Numa sociedade de controle e sem mais dinheiro em espécie, substituída por por uma rede onde transações comerciais se transforam em dados no ciberespaço, seguir o rastro de cada indivíduo pelas suas compras será a pedra de toque do controle global, regulado por uma Banco Mundial. Cartões de crédito e débito foram apenas o início do fim do papel-moeda, cujas transações em espécie no passado garantiam a intimidade e o anonimato. Que agora será eliminado pela engenharia de controle social.
O futuro será o VeriChip, com tecnologia RFID – tecnologia de identificação por rádio frequência: dentro de uma fina cápsula de vidro é colocado um chip digital o qual armazena os dados do indivíduo. Um chip de implante subcutâneo. A IBM é a companhia por trás do VeriChip.
Mas como convencer as pessoas a substituir seus cartões por chips subcutâneos? Afinal, como tornar sedutor para todos o implante de um objeto estranho sob a pele, com uma pequena antena que transmite via rádio as operações do usuário? Simples! Olhe ao seu redor: piercings no rosto e na língua e a cultura da tatuagem, que transformou a pele em uma verdadeira mídia, são operações psicológicas para atrair os jovens à ideia de ter um chip injetado sob a pele com uma seringa – será “diferente”, “desafiador”, algo muito “moderno” e “atrevido”, assim como o são piercings e tatuagens na atualidade.
Quem descreve essa agenda oculta é Daniel Stulin, jornalista especializado nas atividades do Clube Bilderberg (conferência anual privada da qual participa a elite política, econômica e midiática global) – leia STULIN, Daniel, A Verdadeira História do Clube Bilderberg, Planeta, 2006.
Agora, substitua as reuniões secretas do Clube Bilderberg por invasores alienígenas, e a cultura da tatuagem e fanzines por uma estratégia através da qual os invasores imporão a “Cultura Lacrimal”, uma elaborada psy op para os aliens dominarem a humanidade.
E o leitor terá como resultado a estranha e sombria animação argentina Lava (2019). Dirigido pelo animador e desenhista de HQs Ayar Blasco que praticamente é um Ovni dentro do cinema argentino – uma animação minimalista, quase infantil, mas voltada ao público adulto no melhor estilos das animações do canal Adult Swin.
Uma mescla de humor negro e ficção científica, onde definitivamente o realismo é o que menos importa: uma invasão alienígena com gatos e serpentes gigantes e uma imensa bruxa sedente de sangue caminhando entre os prédios da cidade de Buenos Aires.
O que torna Lava uma animação única é a combinação do Fantástico e sci-fi com a cor cotidiana da capital portenha: a cultura das oficinas de tatuadores e fanzines no underground de Buenos Aires, as expressões, a cultura futebolística etc.
Lava conta a estória sob uma atmosfera lisérgica e onírica: a cidade (ou talvez o mundo) está sendo invadida por uma civilização de origem desconhecida, a chamada “Cultura Lacrimal”, que se instala no planeta provocando o caos. Tudo através de sinais hipnóticos transmitidos pelas telas dos meios de comunicação, seja de massas ou de dispositivos móveis como smartphones e tablets. Porém, o interessante em Lava é como as tatuagens também se tornam instrumentos ao mesmo tempo de invasão e resistência: elas próprias também se tornaram uma forma de mídia, e a pele uma tela através da qual tentamos nos expressar.
O Filme
Encontramos Deborah, uma talentosa tatuadora, na sua oficina tatuando uma estranha figura geométrica em um cliente, figura que fará todo sentido durante a trama. O sabor portenho percebemos logos nas primeiras imagens: um outro cliente tatua o distintivo do time de futebol San Lorenzo de Almagro, cantando o hino do clube para disfarçar a dor.
Depois do trabalho reúne-se em casa com sua colega de quarto Nadia, o seu namorado e um cara com quem Nadia quer que Deborah fique. Se preparam para assistir a um filme do Netflix (pirateado, espelhando na TV a tela do laptop) quando um fenômeno estranho ocorre: estranham imagens ao estilo de tatuagens invadem a tela não só da TV, mas também das telas dos celulares enquanto o rádio sai do ar.
Logo percebem que as imagens têm um poder hipnótico ao verem Deborah inerte no sofá olhando para a tela do seu celular.
Do outro lado da rua ocorre um acidente de carro fatal (logicamente o motorista dirigia olhando para a tela do seu celular) e ouvem-se no meio da noite explosões nas proximidades. E do nada começam a surgir gatos gigantes que ficam parados, no alto dos prédios, aparentemente apenas observado os humanos nas ruas. E a aparência deles é bem hostil, como se estivessem à espera da ordem para atacar.
Deborah parece ter alguns problemas de autoestima e aproveitará a crise para se livrar de um relacionamento tóxico, enquanto o restante do grupo alterna discussões de relacionamento com a luta da própria sobrevivência. Enquanto isso descobrem que há um grupo de resistência que gira em torno de uma HQ chamada Lava, cuja capa figura o símbolo geométrico que Deborah tatuava na primeira sequência. Lembrando o argumento da série Utopia (2020): uma HQ previa, de forma codificada, os maiores desastres d humanidade – clique aqui.
Na HQ “Lava”, não só previu a invasão como também funciona como tutorial tático de resistência. Esse é o começo da vertigem metalinguística que o diretor Ayar Blasco que conduzir o espectador: os protagonistas estão autoconscientes que estão dentro de uma animação e se aproveitam da sua natureza ficcional – se morrerem, sabem que reaparecerão na próxima sequência; e conseguem saltar de um terraço para outro para escaparem dos gatos que começaram a perseguir a todos em Buenos Aires. “Aguente a animação!”, chega a gritar um deles aos seus companheiros.
Está claro que a crítica social por trás de Lava é a obsessão da humanidade pelas mídias e como os dispositivos absorvem totalmente nossa atenção – se alienígenas quisessem realmente invadir o nosso planeta, certamente descartariam tripods ou discos voadores disparando raios e enfrentando exércitos e a força aérea. Seria mais fácil invadir as transmissões midiáticas. Bastaria substituir um controlador por outro: as grandes corporações midiáticas pela batalha alienígena pelo controle das mentes humanas.
O interessante em Lava é que a Cultura Lacrimal alienígena é baseada na estética tattoo. E parece que eles encontraram uma mídia ainda mais invasiva: a tatuagem que transformou as nossas próprias peles em mídia para auto-expressão.
Para muitos espectadores, o final de Lava pode ser insatisfatório: é aberto ou mesmo ambíguo: será que a HQ Lava, cujos leitores pertencem à cultura da tatuagem, é um instrumento de resistência ou também fez parte da estratégia de invasão alienígena? – afinal, tatuadores também serão comandados hipnoticamente a confeccionarem novos desenhos para conquistar corações e mentes das massas.
Ao assistir à animação Lava é impossível não lembrar das “teorias conspiratórias” do jornalista Daniel Stulin em torno do Clube Bilderberg e as psy ops para tornar aceitável para as pessoas o microchip subcutâneo.
Ficha Técnica |
Título: Lava (animação) |
Diretor: Ayar Blasco |
Roteiro: Ayar Blasco, Nicolás Brito |
Elenco: Sofia Gala, Janeane Garofalo, Martin Piroyanski, Justina Bustos, Ayar Blasco |
Produção: Crudofilms |
Distribuição: Rock Salt Releasing |
Ano: 2019 |
País: Argentina |