O atentado de um procurador da Fazenda Federal contra uma juíza do TRF-3 em São Paulo revela a existência de um mundo crepuscular de sinais e símbolos (“formas-pensamento”) do qual o Bolsonarismo e a direita alternativa se nutrem – uma psico-esfera nacional psiquicamente envenenada resultante da guerra híbrida e anos de “Efeito Copycat” e “Efeito Heisenberg”. Efeitos midiáticos da saturação do discurso anticorrupção que, de tão ambíguo ou polissêmico, criou um perverso “acontecimento comunicacional”: o encontro da narrativa midiática com a jornada pessoal de receptores - todo um subconjunto de pessoas vulneráveis, homicidas e suicidas em um nível inconsciente quem podem infectar a população em geral a acreditar que a “meganhagem” e “justiçamento” são o paradigma tanto para as soluções nacionais como para as mazelas pessoais afetivas, emocionais e familiares.
Em postagens anteriores este Cinegnose vem insistindo que a guerra híbrida geopolítica norte-americana que (entre outros países) também teve o Brasil como alvo, produziu um efeito ainda mais deletério do que o golpe político: gerou o próprio envenenamento psíquico nacional, iniciado com a polarização política.
Os cinco anos de Lava Jato com ostensiva cobertura diária em tempo real da grande imprensa (vazamentos sistemáticos, cobertura ao vivo de conduções coercitivas com policiais federais em icônicos capuzes ninja e escopetas negras brilhando para as câmeras, imagens internas de câmeras da PF com os depoimentos dos delatores etc.) visou muito mais do que o impeachment e a destruição do soft power brasileiro – toda a cadeia produtiva do petróleo, gás, engenharia civil e energia, cujos milhões de desempregados são o efeito mais imediato.
Era necessário também criar um efeito mais a longo prazo, para além da destruição político-econômica: uma contaminação psíquica duradoura graças a simbiose mídia e cruzada anticorrupção. Contaminação com objetivo de evitar o perigo de uma guinada à esquerda nas próximas eleições.
O episódio do procurador da Fazenda Nacional Matheus Assumpção que tentou matar uma juíza na sede do Tribunal Federal da Terceira Região (TRF-3), em São Paulo, foi mais um episódio sintomático desse psiquismo coletivo doente.
Doente de Brasil
Aqui e ali vemos tentativas de definir essa atmosfera pesada: “doente de Brasil”, “deu a loca na Justiça”, o procurador que virou “Adélio Janot” – em referência a Adélio Bispo, o suposto desequilibrado mental que desferiu a facada em Bolsonaro que mudou o destino eleitoral brasileiro; e o ex-PGR Rodrigo Janot que na última semana revelou em entrevista que chegou armado em uma sessão do STF disposto a matar o ministro Gilmar Mendes.
Há ainda por trás dessas tentativas de definição um pressuposto clássico hipodérmico da comunicação. Até o ministro do STF Alexandre Moraes partilha desse lugar comum da comunicação ao afirmar que esse ataque no TRF-3 foi “o resultado de uma lavagem cerebral que vem sendo feita contra as instituições e a democracia”.
Mas há algo muito além dessa concepção hipodérmica da comunicação – senso comum cuja consequência principal é a própria concepção equivocada da natureza da comunicação para a esquerda.
O empirismo grosseiro da Globo
Tanto há algo de mais profundo nesse episódio que foi emblemático a forma como o jornalismo da Globo tratou essa notícia, apelando ou para o empirismo grosseiro, ou para a simples omissão: no dia posterior ao ataque a juíza, o telejornal local relatou Matheus Assumpção “entrou em surto” e intercalava frases sem sentido sobre “acabar com a corrupção no Brasil”, mas omitia a informação de que havia participado naquele mesmo prédio do II Congresso de Combate à Corrupção na Administração Pública.
No primeiro telejornal da rede, o Jornal Hoje, foi feito o inverso: omitiu da reportagem a exortação “acabar com a corrupção no Brasil” e apenas destacou que o procurador havia participado do Congresso. No principal telejornal da emissora, o JN, sequer foi dada a notícia.
Se durante o dia evitou criar relações de causa-efeito na notícia, à noite partiu para a sua simples omissão.
Em seu empirismo e omissão grosseiros, fica claro que o jornalismo da Globo quis evitar as coincidências significativas entre Janot-Matheus Assumpção (“eu vou fazer o que Janot não fez!”, também gritava Matheus) e o suposto “surto” logo após um Congresso sobre corrupção com a críptica exortação de “acabar com a corrupção no Brasil”.
Efeito Heisenberg
Mas o jornalismo não só da Globo, mas da própria grande mídia inteira, quer ocultar a maior causa desse envenenamento psíquico nacional: a saturação midiática representada pelos chamados efeito copycat e efeito Heisenberg, cujo esfaqueamento da juíza do TRF-3 é até aqui o exemplo mais gritante.
Anos de tabelinha entre Justiça-PF-grande mídia nos estratégicos vazamentos, repercussão e shows das conduções coercitivas começaram a criar um gigantesco efeito Heisenberg – em todo esse tempo o jornalismo corporativo nada mais fez do que relatar o esforço que as instituições faziam para obter a atenção da mídia e como os eventos aconteciam para a logística da cobertura midiática. E a mídia apenas cobria a si mesma e o seu impacto sobre os eventos aos cobri-los – mais sobre esse conceito clique aqui.
Efeito recursivo digno das obras expressionistas do artista plástico M.C. Escher.
Esse efeito está muito além dos efeitos hipodérmicos midiáticos produzidos pela repetição de informações para inculcação ou doutrinação. Por assim dizer, o efeito Heinsenberg cria uma conjuntura de saturação na qual a sociedade imerge numa espécie de estúdio televisivo total – a espetacularização torna os eventos telegênicos (ou fotogênicos ou videogênicos, como os icônicos black blocs das manifestações híbridas de 2013-16) e logisticamente midiatizáveis (TV, rádio, cinema etc.), confundindo a linguagem do drama ficcional com a lógica política social ou econômica dos fatos históricos ou reais.
Efeito Copycat
A decorrência desse contínuo sociedade-mídia capaz de criar uma psico-esfera saturada e envenenada por medo, ódio, ansiedade, ressentimento etc. é o aparecimento de coincidências significativas - o efeito de imitação chamado “efeito copycat” pelo pesquisador Lauren Coleman em seu livro “The Copycat Effect: How the media and popular culture trigger the mayhem in tomorrow’s headlines” – clique aqui.
Personagens, palavras ou narrativas podem adquirir força ao transformarem-se em verdadeiras “formas-pensamento” que, quando repercutidas pelas mídias, adquirem autonomia na psico-esfera social gerando contágio rápido como memes.
Para Coleman, esses “memes” ou “formas-pensamento” que passam a povoar esse contínuo atmosférico midiático atrai todo um subconjunto de pessoas vulneráveis, homicidas e suicidas em um nível inconsciente. Esses doentes psíquicos estão entre o mundo racional da causa e efeito e o mundo crepuscular dos sinais e dos símbolos. A diferença é que são atormentados por essa realidade sincromística que, então, pode infectar a população em geral.
Rodrigo Janot (aquele que posava como a “esperança do Brasil” para os manifestantes pró-Lava Jato), ex-PGR e fora da ribalta midiática, de repente volta à cena com a revelação de que certa feita entrou com uma arma engatilhada no STF armado para acabar com a vida de Gilmar Mendes. Para defender a honra da própria filha, difamada pelo ministro, e depois se matar.
Jogo de cena para promover seu livro e sentir-se de novo no centro dos holofotes – simplesmente Janot não se conforma de ter ficado de fora do gigantesco estúdio do efeito Heisenberg que atuou por anos.
Atiradores de Suzano/SP |
O Acontecimento Comunicacional
E inegável a coincidência significativa entre a bravata de Janot e o ataque do procurador à juíza em São Paulo. Mais do que isso: foi um “acontecimento comunicacional” dentro desse efeito Heisenberg: o encontro da narrativa midiática com a jornada pessoal de um receptor.
Matheus Assunção tinha um histórico de problemas de saúde mental e licença para tratamento em diversas ocasiões. Certamente “acabar com a corrupção” e “fazer o que Janot não terminou” foram os significantes escolhidos por ele para dar sentido aos seus fantasmas pessoais – semioticamente, acabar com a corrupção significava redimir-se de si mesmo.
Psiquicamente vulnerável, sintonizou-se a esse “mundo crepuscular de sinais e símbolos” do qual fala Lauren Coleman. Ele e tantos outros que sintonizam significantes midiáticos (a agenda midiática do momento) como atiradores ou homicidas, desde os assassinos seriais norte-americanos a atiradores como os de Suzano/SP.
E quais significante são esses? Os do léxico da meganhagem, diariamente exposto pela grande mídia como a única solução das mazelas nacionais – cujo exemplo está no vídeo da campanha na TV sobre ações de segurança pública do Estado de São Paulo que mais parece um cruzamento de Tropa de Elite com Rambo: escopetas, snipers, policiais militares atuando como em um campo de batalha e helicópteros, sob trilha pesada e percussiva tendo como fundo o espocar de balas.
O episódio desse procurador é revelador também pelo tipo de engajamento “político” que o discurso anticorrupção produziu na psico-esfera brasileira: um engajamento não do tipo político-ideológico (o engajamento orgânico por ideais e ativismo).
Como discurso ambíguo ou polissêmico, o conceito de “corrupção” é semanticamente elástico – de improbidade administrativa, suborno, recebimento de propina à ideia de decomposição da ética ou depravação e perversão da moralidade dentro da pauta religiosa conservadora.
Discursos polissêmicos são perfeitos para criarem aquilo que chamamos de acontecimento comunicacional: o momento em que a narrativa midiática se encontra com a jornada pessoal. Isto é, transforma-se em significante para expiar problemas pessoais do receptor – psíquicos, emocionais como separações, desajustes familiares, afetivos, ressentimentos decorrentes etc. – Leia MARCONDES FILHO, Ciro, Dicionário da Comunicação, 2ª. Edição, Paulus, 2014.
São como racionalizações: corrupção, Janot ou a juíza vítima do esfaqueamento são simples álibis para formas catárticas de remissão pessoal.
Por exemplo, milhares de almas reúnem-se em manifestos anticorrupção, exigindo fechamento do Congresso e do STF (atendendo aos comandos midiáticos dos significantes da meganhagem midiática), por verem nesse modus operandi o paradigma da “limpeza” no qual o público e o pessoal se fundem imaginariamente – “limpar” o País, assim como as própria mazelas da vida privada...
O encontro da narrativa midiática e a jornada pessoal |
Meganhagem e Justiçamento
Por isso o perigoso encontro atual entre os significantes da meganhagem (a ideia de que o “justiçamento” é a única saída para uma suposta profilaxia moral e ética generalizada) é o “engajamento” de psiquismos atormentados pelas querelas pessoais. O sucesso político do Bolsonarismo (e de resto de toda chamada “direita alternativa” pelo mundo) vem dessa promoção de acontecimentos comunicacionais e não de práticas hipodérmicas de comunicação.
Em outras palavras, a esquizofrenia midiática se encontra com o espectro esquizoide de receptores. De um lado, enquanto a grande mídia pauta o combate à intolerância e defende a diversidade e igualdade de gênero, etnia etc., figura diariamente nas telas e fotografias os significantes da meganhagem e justiçamento – policiais fortemente armados, conduções coercitivas, snipers, delatores presos com imagens vazadas no noticiário, e simbolismos de supremacia como toucas ninjas e reluzentes armas negras.
E do outro, os ouvintes, leitores e telespectadores situados dentro do espectro da psicose e equizoidismo.
Aliás, o ataque do procurador da Receita Federal expõe todos os signos do atual radicalismo dos autores de atentados: uma arma branca (arma supremacista para demonstração de autoridade e poder, ao lado de machados, punhais, arco e flecha), vítima feminina, crime cometido por um homem branco e hetero, sociopatia e problemas psíquicos persecutórios.
Niilismo político, poder, rudeza, agressividade, supremacismo, cinismo e estereotipia são os traços que emergem desse acontecimento comunicacional.
Em termos de ciência da comunicação, essa é a dinâmica bem-sucedida das estratégias de comunicação do Bolsonarismo: ao lado da já discutida estratégia de “guerra criptografada”, a aplicação de um discurso polissêmico e apolítico – o discurso do combate à corrupção é o momento do encontro das mazelas nacionais com as pessoais: a promessa de que os significantes da meganhagem são a promessa da limpeza total da “corrupção” na vida pública e pessoal. Dentro de um conceito bem elástico de corrupção, que pode representar qualquer coisa.
Para o procurador da Fazenda Nacional, juízes e STF se tornaram os inimigos conspiradores da própria remissão pessoal.
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