terça-feira, outubro 01, 2019

Seminário internacional "Democracia em Colapso?" ignora Ciência da Comunicação


Ativistas, sociólogos, filósofos, cientistas políticos e psicanalistas participam do Seminário Internacional “Democracia em Colapso?”, que ocorrerá em outubro no Sesc Pinheiros, em São Paulo. Discutirá as perspectivas históricas e políticas da democracia atual. A oportunidade do seminário é obviamente o cenário atual da ascensão da chamada “direita alternativa” - Brexit, Trump, Bolsonaro etc. Mas há um sintoma nesse evento: a ausência de pesquisadores da área da Ciência da Comunicação. Se a questão da Comunicação está no centro das crises das democracias atuais (a forma como, através da manipulação das novas mídias, plataformas e dispositivos de convergência de maneira relacional e fática, pegou de surpresa todo o espectro político), causa espanto a ausência da pesquisa em Comunicação no evento. Certamente a Comunicação entrará nos debates. Porém, será sempre uma “sociologia da comunicação”, “filosofia da comunicação” ou uma “psicanálise da comunicação”. A Comunicação analisada “a posteriori”, sem entender o fenômeno como evento autônomo e silencioso. Que passa à margem da representação. É o sintoma de que a esquerda ainda não entendeu a centralidade dos fenômenos comunicacionais na atualidade. 

Permita-me leitor, mais uma vez, narrar um fato histórico que para esse humilde blogueiro é o marco inicial (quase a “cena primitiva” da qual falava Freud) da relação problemática da esquerda com a Comunicação.
Certa vez em 1933, no Palácio dos Esportes em Berlim, um pouco antes da vitória de Hitler, dois propagandistas, um comunista e outro nazista, discursaram. O aparentemente gentil nazista insistiu que o comunista tomasse primeiro a palavra. O que o comunista sentiu como uma distinção, e começou a falar: aí veio um discurso recheado com as partes mais complicadas de O Capital sobre “contradição principal”, “taxa de lucro média” e cada vez mais cifras. O público nada entendia e assistia entediado. No final, aplausos entre regular e fraco.
Então, aparece o nazista. E foi fulminante: “quando vocês trabalham no escritório o que os Srs. e Sras. fazem o dia inteiro? Escrevem números, somam, subtraem! E o que os Srs. ouviram do Sr. orador que me antecedeu? Números e mais números. De tal forma que a frase do nosso Führer encontrou uma confirmação inesperada: comunismo e capitalismo são os dois lados de uma mesma moeda”. Então, fez uma pausa bem estudada e emendou: “Eu, porém, falo a você de uma incumbência mais alta...!”.
Oitenta anos depois ainda há atualidade nessa armadilha no qual o ingênuo propagandista comunista caiu – o ardil nazista permanece: a forma como a práxis da extrema-direita está não só atenta à comunicação, mas, principalmente, à sua evolução tecnológica. Lá no passado, o rádio e o cinema. Depois a teledifusão. E hoje redes sociais, big data, criação de climas de opinião e espiral do silêncio.
Enquanto isso, mal e mal a esquerda começa a compreender qual foi a dinâmica através da qual o rádio e o cinema conquistaram de corações e mentes há quase cem anos. 



Ciência política, Sociologia, Filosofia (e algumas vezes a “heresia” do marxismo não ortodoxo da linha freudomarxista – que a extrema-direita chama de “marxismo cultural”) são os campos para a onde a esquerda preferencialmente recorre para buscar suas ferramentas de análise de cenários e conjunturas. E orientar sua práxis política.


Cadê a Ciência da Comunicação?

Por isso é sintomático que o “Seminário Internacional Democracia em Colapso?” (composto por curso e ciclo de debates sobre “possibilidades e limites do conceito de Democracia na atualidade”), e que acontecerá no Sesc Pinheiros/SP em outubro (clique aqui), tenha como grandes estrelas convidadas ativistas, sociólogos, filósofos, cientistas políticos e psicanalistas: Angela Davis, Sílvia Fredereci, Michael Löwy, Patrícia Hill, Marilena Chauí, Maria Rita Kehl entre outros autores e pesquisadores. 
O sintomático é que não há nenhum pesquisador da área da Ciência da Comunicação.
Está claro que a oportunidade de um ciclo de debates que venha discutir o possível colapso do conceito de Democracia venha da atual escalada da chamada “direita-alternativa” (“alt-right”) e a onda neoconservadora que varre as democracias ocidentais. 
Por isso, de início, o Seminário parece se ressentir de um problema epistemológico e metodológico: para além dos vetores sócio-econômico-psíquicos que configuraram o cenário que o Seminário discutirá (o possível colapso do conceito de Democracia), é inegável que o fator que catalisou  ou que deu uma tradução política a esse cenário foi a Comunicação – seja no aspecto retórico ou discursivo ou na nova função assumida pela propaganda nas mídia de massas num cenário das mídias de convergência e dispositivos móveis.
Da guerra híbrida da geopolítica norte-americana nesse século que acendeu o rastilho das primaveras e revoluções coloridas em todo o planeta (e que ainda não terminaram) aos algoritmos da Cambridge Analytica, passando pelo gênio computacional de Robert Mecer e também pela psicometria e mineração de Big Data de Michal Kosinski (Universidade de Cambridge), além da coordenação do estrategista Steve Bannon (ex-produtor de Hollywood) e Dominic Cummings (coordenador da campanha do “Vote Leave” no Reino Unido), estiveram onipresentes as novas estratégias de comunicação da “direita alternativa”.
Com essas ferramentas conseguiram explorar as fraquezas e os flancos das atuais sociedades democráticas.
Por isso, causa espanto para este humilde blogueiro um Seminário dessa natureza que parece passar longe da questão da comunicação na política. Apesar de todas as pesquisas e bibliografia recentes (sem falar na filmografia como Brexit: The Uncivil War ou a série Black Mirror) que veem alertando para as transformações estruturais da Política e da esfera de opinião pública provocadas pelas transformações tecnológicas e midiáticas.

Série "Black Mirror": "Waldo Moment", comunicação e política

Comunicação a posteriori

É impossível na atualidade discutir a dinâmica de conjunturas políticas sem ter as mídias como uma espécie de horizonte de eventos que circunscreve e dá sentido aos movimentos políticos. Porém, como apontado, há uma questão metodológica ou epistemológica que certamente limitará um evento que não conta com sequer um único pesquisador na área da Comunicação.
Eventualmente os debates dos sociólogos, filósofos e cientistas políticos convidados abordarão o tema da Comunicação. Certamente serão tratados os episódios recentes e mais conhecidos que ameaçam a lisura de qualquer processo democrático, como a viralização das fake news, o monopólio midiático, manipulação das notícias, deep fakes, o fenômeno das bolhas virtuais e polarização etc.
Mas, o que é epistemologicamente decisivo, serão sempre análises a posteriori. Farão sociologia da comunicação, psicologia ou psicanálise da comunicação, filosofia ou análises políticas da comunicação. Mas nunca Ciência da Comunicação.
A questão é que as ciências sociais estudam a comunicação confundindo-a com fenômenos de ordem diversa como a sinalização e a informação – na sinalização, estudamos as estratégias de sedução, convencimento ou a criação de signos distintivos para chamar a atenção. E na informação dá-se o plano da escolha dos signos que reforça um repertório pré-existente criando efeitos de agendamento ou espiral de silêncio na opinião pública.
Porém a Comunicação está ontologicamente próxima da noção de acontecimento – provoca uma crise, altera a vivência. Um fenômeno que só pode ser estudado no instante da sua recepção, presença e interação. Jamais a posteriori – Leia MARCONDES FILHO, Ciro, O Princípio da Razão Durante – O conceito de comunicação e a epistemologia metapórica, São Paulo: Paulus, 2010.
Se o Seminário pretende também especular sobre as possibilidades da Democracia na atualidade não deveria esquecer que a comunicação é essencialmente práxis (a prática no aqui e agora, conceito bem caro ao marxismo), como bem compreende a extrema-direita há quase um século:  assim como a propaganda nazi aplicou na prática todas as ferramentas da linguagem do cinema descobertas de Griffith a Eisenstein e Vertov naquele momento, também Mecer e Kosinski aplicaram na política os algoritmos que fizeram a fortuna da Renaissance Technology no mercado financeiro ao antecipar tendências de títulos e ações.

Engajamento e Gamecracia:apps Obama, Anonymous, PTinder

Comunicação e engajamento

Enquanto a extrema-direita a priori experimenta as tecnologias disponíveis em cada época, a esquerda sempre estuda seus efeitos a posteriori. E daí faz sociologia, filosofia ou psicologia da comunicação, mas nunca aborda o acontecimento pela Ciência da Comunicação.
A esquerda estuda as formas de comunicação em grande escala (a irradiação televisiva, meios visuais urbanos, e até mesmo a internet), ficando restrita na esfera difusa e incerta do contínuo midiático atmosférico. Enquanto isso, a extrema-direita cria acontecimentos comunicacionais (repercussão, viralização e engajamento) por meio de mídias sociais e até mesmo aplicativos.
Veja o caso do ativismo do grupo Anonymous associado ao hacktivismo no qual o engajamento não é ideológico político, mas fático e relacional por meio de plataformas como aplicativos: política deixa de ser estética (como na seminal propaganda nazi) para tornar-se game, gamecracia – sobre isso clique aqui.
No acontecimento comunicacional a narrativa (seja estética, como no cinema; seja política, como no engajamento pelas mídias de convergência) acaba coincidindo com a jornada pessoal do usuário – seus temores, expectativas, ou mesmo paranoia, ressentimento etc.
Pode parecer algo frívolo, supérfluo ou mesmo alienado, mas iniciativas como o PTinder (um aplicativo de relacionamentos para usuários de esquerda) vai de encontro à própria ontologia da comunicação, como acontecimento fático, relacional. Consegue traduzir tecnológica e comunicacionalmente o slogan “ninguém solta a mão de ninguém”, viralizada após a vitória eleitoral de Bolsonaro.
Aplicativos e plataformas relacionais é um novo campo de ação política, desde o aplicativo especialmente desenhado para a campanha de Barack Obama em 2008.
Então, porque um evento dessa magnitude como o Seminário Internacional “Democracia em Colapso?” parece subestimar a Ciência da Comunicação, apesar do gatilho da crise das democracias ocidentais ter sido acionado pelos acontecimentos comunicacionais?


Três hipóteses:
(a) As ciências sociais não reconhecem a autonomia do objeto da Ciência da Comunicação. Portanto, os fenômenos comunicacionais só podem se tornar tangíveis, mensuráveis ou quantificáveis se forem traduzidos pelo quadro conceitual da sociologia, antropologia, filosofia, psicologia etc.;
(b) Falar em “guerra híbrida”, hacktivismo, algoritmos, as conexões Robert Mecer e Steve Bannon com Renaissance Technology ou Cambridge Analytica é muita “teoria da conspiração” para respeitáveis pesquisadores e eminentes acadêmicos;
(c) Para as análises cujo referencial é o materialismo histórico marxista, os fenômenos comunicacionais não passariam de epifenômenos ou representações fantasmáticas da esfera da infra-estrutura – o campo dos movimentos concretos de dominação e exploração das relações sociais de produção. Em primeiro lugar deve ser compreendida as “condições objetivas da história”, a lógica infra-estrutural.
 E só depois, enfrentar as manipulações, ciladas e seduções da comunicação política. Como? Através de muitas denúncias, voluntarismo e resistência. 
Essa é a zona de conforto da esquerda.

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