quarta-feira, outubro 16, 2019

Capitalismo gore: o diálogo necessário entre "O Clube dos Canibais" e "Bacurau"



O filme cearense “O Clube dos Canibais” (2018), de Guto Parente, facilmente dialoga com o celebrado “Bacurau” – são produções nordestinas que, além de incursionarem no cinema de gênero, refletem o atual cenário de crise política e social brasileira. Mas diferem-se pela utilização da fórmula do maniqueísmo, essencial no gênero fílmico gore e exploitation. Se em Bacurau a luta de classes cede lugar a figura do político como inimigo de uma comunidade e que facilita as coisas para o necroturismo, em “O Clube dos Canibais” temos a luta de classes no próprio cotidiano de trabalho e sobrevivência dos subalternos – o dia a dia de dominação e exploração pode terminar no pior: o explorado servir de prato do dia na mesa dos ricos. Um clube exclusivo formado por capitães da indústria, empresários de finanças e donos de empresas de segurança transforma a exploração e a desigualdade na sua literalidade: explorar significa conjugar de inúmeras maneiras e sentidos o verbo comer.

Há um forte traço de “fixação oral” (relativa à fase oral freudiana, o primeiro estágio do desenvolvimento psicossexual humano) no psiquismo brasileiro. Há uma variedade de expressões que demonstram essa fixação como as misóginas “comer a mulher” ou “mulher gostosa” ou as políticas como “mamar nas tetas do Estado” ou definir seja um ato corrupto ou um negócio fácil como “mamata”, “batata”, “isso aí é mamão com açúcar”, “melzinho na chupeta” etc.  Entre inúmeras outras expressões que demonstram de que há algo de não resolvido ou regressivo nesse estágio psicossexual no brasileiro.
Relações de poder e desigualdade parecem também impregnadas por essa fixação psíquica: explorar ou se aproveitar do outro como fosse “comê-lo”, num claro complexo simbólico formado pela mescla entre oralidade, sexualidade regressiva (sádica) e política – a questão não é busca de algum consenso, mas como “se dar bem” no sentido de busca de uma satisfação oral.
Claro que essa, por assim dizer, “oralidade” cultural já foi elaborada de uma forma mais progressiva como no movimento artístico antropofágico de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral no qual a antropofagia cultural (pegar e digerir o que vem do exterior) é impulso criativo.



O filme cearense O Clube dos Canibais (2018) vai direto ao ponto regressivo das variadas formas de conjugar o verbo “comer”. Tema que somente poderia ser tratado através do gênero “gore”: como a elite rica converte as relações de exploração na sua literalidade – de fato, os mais ricos literalmente comem os pobres.
Esse é o oitavo longa de Guto Parente, ativo diretor que cultiva o cinema de gênero – O Estranho Caso de Ezequiel (2016), A Misteriosa Morte da Pérola (2014), Doce Amianto (2013).
O mau gosto e a vulgaridade da elite são sintetizados no próprio local onde ocorrem grande parte das ações: uma imensa casa em frente ao mar, isolada do exterior por grandes áreas envidraçadas e que não funciona sem ar condicionado. A alegoria de uma elite predadora, sem a mínima noção de sustentabilidade – além de comer os pobres, devora os recursos ambientais.


Apesar de Guto Parente privilegiar uma narrativa de gênero, o filme não cai no maniqueísmo fácil ou no lugar comum midiático da depreciação da política – a exploração perpetrada por políticos que enriqueceram através da corrupção que explora o povo brasileiro. Não, aqui a corrupção e a exploração estão entranhadas na elite empresarial, financeira e de negócios. Ou seja, nas próprias relações sociais assimétricas sobre as quais funciona o capitalismo.
O filme até figura um político corrupto, mas ele é meramente uma peça da engrenagem para facilitar os negócios de uma classe dominante empresarial.
Por isso, O Clube dos Canibais facilmente dialoga com o aclamado Bacurau. Além de ambos serem produções nordestinas que refletem o atual cenário político nacional e internacional de guinada à extrema-direita (e também incursões pelo cinema de gênero), diferem-se pela utilização da fórmula maniqueísta, essencial no gênero gore e exploitation
Se em Bacurau a luta de classes cede lugar a figura do político, o prefeito corrupto Tony Jr., inimigo da comunidade e que facilita as coisas para o necroturismo dos mercenários norte-americanos, em O Clube dos Canibais o conflito está no próprio cotidiano de trabalho e sobrevivência dos subalternos – o dia a dia é de dominação e exploração e que pode terminar no pior: o explorado servir de prato do dia na mesa dos ricos. 
Aqui o maniqueísmo de gênero ganha novas matizes: exploração e canibalismo ao lado dos pobres que são seduzidos pelo poder, dinheiro e sexo dos ricos.


O Filme

A abertura do filme revisita a clássica cena de pornochanchada: um caseiro bem viril limpa a piscina enquanto a patroa, em pose lasciva, toma um banho de sol de biquíni enquanto sorve um drink. Previsível troca de olhares antevendo o que está por vir. O marido avisa o caseiro que terá de viajar por uns dias e ela, mais do que depressa, convoca o subalterno para sua cama. Para o infeliz caseiro terminar com uma machadada na cabeça antes do ápice da transa, desferida pelo patrão depois que ele ficou observando o ato numa forma de prazer voyeurista.  
Corta depois para o casal desfrutando um jantar romântico com um fricassê da carne do pobre caseiro. 
Otávio (Tavinho Teixeira) e Gilda (Ana Luiza Rios) vivem no luxo indolente em sua casa de praia envidraçada. Ele, um empresário proprietário de uma firma de segurança privada. E ela, uma dondoca descolada que partilha com o marido o gosto pelo canibalismo... de empregados.
Seu único aborrecimento é ter que partilhar o seu marido com reuniões secretas noturnas para as quais Otávio é seguidas vezes convocado. Um clube exclusivo formado por capitães da indústria e da riqueza financeira e local. Além de discutirem negócios, o ápice é assistirem a vários atos sexuais de modelos negros contratados. Para depois, os infelizes copuladores terminarem mortos e sua carne servida nos pratos de um requintado jantar.
 Nas reuniões, discute-se a manutenção da ordem, o respeito à família e a moralidade dos cidadãos de bem. E a necessidade de combater os “inimigos” que querem perturbar aquele delicioso status quo.


Borges (Pedro Domingues) é o político local que azeita a máquina do Estado para favorecer os negócios (comerciais e privados) daquela elite abastada. Ele também preside aquele clube bizarro.
O problema começa em uma das inúmeras festas promovidas pelo clube: sem querer, Gilda flagra Borges (um colérico defensor da moral, tradição e família) num ato sexual homo-afetivo com um caseiro da sua mansão.
A partir dessa descoberta involuntária, a paranoia começa a dominar o casal Otávio-Gilda: um membro do clube recentemente sofrera um “terrível acidente”. Otávio teme que essa descoberta de sua esposa também poderá mata-los em outro “acidente”.
O casal briga, se desentende, mas não larga seu hábito de explorar e comer seus empregados. Recorrem sempre a uma agência de empregos para escolher seu próximo prato, digo, empregado! Exigem que tirem fotos dos candidatos seminus, para apreciarem e escolher melhor a “matéria-prima”.
Os temas de O Clube dos Canibais e Bacurau convergem: são narrativas sobre membros da elite que matam por puro prazer, seja por esporte ou por, digamos, requinte gastronômico – não basta apenas explorar a mais-valia, é necessário também devorar o explorado!


Servidão voluntária

Guto Parente afirmou que a ideia do filme surgiu quando descobriu o livro “O Maior Crime da Terra”, de Décio Freitas, sobre um casal gaúcho do século XIX que fazia linguiças com os corpos das vítimas. “Comecei a trabalhar nisso e, em 2015, com o agravamento da situação política, a questão social ficou ainda mais relevante. Me senti atravessado pela crise”, explicou Guto Parente.
  Por isso quis traduzir essa angústia política através dos cânones de gênero fílmico: o gore e o exploitation. 
Acredito ser nesse ponto que reside a principal diferença entre Bacurau e O Clube dos Canibais: no tratamento dado a atual angústia diante da crise brasileira. Ambos são abordagens alegóricas, porém Bacurau incorre ao lugar comum do político corrupto como leitmotiv de toda a narrativa – Tony Jr., o político sem caráter e corrupto que agenciou o necroturismo para oportunamente se livrar dos desafetos que vivem naquele povoado.


Enquanto O Clube dos Canibais é mais incômodo: vemos o capitalismo gore no cotidiano – na agência de empregos, no trabalho cotidiano de caseiros, seguranças e empregados. A figura do “político corrupto” é deslocada para a “elite canibal”. E também como os subalternos são seduzidos e fascinados pela ostentação dos poderosos. Ou seja, é o próprio psiquismo da servidão voluntária.
O surpreendente em O Clube dos Canibais é que é parece ir mais além da crítica social da exploração de classes no capitalismo: por assim dizer, existiria um fator psicossexual brasileiro não resolvido – as formas de exploração econômica se confundirem com as maneiras mais abusivas de perversão e exploração sexuais. A ideia de “comer” no mais amplo espectro de conotações: seja sexual, econômica, ambiental e... canibal.
Se Bacurau concentra-se nos aspectos morais (o preconceito contra os nordestinos naquele grupo de turistas mercenários e no político sem caráter), em O Clube dos Canibais o horror está na própria estrutura da reprodução da desigualdade. Pouco importa o caráter ou moralidade de políticos ou empresários. Se estão ocupando seu papel na engrenagem, deve respeitá-lo. Sob o risco de também serem eliminados pelo “Clube”.
Bacurau direciona a crítica contra imorais. O Clube dos Canibais, contra amorais.
Desculpe o trocadilho, mas o maniqueísmo de O Clube dos Canibais não é fácil ser digerido. Associa-se ao pessimismo do documentário de Petra Costa Democracia em Vertigem (2019): após séculos parasitando o Estado brasileiro desde o seu início, da elite não podemos esperar nada, a não ser a sua queda.


Ficha Técnica 


Título: O Clube dos Canibais
Diretor: Guto Parente
Roteiro: Guto Parente
Elenco: Tavinho Teixeira, Ana Luiza Rios, Pedro Domingues, Rodrigo Capistrano
Produção: Tardo
Distribuição: Olhar Distribuição
Ano: 2018
País: Brasil

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