não exatamente uma viagem no tempo, mas sobre duas irmãs que na década de 1930 inventaram um dispositivo que captava ondas de rádio vindas do futuro. Em 2021 foi encontrada a filmagem sobre a invenção e a história das irmãs que no início apenas queriam estudar o Tempo – apaixonaram-se por David Bowie e Stanley Kubrick antes mesmo deles nascerem. Mas da pior maneira possível descobriram que a tecnociência é prometeica: tal como o titã que foi acorrentado por roubar o fogo dos deuses, elas foram cegadas pelo brilho da própria invenção. Viram-se prisioneiras dos dilemas éticos e morais em conhecerem o futuro no meio da Segunda Guerra Mundial e o dispositivo do tempo virar arma contra os nazistas. No entanto, como em qualquer grande poder, há um potencial lado sombrio. 

O mito grego de Prometeu talvez seja a narrativa mais premonitória sobre o destino da ciência e tecnologia na história. Personagem importante na mitologia grega, ele é visto como a divindade do fogo e mestre artesão. Segundo o mito, ele era um titã que roubou o fogo dos deuses para entregar aos homens. Por isso foi severamente castigado por Zeus: foi acorrentado no alto de uma montanha para que seu fígado fosse diariamente devorado por uma enorme águia.

Com o fogo, Prometeu concedeu vantagem à humanidade em relação aos outros animais. E a humanidade criou a Ciência e a Tecnologia para dominar os céus e a terra. Porém o brilho do fogo parece ter cegado o próprio homem: senhor dos instrumentos e ferramentas, não percebeu que, enquanto Prometeu ficou acorrentado no topo do Monte Cáucaso, ele também ficou acorrentado à tecnociência – não percebe que quanto mais controla e transforma o objeto, mais impacta e transforma o próprio controlador em retorno. Ficando prisioneiro em um loop: quanto mais cada revolução tecnológica gera consequências, mais o homem tenta reverter os efeitos com mais tecnociência. Para repetir o loop.

A descoberta da incerteza quântica de Werner Heisenberg foi a descoberta científica que mais explicitou esse paradoxo: quando se tenta estudar uma partícula atômica, a medição da posição necessariamente perturba o momentum de uma partícula. Em outras palavras, Heisenberg queria dizer que você não pode observar uma coisa sem influenciá-la. 

A objetividade científica é um mito: o observador altera aquilo que quer observar, assim como a alteração no observado volta as consequências para o observador.

Filmes sobre viagens no tempo são aqueles que melhor essa incerteza quântica na relação entre observador e observado: mexer com o tempo não é simplesmente observar passado ou futuro. Mas com isso transformar o próprio presente, com imprevisíveis consequências.

Desde o cult Primer (2004), sobre essas lacunas, paradoxos e questões lógicas sobre viagem no tempo, não se viu um filme tão engenhoso sobre o tema quanto LOLA (2022), estreia do diretor irlandês Andrew Legge. Uma engenhosidade que já começa com a concepção estética: uma colagem em preto e branco que combina perfeitamente cinejornais autênticos da Segunda Guerra Mundial com vídeos caseiros fictícios para criar uma história de ficção científica.

A premissa é tentadora o suficiente para atiçar a nossa imaginação durante a maior parte do rápido tempo de 79 minutos do filme: em 2021, uma misteriosa lata de celuloide antigo e meticulosamente editado foi descoberto no porão de uma casa de campo de Sussex que já pertenceu a Martha e Thomasina Hanbury (interpretada por Stefani Martini e Emma Appleton, respectivamente). 

A lata continha um documentário pessoal feito pelas duas irmãs, bonitas, brilhantes, modernas e feministas, que inventaram uma máquina, na década 1930, que interceptava ondas de rádio vindas do futuro, e apelidaram o dispositivo de “LOLA”. E depois usaram sua imponente engenhoca, semelhante a um osciloscópio, para assistir a vislumbres do mundo que estava por vir – o nosso passado e presente recentes.

Com o poder de LOLA, Martha e Thomasina se apaixonaram pela música de David Bowie antes de ele nascer. Ficaram obcecadas pelos filmes de Stanley Kubrick antes de serem filmados e aprenderam sobre o empoderamento feminino em um momento em que muitas mulheres jovens de sua idade ainda estavam presas na era vitoriana.



Mas logo vem a tentação de abandonarem a condição de meras observadoras do Tempo para transformar LOLA em uma ferramenta tecnocientífica de poder: decidem anonimamente ajudar o Reino Unido a ficar um passo à frente dos nazistas e acabar com a Guerra, muito antes dos EUA deixarem a condição de neutralidade e o Dia D acontecer, dentro da História como a conhecemos.

LOLA não é exatamente um filme sobre viagem no tempo, mas sobre o que aconteceria se tivéssemos uma visão sobre o futuro através de um dispositivo. Com esse “fogo dos deuses” nas mãos iríamos querer transformar o presente a partir de informações privilegiadas vindas do futuro.

Um pouco dessas consequências vimos no filme Efeito Borboleta (2004), mas no sentido inverso: querer transformar o passado trazendo consequências exponenciais no presente.

 Assim como o protagonista desse filme de 2004, em LOLA as irmãs sentirão na prática o que significa abrir não a caixa de Pandora, mas a caixa do gato de Schrödinger: o decaimento quântico, ou seja, o quanto o olhar do observador altera o observado. Trazendo consequências exponenciais.


O Filme


As tecnologias inovadoras têm o potencial de trazer enormes avanços em vários campos, da medicina à comunicação e do transporte à energia. De fato, as inovações tecnológicas desempenharam um papel fundamental ao longo da história para impulsionar as sociedades. Desde a descoberta do fogo até a invenção da roda, criações engenhosas impulsionaram civilizações de uma era para a outra, moldando o curso do progresso humano. No entanto, como em qualquer grande poder, há um potencial lado sombrio. 



Perdemos de vista as implicações éticas. E as mesmas invenções que uma vez prometeram mudar nossas vidas para melhor podem tomar um caminho inesperado e sinistro, capaz de comprometer o próprio tecido da nossa existência. Da mesma forma, o conto de Thomasina e Martha Hanbury, como retratado no filme LOLA, apresenta um reflexo assombroso de como a mesma criação que as uniu acabou se tornando uma força divisiva, destruindo suas vidas e desmantelando tudo o que eles haviam construído meticulosamente.

Essa é a lição moral que LOLA quer passar para o espectador.

Thomasina e Martha revelam sua invenção, uma máquina de transmissão que possui uma incrível capacidade de olhar para o futuro, semelhante a uma bola de cristal tecnológica. Inspiradas pelo nome de sua mãe, as irmãs nomearam sua criação de LOLA como uma homenagem a ela. 

Através de LOLA, Thomasina e Martha vislumbram futuros extraordinários, testemunhando os próximos avanços na música, cultura e nas duras realidades da guerra. Essa janela para o futuro tornou-se uma obsessão para as irmãs, pois tinha o potencial de desvendar os mistérios do que estava por vir e talvez alterar o curso de suas vidas. Tendo experimentado a perda de seu pai, um inventor idealista que acreditava no poder transformador da tecnologia, e posteriormente perdendo sua mãe também, as irmãs se viram inesperadamente órfãs e confiadas apenas umas das outras.

As irmãs buscaram consolo e significado através de sua invenção, e ansiavam por uma maneira de quebrar o enigma do tempo, esperando que, se pudessem desvendar seus segredos, pudessem ter a chance de reescrever sua história pessoal. 

Nesse momento explode a Segunda Guerra Mundial. Eles entenderam que o LOLA não era apenas uma ferramenta pessoal para seu próprio benefício, mas um instrumento poderoso que tinha o potencial de proteger e servir a um propósito significativamente maior - para o mundo e particularmente para a Inglaterra durante a guerra. Então, Thomasina assumiu a responsabilidade de compartilhar os valiosos insights obtidos de LOLA com o exército britânico.



Começam a comunicar discretamente mensagens secretas e inteligência aos militares, permitindo que eles preparassem e protegessem a população dos bombardeios alemães. As contribuições de Thomasina se mostraram inestimáveis, já que suas informações ajudaram o exército a traçar estratégias e tomar medidas preventivas, salvando inúmeras vidas.

Logo estão fazendo parte da Inteligência Militar, através do dispositivo LOLA, que coloca o Reino Unido sempre um passo a frente dos nazistas. 

Porém, algo estranho começa acontecer: o futuro que conheciam parece que desapareceu: não há mais David Bowie e nem Stanley Kubrick. Mas outros nomes históricos, parecendo que a História está sendo reescrita, na medida em que estão interferindo nos destinos da guerra.

Esse é o momento em que a caixa do gato de Schrödinger está sendo aberta!


Dilemas éticos e morais da tecnociência – Alerta de Spoilers à frente


O leitor deve lembrar do dilema moral do matemático Alan Turing com a quebra do código Enigma dos nazistas, no filme O Jogo da Imitação (2014): a Inteligência britânica não poderia dar a impressão aos nazistas de que tinham conseguido decodificar as mensagens nazistas. Se não, o inimigo acabaria criando outro código. E tudo voltaria à estaca zero.

Por isso, tinham que permitir o sucesso de alguns ataques alemães, sacrificando centenas de soldados. Mesmo sabendo quando e como ocorreriam as ofensivas.



A fé e idealismo das irmãs com a máquina LOLA é tão grande que acabam ignorando tais dilemas. A máquina é tão eficiente que os nazistas descobrem o ardil e passam a criar mensagens falsas do futuro. Simulam um ataque massivo no Norte da Inglaterra. Para invadirem com força total o Sul totalmente desguarnecido.

Não demora para o futuro se tornar uma distopia ao melhor estilo do escritor Philip K. Dick em “O Homem do Castelo Alto”: os nazistas ganham a guerra, prendem Churchill e transformam a política e cultura do Reino Unido à imagem do Terceiro Reich. Não haverá mais David Bowie e nem Stanley Kubrick.

Da pior forma possível Thomasina e Martha descobrem as fragilidades éticas e morais do tecido temporal. Elas herdaram do seu pai o otimismo tecnocientífico que foi próprio da Modernidade – um novo mundo em que a Ciência e o conhecimento trariam o progresso para a humanidade.

  Mas, como apontava o pensador e urbanista francês Paul Virilio, cada invenção cria seu próprio acidente:

O progresso e a catástrofe são anverso e reverso da mesma moeda (...) o trem inventou o descarrilamento, o avião inventou o acidente aéreo (...) não há nisso pessimismo ou desespero, é um fenômeno racional, mascarado pela propaganda do progresso” (Paul Virilio na abertura do documentário “Paul Virilio: Pensar a Velocidade” - 2009 - clique aqui).

Vislumbrar o futuro seria a velocidade absoluta: passado, presente e futuro juntos num único vislumbre. Todo progresso tecnocientífico traz uma ambivalência, sempre mascarada pelo marketing do progresso.

Que oculta o fato de que a humanidade reviveu em toda a sua história o mito de Prometeu acorrentado.


 

Ficha Técnica

 

Título: LOLA

Diretor: Andrew Legge

Roteiro: Andrew Legge e Angeli Macfarlane

Elenco:  Stefani Martini, Emma Ampleton, Rory Fleck Byrne

Produção: Cowtown Pictures

Distribuição: Bankside Films

Ano: 2022

País: EUA

   

 

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