terça-feira, dezembro 14, 2021

'Histórias que Nosso Cinema (não) Contava' e 'Os Motéis e o Poder': militares, sexo, poder ontem e hoje


Dois eventos sincronicamente ligados marcaram a ditadura militar brasileira: a criação da Embratur e o seu projeto de investimentos em motéis e a Embrafilme impulsionando os filmes da pornochanchada. Essa aparente contradição entre o discurso moralizante da defesa dos valores da família e de Deus e o estímulo ao erotismo e pornografia na verdade revela o “sadismo de potência” clássico dos governos totalitários. O documentário “Histórias Que o Nosso Cinema (Não) Contava” (2017) e o lançamento do livro “Motéis e o Poder”, de Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo revelam essa peculiar relação entre sexo, poder e sociedade. Mas também nos fazem pensar numa comparação com a atualidade: diferente do golpe militar “old school” de 1964, hoje vivemos o golpe militar híbrido. Qual seria a atual relação entre sexo e poder? Acompanhando o psicanalista Erich Fromm, poderíamos responder: o “sadismo necrófilo de destruição”, forma de sadismo “frio” no qual a destruição se sobrepõe ao prazer da excitação pelo controle do outro. 

Todo período histórico é marcado pelo seu zeitgeist, o “espírito do tempo” – um conjunto de eventos que, à primeira vista, podem parecer desconexos ou aleatórios. Mas, a poteriori, começamos a perceber estranhas sincronias que tecem uma sensibilidade que caracteriza o espírito da época.

Uma dessas estranhas sincronias podemos encontrar na ditadura militar brasileira (1964-1985), em particular na década de 1970: o surgimento dos motéis da paisagem urbana brasileira e a hegemonia nas telas de cinema do gênero fílmico da chamada “pornochanchada”. E, de cada lado, duas autarquias emblemáticas do Estado de exceção: a Empresa Brasileira de Turismo (Embratur) e a Empresa Brasileira de Filme S.A. (Embrafilme).

De um lado, o projeto de aumentar a estrutura turística e hoteleira para fazer do setor uma indústria rentável. E do outro, uma estratégia política mais explícita: censurar e controlar os conteúdos das produções cinematográficas por meio da seletividade dos financiamentos públicos pata o setor – os militares sabiam que na área do cinema e cultura estava um dos principais focos de crítica e resistência à ditadura militar.

Apesar dos propósitos diferentes que motivaram a expansão dos motéis e do gênero pornochanchada, acabaram se transformando em eventos que involuntariamente se conectaram, revelando-se um sintoma das relações entre o poder, sexo e sociedade.



É o que mostra uma análise comparativa entre o documentário da cineasta Fernanda Pessoa, Histórias Que Nosso Cinema (não) Contava (2018, disponível na Netflix) e o lançamento do livro de Murilo Fiuza de Melo e da jornalista Ciça Guedes “Motéis e o Poder” - GUEDES, Ciça e MELO, Murilo Fiuza de, “Os Motéis e o Poder”, ISBN: 9786500237726, 2021.

Uma comparação oportuna, principalmente no momento político em que vivemos no Brasil: o retorno dos militares ao poder, dessa vez através de um golpe híbrido sob a aparência do funcionamento das instituições democráticas. Diferente do golpe militar old school de 1964, sob a imposição da força militar e policial sob o regime de censura, prisões e torturas de opositores. Dois momentos diferentes que criaram relações também diferente na equação Poder, sexo e sociedade.




O documentário

Fernanda Pessoa propõe fazer um olhar diferente sobre a pornochanchada, gênero que acompanhou toda a ditadura militar e sempre foi visto como um cinema alienante, estimulado pelo Estado para desviar a atenção da opinião público para a realidade política de fechamento das instituições democráticas. Sem falar nas críticas dos cinéfilos contra produtos culturais vulgares e que depreciavam a arte nacional. 

Ao contrário, o documentário vai de encontro à tese do historiador francês Marc Ferro de que todo filme é um documento primário de uma determinada época: “o imaginário é tanto história quanto História, mas o cinema, especialmente o cinema de ficção, abre um excelente caminho em direção aos campos da história psicossocial nunca atingidos pela análise dos documentos" (FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 1992, p.12).

Porém, Fernanda Pessoa utiliza o material de arquivo de forma bem peculiar: não há entrevistas com diretores ou atores da época ou mesmo as tradicional locuções em of da linguagem documental – o documentário é construindo encadeando trechos de diversos filmes, cuja montagem produz efeitos metonímicos interessantes em que cenas de filmes diferentes começas a dialogar entre si criando novos significados. 

Acompanhamos as relações explícitas ou metafóricas dos filmes com o contexto político de cada momento. Dessa maneira, o documentário consegue traçar uma história da ditadura militar desde 1964 até os seus estertores com as greves e a abertura política.




Começa com os antecedentes do golpe de 1964, a tomada do poder pelos militares – principalmente quando associa a mobilização das Forças Armadas à marcha de uma jovem com um biquíni alusivo à bandeira dos EUA, cercada por crianças pequenas que a acompanham alegres, assim como seguiam o flautista de Hamelin daquele velho conto dos Irmãos Grimm. 

Em seguida, a narrativa avança: o milagre econômico e o crescimento da classe média urbana, a influência norte-americana, a propaganda governamental ufanista, a resistência armada, a repressão, cenas de torturas físicas e sexuais que davam o tom de erotismo combinado com sadismo. 

A lista de filmes listados na pesquisa impressiona: Amadas e Violentadas, Vítimas do Prazer Snuff, Noite em Chamas, Amante Muito Louca, Terror e Êxtase, Cada um Dá o que Tem, E Agora José (Tortura da Sexo), A Super Fêmea, O Enterro da Cefetina, Histórias Que Nossas Babás Não Contavam, Palácio de Vênus, Elas São do Baralho, O Porão das Condenadas, Corpo Devasso, Eu Transo... Ela Transa, O Bom Marido, Árvores dos Sexos, Nos Embalos de Ipanema, Os Mansos.




A montagem do documentário destaca passagens e diálogos que sempre apontam sempre para uma abordagem satírica do que acontecia no país naquele momento. 

O vislumbre dessas histórias que o nosso cinema não contava está no destaque que Fernanda Pessoa dá em como as pornochanchadas figuravam à desigualdade social, exploração e dominação na escalada do capitalismo no Brasil (industrialização, financeirização e sociedade de consumo) através da lente do erotismo, da pornografia e das perversões sexuais, principalmente o gozo sádico e voyeurista.

Há duas sequências que são sínteses de novo olhar que a diretora dá às pornochanchadas: o ator Cesar Pereio faz o papel de um empresário que tem um filho que só pensa em curtir a vida em festas. Qual o negócio da família? Fabricar penicos. Por que rende tanta grana? Porque num país empobrecido, há muitas casas sem banheiro interno. Para evitar ter que sair no meio da noite para fazer necessidades, o penico é a melhor solução. Irritado com seu filho, o pai grita: “fique sabendo que a sua vagabundagem depende da merda de milhares de pessoas”.

 A outra é ainda mais emblemática: em uma mansão em frente ao mar, a filha de uma ricaça transforma o empregado em escravo sexual – obriga-o a fazer sexo com ela para depois demiti-lo. “Mas eu vou receber pelo menos o décimo terceiro?”, pergunta, resignado, o infeliz. “Você acabou de estuprar a sua patroa! Sai daqui, seu caiçara!”, humilha a jovem.

Motéis e a ditadura militar

A ideia inicial do governo ao criar a Embratur em 1966 e financiar motéis era ampliar a estrutura turística e hoteleira e fazer do setor uma indústria rentável. A intenção era copiar o moderno americano de hotéis à beira da estrada, mas alguns empresários já estavam de olho no mercado do sexo e se aproveitaram da oportunidade para instalarem motéis nas bordas das zonas urbanas. Para se espalhar pelas cidades brasileiras por todo o país.




Apesar o discurso moralizante da defesa da defesa dos valores cristãos da família na luta contra o ateísmo comunista, aproveitando-se da ausência de fiscalização muitos coronéis acabaram se tornando sócios investidores nesse setor. Sem falar de militares de alta patente que frequentavam motéis em suas “puladas de cerca”.

O livro “Motéis e o Poder” destaca as relações ambígua com o Poder: de um lado foi um instrumento involuntário da revolução sexual e “surfou a onda” da aspiração feminina da liberdade e das discussões em torno da “Nova Mulher” na mídia.

Mas, do outro, espaço do poder masculino e político, como no escândalo que envolveu a celebridade em ascensão Leila Cravo, em 1975, então apresentadora do Fantástico, da Globo: foi encontrada nua e inconsciente aos pés do muro de um motel no Rio de Janeiro. No quarto em que estava com um amante casado, surgiu um figurão da República (um ministro do Governo Ernesto Geisel) que a estupraram e tentaram matá-la. Com 30 fraturas no rosto e lesões na coluna, foi abandonada pela mídia e todas as portas fecharam para ela. 

Tudo é muito sincrônico. Enquanto a Embratur financiava motéis, a Embrafilme estimulava as pornochanchadas. Sincrônico, porque dos dois lados revelam-se relações perversas entre sexo, poder e sociedade. 

Erich Fromm e o sadismo

Tanto o documentário quanto o livro apontam para uma suposta contradição entre o discurso moralista da defesa da família e dos valores cristãos da ditadura e o financiamento de produtos culturais que supostamente atropelariam esse discurso – a “revolução sexual” e o “feminismo”.

Ao contrário, esses eventos sincrônicos na verdade revelam um sintoma coerente que envolve historicamente os governos totalitários: as relações do Poder com o sexo através da celebração do sadismo e voyeurismo.

É recorrente nas pornochanchadas o tema da erotização das desigualdades sociais: o migrante nordestino ou o caipira que chega na megalópole e se torna objeto sexual de ricaças – ou objeto das perversões de torturadores nos porões da polícia como no filme E Agora José (Tortura do Sexo). 




O Poder simbolicamente representado pelo sadismo e voyeurismo: o gozo do dominante em humilhar e controlar o seu objeto do desejo.

O psicanalista Erich Fromm, em seu livro “A Descoberta do Inconsciente Social”, revela que as formas do sadismo não estão diretamente ligadas ao desejo sexual ou libertação genital. O estupro e a submissão forçada da vítima têm como meta o controle – e o exercício recorrente da potência, da força, seja no sentido mais ampla política ou no sentido micro social, o prazer pelo domínio das relações com o outro.

Segundo Fromm, esse é o “sadismo simples” ou “sadismo de potência” cuja meta é o controle, e não a destruição do objeto – ele quer seu objeto vivo porque quer somente sentir a excitação e a satisfação do controle pleno. Esse seria o “sadismo quente”.

Os torturados que morriam nos porões da ditadura eram aqueles que caiam nas mãos de uma natureza diversa de sadismo: o “sadismo frio” ou “necrófilo”, frio e isolado. Há uma mistura de amor pela onipotência e a morte.

A pessoa destrutiva deixou o mundo dos vivos. No seu desespero, a própria existência não deixa alívio, mas a satisfação de que pode tomar a vida: enquanto o sadismo simples é a preservação da potência, a destrutividade é a vingança final e violenta sobre a vida; não capaz de experiências de intimidade nem mesmo entre o torturador e a sua vítima.

O sadismo destrutivo, em contraste com o sadismo simples, é caracterizado pelas misturas de tendências necrófilas: tanto há na ânsia de onipotência como no amor a morte. – FROMM, Erich, A Descoberta do Inconsciente Social, Editora Monole, 1992, p.141.

Com o fim da ditadura esses sádicos necrófilos tiveram que ser remanejados – simplesmente “demiti-los” obviamente não seria uma boa solução. Acabaram sendo alocados nas polícias militares, principalmente aquelas divisões de elite, como a ROTA. O que resultou numa cultura cujos reflexos acompanhamos em vídeos diariamente registrados, em plena luz do dia, de policiais espancando, humilhando e executando suspeitos já imobilizados.

Mais do que revelar o zeitgeist do totalitarismo clássico da ditadura militar brasileira, tanto o livro como o documentário nos fazem pensar numa comparação com o atual governo militar híbrido: qual tipo de sadismo o poder militar exibe para a sociedade?

Digamos que o atual governo militar híbrido não conquistou o Estado por acaso: está sintonizada com a atual agenda da nova reconfiguração do Capitalismo – o “Grande Reset Global” exaltado pelo Fórum Econômico Mundial. Um Capitalismo não mais de escala, de massificação ou de industrialização. Mas de exclusão daqueles que nem para ser explorados servirão: o Capitalismo financeirizado, restando aos “emergentes” o modelo “Banana Plantation”.

O elogio das armas, meganhagem, força policial, execuções justificadas, pena de morte, exclusão de ilicitude etc., inscreve-se na perversão sádica necrófila.

Bem diferente do “sadismo de potência” simbolicamente demonstrado pelo totalitarismo clássico e “hipócrita”: sob o discurso religioso e moralizador, o gozo sádico em motéis e na pornochanchada.

Militares do Ministério da Saúde e as polícias militares fora do controle dos governadores (somado à judicialização da política aliada ao imaginário do justiçamento) são alguns exemplos de uma necropolítica que pretende simplesmente executar se possível grande contingente populacional – o restante, o necrocapitalismo fará o papel com a uberização do trabalho que produz vulnerabilidade e diminuição da expectativa de vida.

Hoje, militares não flertam mais com motéis e pornochanchadas enquanto secretamente torturavam opositores, como no passado. Agora, executam e condenam parcelas da população à vulnerabilidade, doenças e morte em plena luza do dia. 

Os militares do golpe híbrido não se ligam mais no “sadismo quente” e nem em secretas perversões sexuais. Hoje eles são “sádicos frios” que, acompanhando o raciocínio de Erich Fromm, sentem que deixaram o mundo dos vivos. Portanto, pretendem vingar-se deles.  

Trocando em miúdos: parece que nunca encontramos o fundo desse buraco.

 

Ficha Técnica 

Título: Histórias Que o Nosso Cinema (Não) Contava (documentário)

Diretor: Fernanda Pessoa

Roteiro: Fernanda Pessoa

Elenco: Sandra Bréa, Vera Fischer, Rubens de Falco, Ewerton de Castro, Neuza Amaral, Helena Ramos, Denise Dumont, Tony Ferreira, Pedro de Lara, Maria Lúcia Dahl

Produção: Pessoa Produções, Studio Riff

Distribuição:  Netflix

Ano: 2017

País: Brasil

 

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