quarta-feira, dezembro 28, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Games de simulações de atividades militares, administrativas etc. poderiam representar que a própria realidade pretensamente simulada já é, igualmente, um game? A “gameficação”,isto é, a exploração do elemento “lúdico” como ferramenta de administração treinamento, gestão etc, seria o sintoma da "gameficação" da própria realidade? O filme "O Que Você Faria? (El Método, 2005) remete a essas questões ao denunciar que as organizações atuais estão se convertendo em games perversos e autistas.
A revista “CartaCapital” de 21/12/2011 publicou uma
reportagem especial da “The Economist” intitulada “O Mundo Todo é um Jogo”
sobre o vertiginoso crescimento do universo dos videogames a partir da previsão
de que “serão a mídia de massa mais empolgante e de crescimento mais rápido
durante a década”.
A princípio, o título da reportagem parece ser apenas retórico:
Descreve por meio de uma hipérbole o crescimento econômico-financeiro do
mercado dos videogames . “O mundo todo” é apenas uma figura de linguagem.
Porém, avançando nas páginas da reportagem encontramos um curioso título, “O
Jogo é para valer – o que a tecnologia do videogame pode fazer no mundo real”,
onde desenvolve-se o curioso conceito de “gameficação”, sugerindo que o título
geral da reportagem é muito mais do que retórico!
Segundo o texto, em 2002 o exército do EUA lançou o
“America’s Army”, game como ferramenta de recrutamento baseado em um conjunto
de programas comerciais, ainda hoje jogado online.
Informa ainda que jogos e simulação de negócios estão
disponíveis para funcionários de todo tipo, desde administradores até
trabalhadores de call centers usados por companhias como Coca-Cola e Shell.
“Fazer esse tipo de treinamento para o trabalho como se fosse um jogo pode
deixá-lo mais interessante do que uma abordagem tradicional com aulas no quadro
negro, diz Tim Luft, do Serious Game Institute, uma instituição de pesquisa de
Coventry, Inglaterra. Seus pesquisadores estão trabalhando na criação de lojas
virtuais para uma companhia varejista e em versão virtual tridimensional da
cidade de Coventry para uso de arquitetos e planejadores do governo local”
Chama-se, portanto, de “gameficação” a exploração do
elemento “lúdico” como ferramenta de administração. A questão irônica desse
conceito é a expressão “como se”, isto é, games que mostram a realidade como fosse um jogo. Será que o título da
reportagem especial (“O mundo Todo é um Jogo”) da “The Economist” é muito mais
do que retórico? Explicando melhor, será o título um sintoma da percepção de
que a realidade, ela mesma, já se tornou um jogo autônomo e fechado em si
mesmo, sem finalidades racionais, econômicas ou políticas a não ser a simulação
pela simulação? Games de simulações de atividades militares, administrativas
etc. poderiam representar que a própria realidade pretensamente simulada já é,
igualmente, um game?
Um filme que remete a essas questões levantadas pelo
conceito de “gameficação” é “O Que Você Faria?” (El Método, 2005) do diretor argentino Marcelo Piñeyro. Cinco homens e duas mulheres disputam uma vaga para um alto cargo
executivo de uma grande empresa em Madri (Espanha). Os candidatos participam da
última etapa da seleção, do qual sairá o vencedor. Fechados numa sala, as
provas elaboradas são baseadas num suposto "Método Grönholm", que
basicamente criará jogos psicológicos e situações que induzem a comportamentos
nervosos e transparentes. O jogo simulará situações arbitrárias que incitam
conflitos, insegurança fazendo com que os candidatos lutem para resistir às
pressões e estresse e, dessa forma, o vencedor demonstre o mais alto grau de
equilíbrio emocional.
O curioso é que no “método” a capacidade técnico-profissional dos
candidatos é o que menos importa, sugerindo que os ambientes de trabalho se
transformaram em verdadeiros reality
shows onde os indivíduos são obrigados a cumprir metas arbitrárias, cuja
natureza e finalidade podem ser tudo, menos lógica e racional.
Um jogo autista
O ponto intrigante do filme é que os candidatos vão chegando ao prédio
comercial onde será realizado o processo seletivo em meio ao caos de grupos
anti-globalização que fazem protestos e tomam conta das ruas de Madrid. Todas
as situações arbitrárias dos jogos de gestão são pontuadas pelos gritos de
protestos das ruas. Mas todos estão indiferentes, tal o grau de absorção das
simulações psicológicas em que todos estão imersos.
O filme “O Que
Você Faria” apresenta uma tendência acusada por muitos críticos das
organizações: as sucessivas ondas dos sedutores discursos que prometem
revoluções gerenciais com muitas reuniões recheadas de planilhas Excel e slides
de Powerpoint com coloridos gráficos e números tornam o trabalho de gestão cada
vez mais abstrato e distante do “chão da fábrica”. Como coloca o colunista
Thomas Wood, uma espécie de autismo passa a dominar as organizações onde “os
executivos passam a filtrar as informações do meio. Boas notícias são
amplificadas e as más notícias são barradas” (WOOD, Thomas. “Feedback Selvagem”
disponível em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/feedback-selvagem/?autor=14).
O mundo das organizações torna-se cada vez
mais abstrato com jogos cujas regras
são invisíveis
O
resultado é um ambiente de “regras invisíveis” que nada têm a ver com
capacitação profissional, mas com “inteligência emocional” dos funcionários (ou
eufemisticamente chamado de “colaboradores”): sem relação com a práxis os
sistemas tornam-se fechados em si mesmos, autopoiéticos - tipos de
sistemas que são cegos em relação ao que lhe é exterior, ou seja, o mundo
exterior não seria nada mais do que um produto secundário da auto-referência
produzida. Em outras palavras, o mundo externo somente é representado a partir
de uma descrição que o sistema faz de si mesmo (veja LUHMANN, Niklas. A Realidade dos Meios de Comunicação,
São Paulo: Paulus, 2005).
Da práxis passamos para o jogo, tomado não no sentido lúdico, mas
perverso: regras que existem não para tornar mais eficiente a realização de uma
finalidade original (satisfação de clientes, vitória ou produção de bens e
serviços), mas para auto-reprodução do sistema como fim em si mesmo.
O fenômeno da “gameficação” da realidade parece ser um sintoma dessa
tendência das organizações: programas de simulações de negócios para
treinamento ou recrutamento significariam que a própria organização já se
tornou um “game” tal qual um reality show
monitorado por psicólogos de Recursos Humanos que avaliam não a qualidade na
produção de bens ou serviços reais, mas a performance individual em função de
regras invisíveis de um jogo cada vez mais abstrato ou “autopoiético” – aliás,
a autopoiese é a própria característica algorítmica dos designs de videogames.
Call Centers e Exército: sistemas de simulação
Qualquer cliente sabe que os call centers tornaram-se sistemas autônomos
cuja resolução dos problemas (suposta finalidade racional) é protelada em
função de sucessivos protocolos de atendimento que fazem as ligações girar em
círculo vicioso em um roteiro que faria o orgulho do teatro do absurdo de Samuel
Backet e Eugene Ionesco ou o teatro da "patafísica" de Alfred Jarry. Um jogo para ganhar tempo, pois ninguém
pode resolver nada em uma estrutura de serviços tão terceirizada.
Game "America's Army": a própria guerra
já se tornou um game
Em outra
situação, jogos de simulação de guerra que se transformam em ferramentas de
recrutamento para o Exército norte-americano significam que a própria guerra
transformou-se num fim em si mesmo, principalmente com a privatização da mão de
obra militar por empresas que fornecem soldados mercenários. Dos antigos
objetivos como defesa da pátria, honra ou vitória, a guerra transforma-se em
uma lenta estratégia de dissuasão: a finalidade deve ser adiada ad infinitum para que a indústria bélica
se perpetue: os mortos civis ou militares são traduzidos a partir do léxico do
próprio sistema – “baixas” ou “efeitos colaterais”. Tal como em um processo
kafikiano, os soldados esquecem o motivo pelo qual estão lutando.
Se os
games são simulações, pode significar que a expansão desse mercado é o sintoma
de que a própria realidade já é uma simulação. Como sugere o sociólogo alemão
Niklas Luhmann, a sociedade seria formada por uma série de subsistemas (o
Político, o Econômico, o Midiático, o Organizacional etc.) onde cada um se
fecha em si mesmo, tornando-se cegos ou autistas, porque filtram a realidade
exterior e a traduz em seus próprios termos: a simulação de racionalidade feita
a partir de um jogo cujo objetivo é, na verdade, autopoiético: perpetuar-se a
si mesmo.
Realidade por contraste
A
gameficação da realidade parece ter uma função ideológica: ao criar-se jogos de
simulação da realidade gerencial, militar, urbana etc., é como se legitimasse,
por contraste, a realidade simulada como “real”. Luhmann e Jean Baudrillard,
cada um de acordo com seu método, chegam a conclusões parecidas.
Luhmann
chama esse fenômeno ideológico de “fechamento operacional” do sistema. O real
não é descrito por si mesmo, mas através daquilo que o nega: o entretenimento,
o jogo e a simulação. Ao contrastar a “realidade” com o sua suposta negação (a
ficção, a simulação etc.), encobre a natureza igualmente “lúdica” ou “ficcional”
do real: afinal a realidade é também um jogo, não mais lúdico, mas perverso e
autista.
A
expressão “como se” para definir jogos e simulações (“como se fosse o real”) esconde a natureza simulacro do real, como
afirma Baudrillard ao referir-se à Disneylândia como um mundo que quer-se
infantil “para fazer crer que os adultos estão noutra parte, no mundo ‘real’, e
para esconder que a verdadeira infantilidade está em toda parte, e é a dos
próprios adultos que vêm aqui [Disneylândia] fingir que são crianças para
iludir sua infantilidade real” (BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulações.
Lisboa: Relógio D’Água, 1991, p. 21).
A grande
virtude do filme “O Que você Faria?” é denunciar, no âmbito das organizações,
como a própria atividade gerencial já se tornou ficcional, autista e
simulatória. Transpor para games uma realidade que já é, em si mesma, jogo é
criar uma situação paradoxal de espelhos que se refletem mutuamente, até não
sabermos mais o quê é reflexo e o quê é refletido.
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Este humilde blogueiro participou da edição de número seis do programa “Poros da Comunicação” no canal do YouTube TV FAPCOM, cujo tema foi “Tecnologia e o Sagrado: um novo obscurantismo?
Esse humilde blogueiro participou da 9a. Fatecnologia na Faculdade de Tecnologia de São Caetano do Sul (SP) em 11/05 onde discutiu os seguintes temas: cinema gnóstico; Gnosticismo nas ciências e nos jogos digitais; As mito-narrativas gnósticas e as transformações da Jornada do Herói nas HQs e no Cinema; As semióticas das narrativas como ferramentas de produção de roteiros.
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"Cinema Secreto: Cinegnose" é um Blog dedicado à divulgação e discussões sobre pesquisas e insights em torno das relações entre Gnosticismo, Sincromisticismo, Semiótica e Psicanálise com Cinema e cultura pop.
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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