sexta-feira, dezembro 10, 2021

'Nine Days': por que as almas precisam nascer na Terra?



Por que as almas precisam nascer na Terra, e iniciar a jornada do berço ao túmulo? O diretor e roteirista brasileiro Edson Oda faz um drama metafísico e humanista, que lida com a pré-existência da alma no seu filme “Nine Days” (2020). Um seletor de almas minucioso tem a difícil tarefa de, em nove dias, entrevistar diversos candidatos num processo seletivo: uma delas preencherá a “vaga”: uma vida na Terra. Através de diversos jogos mentais, dilemas morais e situações hipotéticas, os candidatos passarão por rígidos testes. O que significa estar vivo? Como podemos apreciar a vida enquanto estamos aqui? É mesmo possível? São questões que para o próprio entrevistador são difíceis, enquanto observa por monitores de TV as vidas das almas selecionadas na Terra. 

Essa tendência já vem sendo definida como “spi-fi”, ou “ficção espiritual”. Termo abrangente para nomear um conjunto crescente de filmes recentes que especula sobre a vida após morte, filmes caprichosos e estranhos.

O filme Nine Days (2020) é mais uma produção dentro desse subgênero, mas trazendo uma novidade: aqui não se trata exatamente sobre o pós-morte, mas sobre o pré-vida – um grupo de almas recém-falecidas disputam uma vaga para retornar à Terra. Mas primeiro terão que ser entrevistados e acompanhados por nove dias por um meticuloso e silencioso inquiridor. Se for escolhido para seguir em frente, reiniciará a jornada do berço ao túmulo. Do contrário, o entrevistador fará o que puder para realizar o último desejo do candidato recusado, antes dele desaparecer para sempre no éter.

Essa é a premissa desse filme que é a estreia em longas-metragens do roteirista e diretor brasileiro Edson Oda, há dez anos morando em Los Angeles. Para Oda, Nine Days trata de um tema pouco explorado: muito se especula sobre a ideia do que acontece depois da morte. Mas, o que acontece no pré-vida, naquele estágio anterior ao renascimento?

O salto de Oda para o cinema, depois de uma série de curtas-metragens e videoclipes muito aclamados e premiados, deu-lhe definitivamente um lugar no cinema contemporâneo. O filme que estreou no Festival de Cinema de Sundance de 2020 ganhou o Prêmio Waldo Salt de Roteiro. É uma experiência introspectiva que engloba elementos de ficção especulativa e ficção científica espiritual que exploram as questões mais profundas de quem e o que somos e a busca atemporal dos humanos para encontrar propósito e conexão no mundo externo.

É perceptível a inspiração de Oda em After Life (1998) de Hirokazu Koreda e Árvore da Vida (2011) de Terrence Malick, assim como uma leve semelhança com a animação da Pixar Soul (2020), que também explora o "antes da vida" ou o mundo das almas não nascidas. É também um projeto pessoal para Oda, pois também foi inspirado no suicídio de seu tio quando ele tinha apenas 12 anos.

Nine Days oferece um estudo crítico do autodeterminismo e percepção existencialista da condição humana em confronto com o determinismo e a necessidade. Ecoa a velha questão não resolvida da história da Filosofia: livre-arbítrio versus necessidade.

O protagonista é um seletor de almas, decide o candidato certo para nascer, atuando como juiz e júri. Porém, a alma escolhida ou dotada de vida exerce o livre arbítrio em suas escolhas que satisfaçam seus desejos. Como uma espécie de procurador de Deus ou de algum tipo de organização etérica mais ampla, escolhe almas que atendem aos critérios de sobrevivência na Terra. O seletor é orientado pelo princípio darwinista da sobrevivência dos mais aptos.



Nine Days narra a jornada de transformação do protagonista, quando aos poucos esse princípio é questionado pelas circunstâncias. Para esse seletor de almas, a vida na terra é uma “pocilga” e somente os mais fortes ou adaptáveis podem sobreviver.

Nine Days é uma jornada de aprendizado para o seletor de almas, o aprendizado de uma velha máxima do teólogo Irineu de Lyon (180 d.C.): “o que não é assumido, não pode ser redimido”. Tudo aquilo que define como “pocilga” da vida na Terra (fragilidade, finitude, temporalidade etc.) na verdade são potências que os nossos frágeis corpos proporcionam ao espírito - um lembrete para valorizar a improbabilidade de nossa existência e a necessidade de valorizar e celebrar as coisas simples da vida. A necessidade de celebrar as memórias e os momentos felizes que alguém pode vivenciar no mundo.

Em outras palavras, nossas almas e espíritos são definidos pela experiência físicas da nossa passagem por esse mundo – a experiência do nosso livre-arbítrio.




O Filme

Nine Days abre com Will (Winston Duke), um árbitro de almas ou o guardião do purgatório primordial, assistindo ao vivo os diferentes indivíduos que ele escolheu anteriormente para receber o presente da vida em vários aparelhos de televisão empilhados uns sobre os outros em sua sala de estar. Ele acompanha os dias e faz anotações detalhadas sobre suas vidas cotidianas, seus pontos altos e adversidades, e os grava em fitas VHS que são mantidas em uma sala de arquivos.

Will está particularmente interessado na vida de uma jovem chamada Amanda Grazzini (Lisa Starrett), uma violinista e prodígio, cuja vida se desenrola em trechos no início do filme. Ele a descreve em suas anotações como uma personalidade extrovertida, intelectualmente curiosa, destemida e alegre, e uma prodígio, enquanto os momentos-chave de sua vida são mostrados literalmente através de seus olhos. 

Vemos Amanda ainda criança, seus pais amorosos, escolhendo violino entre uma variedade de brinquedos, brincando na água lamacenta, pintando um quadro, comemorando seu aniversário, se apresentando em um concerto de violino, formando-se, aprendendo notas musicais, andando de bicicleta pelas ruas, dançando com seus amigos e ensaiando para um grande concerto.

Will é como um pai orgulhoso que observa seus escolhidos passando seus dias na Terra. Ansioso, aguarda o grande concerto de Amanda. Ele e seu assistente Kyo (Benedict Wong), senta-se no sofá da sala de estar, atentos, diante da tela da TV. Mas algo inesperado acontece: A caminho do concerto, Amanda sofre um acidente fatal de carro, aparentemente provocado por ela mesma. 




Essa tragédia atormentará os dias de Will: o que aconteceu de errado com sua melhor escolha? O que tornará seus critérios de avaliação do processo seletivo ainda mais rígidos e implacáveis.

Logo, chegam novas as almas não nascidas em forma humana começam a chegar à residência de Will, para a difícil tarefa de selecionar uma alma em nove dias.

Os notáveis ​​cinco candidatos entre nove incluem Maria (Arianna Ortiz), a romântica tímida que se apaixona por Will, Mike (David Rysdahl), um artista sensível e ansioso, Alexander (Tony Hale), um homem brincalhão e amigável que ignora o lado feio da vida, Kane (Bill Skarsgard), o pragmático sério, e Emma (Zazie Beetz), uma mulher otimista de espírito livre e curiosa.

Will tem o processo seletivo rigorosamente planejado, que consiste em situações hipotéticas comparativas e desafios morais. Quanto mais Will se aprofunda no porquê da morte de Amanda, mais rígido e inquiridor se torna com os nove candidatos.




Ansiedade, medo, falta de confiança, indecisão, vulnerabilidade, desconfiança começam a eliminar um a um os candidatos. 

Numa clara alusão ao filme japonês After Life, Will oferece ao candidato eliminado a realização de um último desejo: reviver a experiência mais prazerosa dos vídeos que assistiu sobre as pessoas que vivem na Terra. Ele então reconstituirá a cena com todos os possíveis recursos cenográficos em um pequeno estúdio em sua casa.

O Detetive e a redenção

Will vive o arquétipo gnóstico do Detetive: a solução da investigação do porquê da morte da jovem-prodígio Amanda irá reverter para ele mesmo – Will já teve uma vida malsucedida na Terra com um histórico de suicídio após uma vida sem encontrar-se a si mesmo: o propósito e o sentido naquele mundo.




Erich Fromm em seu livro “A Descoberta do Inconsciente Social”, faz uma interessante síntese dos valores que a condição humana busca na existência: o amor, o desejo de liberdade, a luta contra o tédio e a manipulação, a luta pela integridade, pela vida, além da satisfação material e a satisfação sexual.

Aos poucos Will vai descobrindo que o seu desprezo pela vida na Terra e a forma como seleciona seus candidatos por princípios darwinistas acabaram endurecendo o seu próprio caráter. Seu determinismo vai dando lugar ao livre-arbítrio: os valores buscados pela condição humana terrena somente poderão ser vivenciados na escolha dos pequenos momentos de satisfação e prazer – não é por menos que na sequência final, Will recita o poema de Walt Whitman “Song of Myself”, uma ode à liberdade e espontaneidade como chaves para realizar aqueles valores sintetizados por Erich Fromm.

Há uma nota de curiosidade em Nine Days: por que a aparelhagem que Will manipula para observar seus pupilos na Terra é completamente analógica? Monitores de TV de tubo catódico, gravadores VHS, gravadores com fitas de rolo, mais o trabalho de marcenaria para reconstruir cenografias em estúdio, são totalmente vintage. Por que naquele plano etérico, supostamente superior à Terra, a tecnologia é ainda tão retro?

Certamente é um recurso simbólico do diretor e roteirista Edson Oda. É o simbolismo da necessidade da materialidade para a alma. Tecnologia analógica é física, tátil, material em seus registros de imagens e som. O simbolismo da necessidade da vida corpórea para alma. Almas não nascidas necessitam da passagem pela Terra para, mais uma vez, transcenderem. É a transcendência na imanência. 

Somente aquilo que é aceito, pode ser redimido. Essa é a lição principal de Nine Days.


 

Ficha Técnica 

Título: Nine Days

Diretor: Edson Oda

Roteiro: Edson Oda

Elenco: Winston Duke, Brandy Pitcher, Benedict Wong, Lisa Starrett

Produção: Baked Sudios, 30West

Distribuição:  Sony Pictures Classic

Ano: 2020

País: EUA

 

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