domingo, setembro 20, 2020

Curta da Semana: 'Lady Gaga: 911" - o esotérico airbag mental diante da morte


Basicamente a estética videoclipe consiste na passagem de significante a significantes (alusões, referências etc.), sem apresentar significados, criando jogo para as referências culturais presentes no repertório do espectador. Essa é a chave do sucesso da cultura pop:  a metonímia no lugar do aprofundamento de metáforas. O novo videoclipe de Lady Gaga, “911” (faixa do seu novo álbum “Chromatica”) confirma essa lógica, mas vai além ao aproximar a fórmula metonímica pop da linguagem freudiana dos sonhos e do fenômeno esotérico da “tela mental” criada no momento da morte – o “airbag” emocional criado pela mente como proteção diante do medo da morte, do mergulho no desconhecido. Dos filmes de Jodorowsky (“El Topo” e “A Montanha Sagrada”) o videoclipe pega inúmeros simbolismos cristãos, budistas, zen, magia negra, paganismo etc. E dos filmes “The Wave” e “A Passagem”, o tema do fenômeno da “tela mental” no momento da morte. Criando um final ambíguo: Lady Gaga foi ressuscitada pelos paramédicos ou está morta num limbo entre vida e morte?

Certa vez o cantor e pianista pop britânico Elton John revelou o segredo das suas composições de maior sucesso: segundo ele, o significado ou as mensagens das letras das músicas são colocadas em segundo plano na composição – o músico pensa em primeiro lugar na sonoridade e no ritmo das palavras que serão cantadas em inglês.  Para ele, ritmo e sonoridade são os elementos universais – o ritmo da música deve ficar em primeiro plano de tal forma que mesmo que o ouvinte não compreenda o inglês, a sonoridade não só das notas, mas dos próprios fonemas dos versos. As músicas são para serem ouvidas, e não entendidas.

Traduzindo em termos semióticos, a chave do sucesso pop de Elton John está principalmente na abordagem metonímica da música, deixando as metáforas poéticas dos versos, estrofes e refrão em um plano inferior.

Essa de resto é a chave do sucesso de toda a cultura pop: privilegiar os deslocamentos metonímicos (os efeitos de contaminação das montagens, bricolagens, pastiches etc.), muito mais do que simbolismos ou metáforas. 

A estética videoclipe, criada pela MTV em 1980, apenas elevou essa técnica descrita por Elton John ao paroxismo: basicamente, um videoclipe é a passagem de significante a significantes (alusões, referências etc.), sem apresentar significados, deixando todo o jogo para as referências culturais presentes no repertório do espectador.


Isso é superficialidade estética num negócio tão efêmero como o da indústria do entretenimento. Porém, às vezes os deslocamentos metonímicos podem ser muito mais do que isso, e se transformar num inusitado recurso criativo: a metonímia pode criar também significados.

Com o seu novo videoclipe 911, Lady Gaga está de volta com suas travessuras visuais confusas e surreais como nos trabalhos anteriores Telephone ou Bad Romance

Oitava faixa do seu mais novo álbum, “Chomatica”, o videoclipe é de arregalar os olhos, começando com Gaga acordando no meio do deserto em meio a romãs e enormes dunas e se aventurando em direção a um pequeno vilarejo ao som do interlúdio orquestral “Chromatica II”. Quando a música “911” entra em ação, é desencadeada uma série de vinhetas surreais com as quais Gaga interage com uma variedade de personagens estranhos, com trajes elaborados com inúmeras referências artísticas (Renascimento, Barroco, Gótico etc.) religiosas, pagãs, esotéricas e assim vai... rápidos e alucinantes deslocamentos metonímicos.



Referências cinematográficas

Desde o primeiro quadro do videoclipe, fica explicita a referência de três filmes que estruturam a narrativa: o primeiro, A Cor da Romã, de 1968, do diretor armênio Sergei Parajanov – desse filme, o videoclipe pega a frontalidade dos planos e a hipnótico vermelho abundante, presente nas vestimentas rituais, nos adornos que ajudam a deflagrar o estilo predominante e no sangue dos animais sacrificados. 

Em seguida, as referências a dois filmes do diretor franco-chileno Alejandro Jodorowsky: El Topo (1970) e A Montanha Sagrada (1973) – desses filmes 911 absorve a sucessão de alegorias a Jung, Freud, misticismo, esoterismo, mitologias bíblicas e herméticas. Um quebra-cabeça místico, simbólico e religioso dispersos em diversos elementos cristãos, budistas, zen, magia negra, paganismo.

O videoclipe 911 absorve esse, por assim dizer, truque de Jodorowsky: o espectador avidamente tenta encontrar um significado – o que quer dizer aquelas romãs? E aquela mulher chorando embalando uma múmia? E aquela madonna negra com uma serpente? E assim por diante.

Mas, assim como Jodorowsky, 911 não se interessa em desenvolver lições filosóficas, mas em construir efeitos misteriosos no espectador com a sucessão dos enquadramentos frontais, cada um repleto de personagens enigmáticos que parecem condensar simbolismos. O videoclipe está mais interessado em criar uma linguagem onírica sem significados. Puro gozo estético que se confunde com experiência mística.

O airbag e a tela mental

Porém, 911 não é um mero jogo estético para fazer o espectador se perder no labirinto que acumula simbolismos em cada canto do enquadramento. O vídeo de cinco minutos segue uma experiência alucinante depois que o personagem de Lady Gaga quase morre em um acidente envolvendo um carro – após aos deslocamentos metonímicos de alegorias e simbolismos, muitos detalhes emergem dando sentido à reviravolta final do videoclipe.

A torção narrativa final de 911 estrutura-se em duas secretas referências cinematográficas: o filme The Wave (2019) e A Passagem (Stay, 2005). Que apontam para um final mais sinistro do que a sugestão superficial de um final feliz.



Todos os personagens e os menores detalhes das paisagens surreais da primeira parte do vídeo tem suas raízes na “realidade” – a cena do acidente em frente a um cinema no qual está passando um festival de filmes romenos (alusão  ao filme A Cor da Romã): os paramédicos que a revivem; o cavaleiro vestido de preto que ela vê no deserto reaparece num anúncio do Parque Nacional White Sands, Novo México (a própria bandeira do Estado figura no vilarejo da primeira parte); os olhos vendados de Lady Gaga guarda semelhança estética com os bombeiros presentes no local do acidente; 

A tornozeleira vermelha em Gaga associa-se ao tornozelo quebrado do final; os dois personagens que guiam Gaga em sua alucinação são os paramédicos – na alucinação flutuam no céu usando um guarda-chuva, enquanto na vida real chegam em um helicóptero; a mulher que bate a cabeça repetidas vezes no travesseiro é na verdade o motorista com um ferimento na cabeça que repousa sobre a direção.

O filme The Wave parte do princípio de que a mente criaria uma espécie de airbag emocional no momento da morte: durante o mergulho para o desconhecido, o cérebro criaria uma tela mental para amenizar o medo da morte. Todos os elementos reais da cena agonizante seriam absorvidos pela percepção e reutilizados na criação de uma nova narrativa nessa tela mental que criaria uma intensa experiência imersiva.

O outro filme, A Passagem, detalha esse processo onírico: o protagonista Henry está em uma espécie de limbo entre a vida e a morte, resultante de um acidente de carro. 

Todas as pessoas ao redor dele após o acidente na ponte do Brooklin são inseridas na sua alucinação ou através de alguma particularidade que tenham falado, ou pela ordem de chegada ao local do acidente ou, inclusive, até pelo ponto de vista que Henry (ela está deitado no chão) tem das pessoas.

Por exemplo, as calças do psiquiatra Sam Foster que o atende em seu universo onírico são estranhamente curtas. Pois é assim Henry vê Sam, pela primeira vez, curvado sobre ele para ajudá-lo. Ao fazer isso, a barra da calça é puxada para cima.



Esse “airbag emocional” guarda todas as semelhanças com a chamada “teoria das sentinelas” de Freud, apresentado na abertura da “Interpretação dos Sonhos” - os sonhos possuem elaborados mecanismos de proteção do sono contra fatores perturbadores internos (desde dores de cabeça ou preocupações) ou externos (barulhos de trovões ou sons de relógios despertadores).

Por exemplo, se o despertador toca é muito comum o sonho disfarçar a campainha de alarme, tecendo com ela uma história qualquer...Você está na igreja, com os sinos tangendo; ou então num escritório, onde um telefone estridente reclama que o atendam". Dado o estímulo, o sonho cria o cenário, fornece atores e adereços para as cenas, tudo isso extraído das experiências e impressões do dia-a-dia de quem está dormindo.

Se o argumento de 911 se baseia nesse “airbag emocional” criado pelo cérebro no momento da morte, talvez o final do videoclipe não seja nada feliz: na verdade Lady Gaga não foi ressuscitada pelos paramédicos – ela continua morta. 

Principalmente pelo zoom out final, mostrando a cena do acidente em plano geral: a cena é visivelmente estilizada. Não é uma rua real. Parece querer alertar ao espectador a natureza cenográfica ou artificial da cena. Como se o artificialismo da cena do acidente fizesse parte do jogo metonímico da mente moribunda de Lady Gaga – ela tenta estender a narrativa onírica iniciada no começo do videoclipe.

Do começo ao fim acompanhamos as alucinações de uma mente agonizante, resistindo em aceitar a própria morte.


  

         

Ficha Técnica 

Título: 911 (videoclipe)

Diretor: Tarsem Singh

Roteiro: Tarsem Singh

Elenco: Lady Gaga, Mazen Shehabi, Jessus Zambrano, Sai Zami

Produção: Interscope Records

Distribuição:  Vevo

Ano: 2020

País: EUA

 

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