Família e convidados reunidos num jantar pode ser um momento de alegria e festa. Mas não no cinema: é o momento em que a polidez e o verniz da educação se desfazem para revelar toda a hipocrisia e mentiras por trás das aparências. E tudo piora exponencialmente se foi permitida a entrada do Mal: ele irá explorar todas essas fraquezas como uma espécie de anjo da vingança do mal-estar contra a civilização. “The Feast” (2021) acompanha um jantar chique em uma fazenda no interior rural do País de Gales. Propriedade de família rica de um parlamentar que enriqueceu com relações promíscuas com empresas de prospecção de óleo e gás que profanam terras sagradas da mitologia galesa. E a Natureza, destituída dos seus mitos e magia, prepara uma vingança.
Quando cineastas colocam seus protagonistas em torno de uma mesa de jantar (com suas variáveis como festas de aniversário, casamento, negócios etc.), podemos esperar situações de desconforto, ressentimentos e descontentamentos que forçam as sutilezas dos protocolos sociais ou familiares ao limite, até a explosão. Daí, podemos esperar qualquer coisa: explosão de fúria, terror ou sangue; ou dramas familiares onde as máscaras caem e toda a hipocrisia e moralismos são revelados.
E o resultado é sempre o mesmo: a violenta desconstrução das instituições, sejam elas familiares, culturais, políticas ou até mesmo das leis da física. Advinha Quem Vem para Jantar (1967, Stanley Kramer), O Discreto Charme da Burguesia (1972, Buñuel), Cenas e Um Casamento (1978, Robert Altman), Coherence (2013, James Ward), O Jantar (2017, Oren Moverman), entre outros de uma imensa lista dos mais variados gêneros, do drama ao sci-fi.
Mas o que predomina mesmo são os dramas familiares disfuncionais – todos eles apontam para aquele momento crucial durante uma reunião em que a polidez cede lugar à honestidade e a conversa fiada é deixada de lado para tudo ser desconstruído sempre da pior maneira possível. E o inferno começa. Num sentido freudiano, podemos dizer que sempre aflora o mal-estar da civilização, abafado pela tampa dos papéis sociais e instituições que nos obrigam a distanciar de nós mesmos.
O terror The Feast, dirigido por Lee Haven Jones e escrito por Roger Williams é o último exemplo de um subgênero recente do terror como foco na questão ambiental como In The Earth (2021), Gaia (2021), Lamb(2021) – a Natureza violenta vinga-se do homem e da civilização. Em The Feast, o mal-estar que explode em um jantar é o tema da vingança da Natureza, mas que arrasta também para o centro do inferno todas as hipocrisias de uma família abastada.
Com um primoroso trabalho de fotografia e design de som, desde a primeira cena percebemos o foco na malevolência das máquinas e das tecnologias: o barulho de uma plataforma de petróleo extraindo óleo viscoso do subsolo de uma zona rural, o brilho metálico de uma espingarda de cano duplo colocado na grama, o baque surdo de uma cabeça de machado quando cai no chão. Signos de progresso da civilização, mas que assumem um tom mais sinistro, como se questionasse: qual o custo do domínio do mundo ao nosso redor?
The Feast é ainda falado em galês, ressaltando o tom rústico e tradicional do interior do País de Gales, dilapidado pelo desenvolvimento econômico corrupto promovido por empresas de extração de recursos minerais e energéticos que trouxeram opulência a uma família de elite política que promove um jantar na sua fazenda.
Tudo acontece inteiramente em um único dia numa mansão remota nas montanhas galesas, acessível apenas por uma estrada de terra. A propriedade fica longe de seus vizinhos e é habitada por uma família de classe alta cujos membros quase não conseguem se suportar – uma verdadeira cascata de violência passiva que mostra para o espectador que basta apenas acender uma fagulha para tudo ir pelos ares.
E essa fagulha aparece, na figura de uma jovem que na última hora substitui a banqueteira que estava organizando o jantar para familiares e convidados.
The Feast leva ao extremo da literalidade a exortação “coma os ricos”, a um ponto que nem Luis Buñuel imaginou em seu filme O Anjo Exterminador (1966), outro filme sobre como um jantar pode se transformar num inferno. Obviamente, na medida em que a narrativa avança, percebemos que a causa de todo terror e da desconstrução daquela família é política – as relações promíscuas entre Estado, parlamento e a desregulamentação da exploração predatória da Natureza.
O Filme
The Feast acompanha a mãe e esposa chamada Glenda (Nia Roberts) enquanto organiza um pequeno, mas chique, jantar com a ajuda de uma assistente especial fornecida por um pub local, Cadi (Annes Elwy), que substitui na última hora outra assistente anteriormente designada.
A família é uma estufa de conflitos, envolvendo um filho viciado que recentemente saiu de um rehab, Guto (Steffan Cennydd), e seu outro filho viciado na própria imagem corporal, o narcisista e egocêntrico Gweirydd (Sion Alun Davies). Definitivamente, a riqueza não os tornou mais saudáveis ou mais amorosos uns com os outros.
É a noite do jantar, hora de mostrar as pinturas abstratas para os convidados numa espaçosa casa envidraçada em estilo frio modernista, e ostentar a carne de coelho, produto do marido caçador Gwyn (Julian Lewis Jones), um parlamentar corrupto com negócios a serem acertados no evento.
Gwyn fez fortunas ajudando a permitir políticas de desregulamentação de negócios de prospecção de óleo e gás no interior do País de Gales. Ele e sua esposa tentam convencer uma família de fazendeiros convidados a arrendar parte da sua propriedade para uma empresa desse setor. A destruição ambiental é evidente, porém a opulência da casa de Gwyn parece funcionar como uma vitrina sobre como a vida de todos na região pode mudar para melhor.
Desde o início, The Feast mostra suas intenções: desde o primeiro minuto acompanhamos a riqueza vazia da família, que se contrapõe à silenciosa e servil Cadi (Annes Elwyn) que surge como uma espécie de anjo exterminador: quando está fora da vista de todos, percebemos que está maquinando algum tipo de vingança – sussurra enigmaticamente para a arte na parede, espalha sujeira nos lençóis da cama e experimenta os brincos de Glenda com uma risadinha demente; ela parece só ter empatia mesmo pelos coelhos que Gwyn matou para o prato principal.
Tropos recorrente no gênero terror: assim que é permitido o ingresso do Mal no seio de uma família, ele irá explorar todas as suas fraquezas que as aparências tentam manter escondidas. Cadi começa pelos filhos: Cadi oferece a Guto (em crise de abstinência) cogumelos que colheu na propriedade; e ao egocêntrico Gweirydd, um flerte para atraí-lo a uma armadilha.
A narrativa vai num crescendo até a explosão de sangue, violência e canibalismo finais. Tudo pode até parecer previsível: afinal, é assim que explodem mentiras e hipocrisias num jantar embalado em aparências sofisticadas que a civilizações pode oferecer.
Desencantamento do mundo – alerta de spoilers à frente
Porém, o tema mais profundo é a crítica social e política: as políticas neoliberais que exigem a desregulamentação de amplos setores da exploração econômica, em particular na área ambiental, é o ápice daquilo que o sociólogo Max Weber descreveu sobre um dos pressupostos para o progresso do Capitalismo: o desencantamento do mundo - um longo processo histórico ocorrido na civilização ocidental no qual o mundo deixa de ser concebido como habitado por forças ocultas que podem ser manipuladas através da magia.
Destituída do seu estofo mítico e mágico, a natureza se oferece como objeto livre para a exploração econômica como mercadoria, com a ajuda da racionalidade tecnocientífica.
Terras sagradas da mitologia galesa estão sendo profanadas pela exploração predatória de mineração e prospecção de óleo e gás. E fazendeiros em dificuldades financeiras não têm outra saída senão arrendar ou mesmo vender suas propriedades.
Mas, parafraseando a famosa frase do filme de violência trash Machete (2010), o problema é que mexeram com o galês errado. Ou melhor, com a bruxa errada, guardiã de um local sagrado e conhecido por todos da região.
É sintomático que filmes com essa temática sejam recorrentes nesses tempos de pandemia Covid-19. O pânico global provocado pela crise sanitária faz ressurgir os temores em torno da chamada Hipótese de Gaia – o planeta como um gigantesco ser vivo autorregulado. A Natureza não preciso de nós para ser salva: através de uma guerra viral, ela pode estar tramando a própria erradicação humanidade dos seus domínios.
Ficha Técnica |
Título: The Feast |
Diretor: Lee Haven Jones |
Roteiro: Roger Williams |
Elenco: Annes Elwy, Nia Roberts, Steffan Cennydd, Sion Alun Davies, Julian Lewis Jones |
Produção: British Films Institute, Ffilm Cymru Wales |
Distribuição: IFC Midnight |
Ano: 2021 |
País: Reino Unido |