A famosa abertura do “Manifesto Comunista” (“um fantasma ronda a Europa, o fantasma do comunismo”) repete-se em inúmeras paráfrases desde que foi escrito. E a última é proporcionada pela forma como a grande mídia vem cobrindo a crise econômica e humanitária provocada pela pandemia no País. Aglomerar para se divertir não pode! Mas ficar apinhado em ônibus e trens para trabalhar é tolerável... O Governo deve liberar o auxílio emergencial? Sim, mas desde que dentro do estreito limite do “teto de gastos”. O que está por trás desse duplo vínculo esquizoide do jornalismo corporativo? Daí ressurge mais uma vez o fantasma de Karl Marx e sua obra “O Capital”: esse malabarismo retórico em cada telejornal é a expressão da própria tensão da reprodução do capital criada pela pandemia com a necessidade de manter o fluxo da produção de mais-valia e valor num cenário de restrições econômicas e isolamento social. O resultado é o “lockdown tabajara”.
Um fantasma ronda a pandemia, muito além do espectro do Grande Ceifador. É o espectro do velho Karl Marx, jornalista, filósofo e revolucionário socialista do século XIX, autor do “Manifesto Comunista” (1848) e de “O Capital” (1867), obra máxima que estabeleceu o entendimento das relações do trabalho com o capital em uma sociedade marcada pela luta de classes.
Se o eclipse de Sobral, em 1919, comprovou a teoria do tempo-espaço curvo da Teoria da Relatividade Geral de Einstein, da mesma forma a crise da pandemia Covid-19 está comprovando didaticamente as teses reunidas nos três volumes da obra “O Capital” de Karl Marx.
Se da cidade de Sobral, no Ceará, veio a confirmação da teoria que revolucionaria o século XX, novamente, no Brasil, vem a confirmação de outra teoria da distante Europa que politicamente revolucionou o século passado. Agora, através de como a grande mídia brasileira tenta encobrir ou mitigar, em meio a crise pandêmica que arrasa o País, as mesmas contradições do capitalismo apontadas em “O Capital” de Karl Marx.
E de onde este humilde blogueiro tirou essa tese aparentemente tão estapafúrdia e sensacionalista? Basta o leitor prestar a atenção a duas recorrências na cobertura midiática da catástrofe social e econômica que a pandemia está gerando no País.
Ansiosa em se descolar do governo Bolsonaro (que ajudou a eleger em 2018), de forma inédita agora defende cientistas, pesquisadores e instituições como Fiocruz e Instituto Butantã. Além (pasmem!) de o SUS e as políticas públicas de saúde.
Consternados e bestificados, veem a escalada de mortos nas filas de espera por vagas em UTIs e reivindicam medidas “da Ciência” como “restrições” e “isolamento social” – confundindo essas palavras com “lockdown”, medida que até aqui nunca foi implementada no País.
Paradoxalmente, os telejornais regionais mostram todo dia grandes aglomerações em metrôs, trens, pontos de ônibus e terminais e... nada falam. Ou melhor, descrevem a situação de forma protocolar – nada igual à indignação de apresentadores e repórteres diante das aglomerações em baladas clandestinas, bares e praias nos finais de semana.
Quanto aos trabalhadores apinhados em plataformas e terminais, no máximo, exigem medidas operacionais ou logísticas como o aumento do número de ônibus e higienização. São os famosos “protocolos”.
Mas o quê fazer com os “empreendedores” (agora chamados de “autônomos” ou “trabalhadores informais” para não desgastar o discurso do empreendedorismo vendido pela grande mídia como saída para a massa de desempregados) que viram de uma hora para outra sua renda acabar? A solução é cobrar do Governo auxílio emergencial... mas... com responsabilidade fiscal, respeitando o teto de gastos.
Numa corda bamba esquizo
E assim passam os dias com os analistas na corda bamba tentando se equilibrar nesse duplo vínculo esquizoide: por um lado, o jornalismo corporativo quer se descolar de Bolsonaro clamando pela responsabilidade social; mas do outro também tem que draconianamente defender a pièce de résistanceneoliberal do limite da dívida pública.
Em síntese, a grande mídia tenta se equilibrar numa narrativa contraditória (para não dizer hipócrita): defesa do isolamento social X neutralidade em relação ao transporte público lotado; exigência por reponsabilidade social X imposição da responsabilidade fiscal.
E por onde ronda o espectro de Karl Marx em tudo isso? Essa tensão esquizoide vivida pelo jornalismo corporativo é a expressão da própria tensão da reprodução do capitalismo criada pela pandemia. Mais precisamente, da necessidade de manter o fluxo de geração de mais-valia e produção de valor pelo capital – segundo Marx, o processo através do qual o capital-mercadoria se transforma em capital-dinheiro na esfera da circulação (comércio) e em capital financeiro – a “banca” ou o “Big Money”.
Os dois polos do duplo vínculo midiático esquizoide descrito acima, corresponde às duas pontas do processo global de produção de valor: de um lado, a esfera da produção do capital-mercadoria (transportes públicos lotados em momento de “lockdown”) e do outro a obsessão pelo teto de gastos em momento de “responsabilidade social” – a outra ponta, o capital financeiro.
“O Capital”: as metamorfoses da mais-valia
Vamos relembrar alguns pontos de “O Capital” para entendermos essa esquizofrenia midiática.
Em “O Capital” Marx estava preocupado em demonstrar como se conectam o capital-mercadoria e o capital-dinheiro (formas do capital industrial) em capital comercial e capital financeiro (formas funcionais do capital mercantil). Trata-se das duas esferas do capitalismo: o capital produtivo e o capital de circulação.
Para ele, o processo de circulação (a transformação da mercadoria em dinheiro pelo comércio e as operações técnicas do dinheiro pelo capital financeiro) não produz valor (a metamorfose da mercadoria em riqueza para o capital) e nem mais-valia – quantidade de horas não pagas ao trabalhador: a diferença entre o valor do produto e a soma de valor dos meios de produção e do valor do trabalho, base do lucro no sistema capitalista.
A esfera de circulação apenas realiza as metamorfoses das mercadorias, mas nada tem a ver com a criação em si do valor.
Esse pressuposto do modo de produção capitalista detalhado por Marx explica o porquê das medidas de restrições na pandemia se limitarem à esfera da circulação: setores de serviços, comércio etc. O lucro desses setores é meramente deduzido da mais-valia gerada no setor produtivo que deve ser mantido em atividade a todo custo: a reprodução do capital deve ser contínua, mesmo com a paralização da esfera de circulação pelas medidas para conter a disseminação do vírus. Por sua natureza “improdutiva”, podem ser restringidos.
Mas o leitor pode perguntar: mas a paralização do capital comercial não prejudica o capital produtivo (o capital-mercadoria) por supostamente prejudicar a metamorfose mercadoria X dinheiro e realizar o valor?
Aqui entra o progresso tecnológico que sempre foi o aliado do capital. Primeiro, com a redução salarial ao retirar o “saber fazer” do trabalhador e passá-lo para a máquina, automatização e divisão do trabalho. E segundo (e principalmente na atualidade) com a telemática: compras on line e os serviços de entrega por aplicativos – a uberização do trabalho que, por sua vez, arrocha ainda mais o salário.
Por isso o jornalismo corporativo ignora ou, no máximo, racionaliza a necessidade de trabalhadores continuarem se apinhando no transporte público em pleno “lockdown tabajara” que oscila na medida em que o fluxo das UTIs sobe ou desce. A mídia deve cumprir essa necessidade estrutural do capitalismo em manter a continuidade da produção de mais-valia e valor.
E todo o discurso moralista é despejado sobre baladas, bares e entretenimento. Se o objetivo fosse mesmo impedir a circulação do vírus, até o capital-mercadoria entraria em lockdown, suspendendo a geração de mais-valia – coisa impensável e irracional para o capital.
Lembre-se que para Marx o trabalho morto (máquinas, automação, divisão e simplificação do trabalho) deve substituir o trabalho vivo (a transformação da natureza em benefício do próprio homem). No caso atual, ironicamente essa substituição ocorre no sentido literal: a morte do próprio trabalhador contaminado no transporte público.
Igrejas e a banca financeira
Dentro desse conjunto de ironias e tensões entre capitalismo e pandemia, encontramos outro detalhe: toda a esfera de prestação de serviços e comercial é paralisada ou restringida. Menos... as igrejas, principalmente neopentecostais. Ora, elas então produziriam também valor e mais-valia? Indiretamente, principalmente no momento atual de crise e desesperança: um pouco de fé em Deus e de que os ímpios (políticos, comunistas ou qualquer conspiração que os impede de trabalhar) serão punidos pela vingança divina, faz o trabalhador acordar todo dia para se espremer no ônibus acreditando que o vírus não contaminará alguém tão temente a Deus...
A outra ponta do capitalismo é o capital financeiro. O comércio de dinheiro não promove a circulação em si de dinheiro, mas suas operações fazem a intermediação entre a esfera de circulação e industrial. Principalmente quando converte dinheiro e crédito, mais um genial salto mortal do capitalismo para enfrentar momentos de taxa decrescente de mais-valia e lucro – principalmente na atual pandemia.
Por isso, possui uma função tão estrutural ou decisiva quanto à incessante geração de valor e mais-valia. Disso decorre que deve também incessantemente abocanhar o dinheiro público mediante a imposição do teto de gastos e a histeria da reponsabilidade fiscal exigida por 10 em cada 10 analistas da grande mídia – uma quantidade cada vez maior de dinheiro público deve ser canalizado para o pagamentos dos juros e serviços das dívidas estaduais e federais.
Principalmente porque a pandemia e a crise econômica reduzem a liquidez disponível na economia na medida em que os agentes retiram seus recursos da economia real para se protegerem nas negociações de títulos, ações e papéis do sistema financeiro. Formam-se as bolhas especulativas e o descolamento entre o valor real e de mercado dos ativos. Bilhões ou trilhões podem se perder da noite para o dia com junkbonds.
O fluxo gigantesco de aportes públicos é necessário para amortecer os possíveis e sempre esperados terremotos que o capital fictício cria em seus constantes saltos mortais.
Daí essa loucura na cabeça desses analistas de economia “cabeças de planilha” em tentar conciliar o inconciliável. Ainda mais quando vemos nos intervalos publicitários desses canais de notícias a quantidade de anúncios de empresas corretoras de valores e investimentos. E porque para comentar sobre qualquer fato econômico, jornalistas procuram somente economistas-chefe dessas empresas.
Mais do que um espectro, Karl Marx parece que será ressuscitado pelo novo coronavírus!
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