sexta-feira, março 12, 2021

O real, o imaginário e o simbólico no xadrez da guerra semiótica da "libertação" de Lula


O quê mudou na correlação de forças para que Fachin anulasse as condenações de Lula. As ruas estão tomadas de protestos contra o governo como no Paraguai? Estamos à beira da sublevação das massas? Caminhoneiros estão à beira da paralisação nacional? Nada. Acompanhamos apenas a realização da profecia do ministro Lewandowski feita em 2014: “o século XXI é o século do Poder Judiciário”. É a judicialização da política, até aqui o principal vetor dos movimentos políticos para manter esquerda e oposições no torniquete, com a estratégias híbridas de movimento em pinça e controle total de espectro. Dentro do consórcio com a grande mídia, a “libertação” de Lula forma o xadrez da guerra semiótica que deve ser compreendida em três níveis: o real, o imaginário e o simbólico.

Em meio ao terremoto da anulação das condenações de Lula decidida pelo ministro Fachin, a analista de política da Globo News (a grande sócia da Lava Jato, dando apoio promocional e logístico), visivelmente consternada, sentenciava: “Não se pode deixar fios soltos quando se enfrenta inimigos tão poderosos!”. Após o discurso de Lula no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, a mesma analista referiu-se a Lula como “um discurso em tom de estadista”. 

Em questão de horas, o “inimigo poderoso” virou um “estadista”. Apresentadores e jornalistas do veículo noticioso receberam uma enquadrada tão violenta (ainda maior do que a mudança de narrativa contra Temer no episódio do áudio da conversa de Joesley com o presidente desinterino, em 2017) que até a ferrenha porta-voz das “massas cheirosas, Eliane Catanhêde, jogou Sérgio Moro ao mar no programa “Em Pauta”, ao admitir a parcialidade política do ex-juiz ao ingressar como ministro no governo Bolsonaro.

O que mudou para a Globo, um dos braços armados do consórcio Exército-Judiciário-Mídia, para operar uma guinada editorial tão rápida e colocar na focinheira sua matilha de cães sabujos? – com exceção do recalcitrante Merval: raivoso com o retorno do inimigo, ainda protesta contra a “roubalheira do PT”... mas foi jogado para as altas horas da programação noturna do canal fechado...

Mais uma vez, este Cinegnose lembra da metodologia de estratégia política ensinada pelo velho Leonel Brizola: “Quando vocês tiverem dúvida quanto a posição tomar diante de qualquer situação, atentem: se a Rede Globo for a favor somos contra. Se for contra, somos a favor”.  



Se não, vejamos: o quê mudou estruturalmente na atual correlação de forças que conduziu ao golpe de 2016 e que criou a mise-en-scène que conduziu Bolsonaro à vitória eleitoral de 2018? Será que as ruas estão tomadas de protestos e as massas chegando quase à sublevação? – algo, assim, parecido com Chile e Paraguai? 

Será que, depois do golpe militar híbrido que não foi televisionado pela grande mídia, de repente, o STF deixou de ser tutelado pelos militares? 

Será que, para salvarem suas biografias e não serem condenados pela História, os ministros do STF decidiram enfrentar o enquadramento militar? 

Há violentos protestos nos postos de gasolina contra os aumentos dos combustíveis? 

Será que os caminhoneiros estão no auge da indignação à beira de uma paralisação nacional?

A única coisa que realmente está acontecendo são os efeitos inerciais da necropolítica do Ministério da Saúde: nesse momento milhares de pessoas pelo País na fila morrendo à espera de vagas em UTIs; além de uma suposta “campanha de vacinação”, com muito mais imagens motivacionais nos telejornais mostrando velhinhos sortudos em drive-thrus do que flagrantes de uma efetiva imunização em massa.


Mourão: "Lula não vai vence a eleição"


Além da escalada do desemprego e estagnação econômica que a grande mídia e o ministro da Economia Paulo Guedes colocam na conta da pandemia: “e economia até dava sinais de recuperação mas...”.

A críptica (e sombriamente enfática) declaração do vice general Mourão de que “Lula não vai ganhar a eleição porque é um político velho” é um dos sinais nada sutis de que a correlação de forças no tabuleiro do xadrez continua a mesma, desde 2016. A única diferença foi o governo de ocupação que assaltou o Estado a partir de 2018: os peões militares tomram de assalto ministérios, cargos comissionados, postos estratégicos e cargos civis – algo em torno de seis mil militares.

A decisão do ministro Fachin não significou apenas “livrar a cara de Moro” ou criar um “Mandela libertado” como regozija a esquerda, agora de ânimo renovado.  Dentro do xadrez da guerra semiótica (uma guerra por procuração, de tal maneira que o jogo de percepções tão contraditórias faça o inimigo agir involuntariamente a favor do seu próprio adversário) a “libertação” de Lula deve ser compreendido no âmbito dessa correlação de forças que se mantém inalterada e forte. Compreendida em três níveis, saindo de um tabuleiro bidimensional para o tridimensional: os níveis do Real, do Imaginário e do Simbólico.

A princípio, nada a ver com a tríade da psicanálise lacaniana... pelo menos, a princípio.




(a) Real

Em 2014 o ministro do STF, Ricardo Lewandowski, no auge dos bombardeios da guerra híbrida, foi profético: “o século XXI é o século do Poder Judiciário”. Com seus movimentos em pinça, o judiciário pavimentou o caminho do “golpe de veludo” de 2016 e o golpe militar híbrido de 2018.

Logicamente, o único movimento político até aqui não veio das ruas, protestos ou de algum desafio mais agudo a atual hegemonia política: veio da judicialização da política através de uma muito bem montada mise-en-scène de Fachin e da sessão da Segunda Turma do STF. 

Um drama de ação e suspense, adiado para o próximo capítulo: o lavajatista Fachin faz o movimento “vão-se os anéis, ficam os dedos” para proteger o amigo Moro; Gilmar Mendes, auto rogando-se insuspeito por ser ali o único não indicado pelo PT, dispara contra a promiscuidade da grande mídia e narra os diálogos comprometedores dos procuradores da Lava Jato... tão veemente que supostamente teria “balançado” Carmen Lúcia que sinalizou mudar o seu voto para a favor da suspeição de Moro... e quando tudo levava para o desfecho final, o ministro Nunes Marques suspende tudo ao pedir vista e pedir “mais tempo” para entender tudo...

E para aumentar o suspense, mais um plot-twist: de repente, o “garantista” Marco Aurélio de Mello sentencia: “Não podemos, a esta altura da vida judicante, execrar o juiz Sergio Moro. Ele tem uma folha de serviços prestados ao país”. E sinaliza que a decisão de Fachin será revista em Plenário.

Por que todo esse suspense? Claro que há a questão da vaidade e a pompa da circunstância por saberem que estão na mira da grande mídia dando audiência e, por isso, a compulsão em “encher linguiça” do melodrama canastrão.

Mas há também a lógica estratégica: primeiro, lançar o balão de ensaio e ver as reações de todos os lados. Segundo, e principalmente, realizar o objetivo principal da judicialização da política: o domínio total de espectro - manter a estratégia de soltar e apertar o torniquete de Lula e das esquerdas.

Em outros termos: novamente criar o fantasma da inelegibilidade de Lula e repetir em 2022 o mesmo cenário de 2018. Porém, com uma expectativa: de uma vez por todas, manufaturar alguma “grande esperança branca” de Centro como alternativa à “polarização populista” bolsopetista.

(b) Imaginário

 Desde que as placas tectônicas se movimentaram na segunda-feira, durante toda o restante da semana a grande mídia explorou o imaginário da “libertação” do líder petista criando três Lulas imaginários. O objetivo óbvio é estender para o plano do imaginário do xadrez a tática de apertar e soltar o torniquete do Judiciário.

De cara, tivemos o Lula raivoso, gesticulante, ameaçador e trajando vermelho nas imagens de arquivo para pontuar as matérias telejornalísticas. Depois, também imagens de arquivo, dessa vez com Lula prostrado, condenado, sendo conduzido por policiais federais. E, afinal, um redivivo “Lula Paz e Amor”: de “tom de estadista” a “quero conversar com os empresários”. 

Até a think tank do golpe, a jornalista Miriam Leitão, aceitou defender Lula, desde que não mexa com a política de preços da Petrobrás... 

Qual desses Lulas imaginários prevalecerá, dependerá do torniquete do Judiciário.




(c) Simbólico

Esse é certamente o plano mais abstrato, isto é, sistêmico, do xadrez da guerra semiótica. Para entendermos as extensões desse nível será necessário recorrer a dois marcos teóricos: a teoria da simulação de Jean Baudrillard e o conceito de sistemas tautistas de Lucien Sfez.

Para Baudrillard o sistema político transformou-se numa entidade autônoma, cujos signos se tornaram intransitivos. Direita/ Esquerda, Oposição/Situação seriam signos comutáveis, definidos não positivamente pelo seu conteúdo (representação do que é externo ao sistema: ideologias, História, luta de classes etc.), mas negativamente por suas relações distintivas no sistema -  esse seria o “grau zero da política”: o sistema precisa incessantemente simular a distinção entre os signos: conflagrações, crises, denúncias etc. Seu maior temor é a inércia: o desaparecimento de um dos pólos, o que levaria o sistema à entropia – leia BAUDRILLARD, Jean, Partidos Comunistas: paraíso artificial da política. Rocco, 1985.

Já demos esse exemplo em postagem anterior: Dilma não foi derrubada por suas virtudes ou defeitos. Simplesmente por que a esquerda no poder estava “dando certo”: nada mais fez do que maximizar das necessidades de reprodução do valor e do capital com o neodesenvolvimentismo, além de em muitos aspectos manteve a agenda liberal – precarização do trabalho, desindustrialização, jamais taxou grandes fortunas, nunca bateu de frente com bancos e agronegócios e manteve o País no curso de um exportador de commodities etc.

Se a esquerda estava “dando certo”, onde estava a oposição? Para quê Direita, se a “Esquerda” pode reproduzir otimamente o Capitalismo? Derrubar Dilma foi um imperativo simbólico: evitar a entropia do sistema político reestabelecendo a distinção sistêmica dos signos, através da ressignificação da Esquerda através do discurso do combate à corrupção: “roubalheira do PT”, “petrolão do PT” etc.

Sincronicamente, a “libertação” de Lula ocorre num momento em que, mais uma vez, o sistema político é incapaz de criar uma oposição – dessa vez contra Bolsonaro, principalmente depois que colocou as duas casas do Congresso no bolso.

Diante da crise econômica e a catástrofe necropolítica da pandemia estar dando cada vez mais na vista (a tentativa do jornalismo corporativo em passar o pano falando que Bolsonaro e Pazuello dão “declarações polêmicas” já não é mais suficiente para manter as aparências) o sistema político aproxima-se perigosamente da entropia.

Nada como devolver Lula ao tabuleiro do jogo, injetando energia no sistema, criando um thriller que promete muitos plot twist. Esse é o imperativo simbólico da volta de Lula, sob o aperto do torniquete do imaginário e do real – o Judiciário.

Em consequência, temos um sistema político tautista (tautologia + autismo), marco teórico de Lucien Sfez. Como um sistema fechado em si mesmo, intransitivo e apartado do mundo exterior, os únicos vetores que o põe em movimento são internos. O que parece ainda mais evidente nesse um ano completo de pandemia: isolamento social que nos coloca na situação de que as telas da comunicação espectral (Internet, redes sociais) e de irradiação (TV, rádio) são as nossas únicas “aberturas” para o mundo. Na verdade, apenas inputs e outputs do sistema político – leia SFEZ, Lucien, A Comunicação, Martins Fontes, 2007.

O tautismo do sistema político somente pode ser confrontado por ações externas – tomar as ruas, protestos, violência, ações anarquistas e formas de guerrilha anti-mídia cujas bombas semióticas são incapazes de serem assimiladas pela autodescrição que o sistema faz de si mesmo.

É quando o imperativo do deserto do real se sobrepões ao imperativo simbólico dos sistemas tautistas.

 

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