Um sapo pula em uma piscina cheia de detritos. Logo se juntam outros sapos que exploram uma mansão aparentemente abandonada. Enquanto acompanhamos os batráquios curiosos explorando a cozinha, quartos e jardim, percebemos que há algo mais: por todos os lados há indícios de que algo sinistro aconteceu ali. O curta de animação indicado ao Oscar de 2018, “Garden Party” (2017) foi um trabalho de conclusão de curso de uma escola de cinema francesa. Produção surpreendente: hilária e com refinado humor negro – incita o raciocínio semiótico indutivo do espectador além do argumento se inspirar na simbologia arquetípica dos sapos: a grande cadeia simbólica água-noite.
Quem conta essa história é o site Videomaker, num artigo sobre o curta francês Garden Party. Depois de dois críticos do site assistirem a uma dúzia de curtas do SIGGRAPH (Festival de Animações por Computador), chegou a vez do curta metragem Garden Party: uma produção de sete minutos, hilária, vívida e detalhada. Surpreendente!
Quando terminou, John (um cínico amigo dos críticos) virou-se para os dois e disparou: “vamos embora!”. Quando questionado do porquê não deveriam ficar até o final do Festival, ele disse: “porque não há como ver alguma coisa melhor do que isso. Continuar aqui seria anticlimático”.
Ao saírem do Festival, John ainda disse: “Se esse curta não ganhar o Oscar, ficarei surpreso!”.
E John ficou. Naquele ano de 2018, Garden Party (2017) havia sido indicado para o Oscar de melhor curta de animação. Quem acabou levando a estatueta foi o curta norte-americano Dear Basketball. Também pudera: apesar do curta ser original, incomum, muito detalhado e provocativo, possui um senso de humor excessivamente sombrio para a ideologia motivacional que orienta a premiação da Academia de Cinema.
A trajetória de Garden Party foi meteórica: de um trabalho de conclusão de curso realizado por grupo de seis estudantes (que mais tarde formaria o coletivo conhecido como “Illogic”) da MOPA (Escola de Cinema de Arles, França), levou vários prêmios pelos festivais mais famosos do mundo até ser indicado ao Oscar. Com um custo praticamente zero – tudo foi produzido nos laboratórios da escola.
O Curta
O curta acompanha um grupo de sapos enquanto eles exploram os jardins e cômodos de uma mansão aparentemente abandonada. Eles são curiosos e hilariamente propensos a acidentes. Incrivelmente texturizado e com um CGI incrivelmente fotorrealista, este curta está bem acima de outros equivalentes do gênero: evita cair no lugar comum do antropomorfismo, misturando os impulsos instintivos dos anfíbios com uma deliciosa e sombria subtrama em processo.
O filme começa com um pequeno sapo pulando em uma piscina cheia de detritos. Aos poucos vamos sendo apresentados a mais sapos, e vamos recebendo pistas sobre o porquê aquela mansão está abandonada – a comida está posta nas mesas e apodrecendo, buracos de bala numa câmera de vigilância, o detalhe de uma porta cuja fechadura foi forçada. Evidentemente houve algo sinistro.
No entanto, os sapos perambulam sem se importar, devorando a comida e explorando de forma cômica cada recôndito.
A grande virtude de Garden Party é a escolha dos protagonistas: sapos – sua rigidez e comportamento binário torna-os inerentemente cômicos. Há algo de intrinsicamente engraçado: colocar animais inocentes que apenas seguem seus instintos ao lado de coisas caras e valiosas humanas – carro esportivo, tecidos de cetim, a cozinha abarrotada de confeitos e compotas etc.
E na medida em que cresce a curiosidade dos pequenos animais, também cresce a curiosidade do espectador: a partir dos signos indiciais profusamente espalhados em cada traquinagem dos sapos, vamos tentando montar a cena anterior que resultou naquele caos e abandono.
Semiótica e magia
Portanto, Garden Party incita o raciocínio semiótico indutivo do espectador – tal como na ciência, começamos pela observação dos dados particulares, do sensível, para chegarmos a uma verdade mais geral. São sete minutos de um lento processo de construção de sentido a partir de signos indiciais habilmente espelhados pela narrativa.
Signos indiciais são aqueles que são produzidos por aquilo que eles significam. Por exemplo, a fumaça representa de forma indicial o fogo. Os índices são signos que estão entre a natureza e a cultura: tanto animais como humanos se orientam por meios de de cheiros, rastros, pegadas e as diversas sinalizações do meio ambiente – umidade, calor etc.
A compreensão do índice é o momento em que a Natureza deixa de ser simples caos e passa a ter padrões, recorrências, sentido enfim.
Essa é a primeira ideia latente em Garden Party: a vida humana acabou naquela mansão que começa a ser dominada pela Natureza, lembrando a série do History Channel O Mundo Sem Ninguém (Life After People, 2009-10) – o que aconteceria se o ser humano desaparecesse da face da Terra? Como a Natureza, alheia a tudo, reivindica o que lhe foi tirado e reconquista as grandes obras humanas de engenharia em ruínas.
A segunda ideia é a escolha dos sapos como protagonistas. Foi a escolha simbólica perfeita para o humor negro subjacente ao argumento da narrativa. Sapos são animais crepusculares que trazem consigo todos os significados nascidos da grande cadeia simbólica água-noite.
No Ocidente o anfíbio é associado a face lunar, infernal e tenebrosa. O sapo seria o atributo dos mortos – ele interceptaria a luz dos astros por um processo de absorção. Seu olhar fixo indicaria insensibilidade ou indiferença à luz.
Por viver na umidade e escuridão, o sapo tinha um papel bem definido nas tradições europeias de magia: em certas circunstâncias pode ser uma das formas de manifestações do demônio.
Piscina, água, sapos e morte. Garden Party é mais um exemplo da felicidade do encontro entre argumento, narrativa e a escolha do simbolismo arquetípico dos protagonistas. A narrativa repleta de índices que provocam o espectador associado a felicidade da escolha dos simpáticos batráquios pela sua carga simbólica, fazem do curta uma das mais surpreendentes produções que este humilde de blogueiro assistiu em tempos recentes.
Ficha Técnica
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Título: Garden Party (curta)
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Diretor: Florian Babikian, Vicent Bayoux, Victor Caire, Théophile Dufresne, Gabriel Grapperon, Lucas Navarro
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Roteiro: Florian Babikian, Vicent Bayoux, Victor Caire, Théophile Dufresne, Gabriel Grapperon, Lucas Navarro
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Produção: MOPA, Bloom Pictures
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Distribuição: Vimeo
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Ano: 2017
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País: França
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