sábado, outubro 26, 2019

"A Garota na Névoa" nos coloca entre Civilização ou Barbárie, Justiça ou Mídia

Uma menina desaparece na neblina em uma pequena vila nos Alpes italianos. Um investigador da polícia, famoso por casos de repercussão midiática, surge para resolver o mistério. Mas ele quer qualquer coisa, menos encontrar a verdade. Sua estratégia de investigação consiste em nada mais do que vazar deliberadamente informações para jornalistas, a fim de pressionar suspeitos pelo escândalo. Forçando delações e denúncias contra um professor do ensino médio: a vítima perfeita pelo appeal midiático que busca culpados de primeira hora para o linchamento pela opinião pública. Será que esse plot não lembra alguma coisa da atual história brasileira? Esse é o filme italiano “A Garota na Névoa” (“La Ragazza nella Nebbia”, 2017) baseado no romance policial best seller de Donato Carrisi. Uma alegoria da promiscuidade entre mídia e Justiça promovida pela “Operação Mão Limpas” italiana, modelo para a “Lava Jato” brasileira. Promiscuidade que se alimenta dos impulsos mais regressivos da sociedade, colocando-nos numa encruzilhada: Civilização ou Barbárie? Filme sugerido pelo nosso colaborador Felipe Resende.

Operação Mãos Limpas (MP) foi uma “operação limpeza” no começo dos anos 1990 na Itália capitaneada por policiais, promotores e juízes. Seu objetivo era bem-intencionado: livrar o espaço político da corrupção. Mas foi essencialmente midiática: um espetáculo diário de vazamento de informações escandalosas que dava altas audiências para telejornais e grandes tiragens de jornais diários. Policiais e promotores contavam com os escândalos midiáticos para fazer delatores presos preventivamente “cuspirem os feijões” reais e imaginários. Claro, de acordo com o direcionamento político das operações policiais.
Ocorreram 31 suicídios entre 1992 e 1994 – inocentes que não suportaram a destruição das suas imagens e o desgaste psicológico pela execração pública.  A metástase da MP criou uma espécie de amoralidade jurídica: não importa a verdade. O mais importante era a repercussão midiática das operações coercitivas para renderem ainda mais delações e denúncias. Mortes e suicídios seriam apenas “efeitos colaterais” de uma guerra santa.
A farsa terminou em ressaca: partidos políticos e economia destruídos e o país politicamente entregue sintomaticamente a um capitão da mídia: Berlusconi. Que rapidamente reorganizou a Itália criminosa. Hoje o país é chefiado pelo líder da extrema-direita Matteo Salvini.

Polícia e Mídia

Tudo isso não lembra alguma coisa? No caso, de como o sistema midiático brasileiro se aliou a uma operação policial análoga à MP com consequências idênticas: partidos políticos destruídos, a política depreciada e a ascensão de “não políticos” de extrema-direita. Sem falar na catástrofe econômica.
O escritor, roteirista e jornalista italiano Donato Carrisi faz uma alegoria dessa tragédia italiana com muita chuva, neblina e uma atmosfera noir assustadora com o livro best-seller e filme A Garota na Névoa (La Ragazza nella Nebbia, 2017), dirigido pelo próprio escritor.


 O filme faz uma colagem de imagens noir dos últimos vinte anos, inspiradas em séries de TV, no filme Fargo dos irmãos Coen, em O Boneco de Neve de Tomas Alfredson e Twin Peaks de David Lynch. Todos os ingredientes para formar um thriller pós-moderno: uma pequena comunidade isolada nas montanhas envolta com uma constante neblina, extremistas religiosos, uma misteriosa garota que desapareceu, muitos suspeitos, policiais com chapéus de pele no estilo Fargo, um detetive hipócrita, um advogado sem escrúpulos, jornalistas desalmados e oportunistas e uma garota nerd com pouca propensão a socializar.
Um mistério de possível assassinato que faz entrar em cena um detetive mais interessado na repercussão midiática do que na solução dos crimes. Acompanhado por jornalistas abutres que farejam um novo caso de repercussão nacional, sabendo-se do histórico do detetive sempre às voltas com escândalos que garantem sempre altas audiências.
O resultado desse típico pastiche pós-moderno é um clima de conto de fadas (o filme é pontuado com imagens de uma pequena maquete da cidade em papel machê), mas que faz uma reflexão de como a centralidade da mídia cria uma espécie de amoralidade jurídica – cercada de boas intenções (e sabemos que o Inferno está cheio disso), investigações passam a se interessar mais pela publicidade dos que pela verdade. Partindo de um princípio obscuro de que toda a publicidade é boa pois legitima publicamente uma investigação policial – ao invés de buscar legitimação no Direito.
Mas a vaidade é o pecado preferido do Diabo. Para transformar a solução de um mistério num labirinto autofágico.


O Filme

A Garota na Névoa começa com uma reunião, numa vila montanhosa nos Alpes chamada Avechot, entre o psiquiatra forense (Jean Reno) e um investigador policial chamado Vogel (Toni Servillo), famoso pelos seus casos ganharem repercussão nacional através da TV. Ele se envolveu em um acidente de carro e sua roupa está manchada de sangue.  
Vogel está mentalmente confuso e tentará reconstruir os acontecimentos que culminaram naquele acidente. Começamos então um flashback: a jovem Anna Kastner, filha de uma fraternidade de fundamentalistas católicos, sai de casa dois dias antes do Natal e desaparece na neblina, supostamente sequestrada por algum maníaco. Vogel chega à cidade acompanhado por uma trupe de jornalistas da TV, incluindo uma jornalista inescrupulosa chamada Stella Honer (Galatea Ranzi).
 Vogel lidera o caso acompanhado por Borghi (Lorenzo Richelmi), um jovem policial interessado em aprender com Vogel. Seria um erro sugerir que Vogel investiga. Na verdade, ele manipula o caso. Ele é um operador experiente no que diz respeito à mídia e seus jornalistas. A sua tática de investigação é alimentar a mídia com vazamentos, a fim de pressionar suspeitos a delatar o que sabem e o que não sabem.
Em primeiro lugar a suspeita cai em um garoto que tem o costume de filmar tudo com uma câmera de vídeo, com quem Anna fez amizade e ele a segue obsessivamente. Mas as imagens gravadas revelam um suspeito com maior appeal midiático: um pacato professor de ensino médio recém-chegado em Avechot, chamado Loris Martini (Alessio Boni) – claro, professor associado com pedofilia tem a potencialidade explosiva midiática assim como padres envolvidos com coroinhas...


Toda a investigação é uma bagunça implausível. O garoto obcecado em Anna é referido como um "anjo da guarda", e não como suspeito. A polícia passa a perseguir implacavelmente Loris com apenas os menores fragmentos de evidência.
Vogel cria a narrativa sobre um "diário falso", que é uma tentativa canhestra (mas sempre com appeal midiático) de transformar Anna em uma badgirl ao estilo Laura Palmer da série Twin Peaks. Será que essa badgirl seduziu o professor? E o professor, casado e com uma filha, se aproveitou da situação? Bomba! Nitroglicerina pura!
Porém, Martini é um professor de Literatura e conhece bem a estrutura das narrativas ficcionais: plots, viradas, argumentos e motivações dos protagonistas.
“É o vilão que cria a história”, “o Mal é a verdadeira motivação por trás de cada história”, “a primeira regra de um romancista é copiar outras pessoas”, são frases pontuais ditas por Martini nas suas aulas. Antevendo algum tipo de virada contra os métodos corruptos e amorais de Vogel. Embora Martini tenha a sua reputação pública sistematicamente destruída pela mídia, ele parece saber de algo mais, à frente de Vogel.
“A vaidade é o pecado preferido do Diabo”, críptica frase de Martini dita a Vogel que soa mais como uma ameaça. Mas Vogel ignora, já que tem um séquito de jornalistas sedentos por mais vazamentos espetaculares.


A certa altura, o advogado midiático e oportunista que assume a defesa do professor Martini aconselha: “Professor, me faça um favor, quer dizer, faça a si mesmo... Esqueça que é inocente!”. A centralidade da mídia numa investigação policial significa a inversão de um princípio universal do Direito: a presunção da inocência, até que se prove a culpa.

Civilização ou Barbárie

Seja a Operação Mão Limpas na Itália ou a Lava Jato no Brasil foram turbinadas pela sanha de linchamento e justiçamento – mobilizam aquilo que Freud chamava de “mal-estar da civilização”: todos os impulsos psíquicos anticivilizatórios que criam um desvio para a realização pulsional das massas a curtíssimo prazo sem qualquer mediação civilizatória: o Direito, a Política, a Moral etc.
O pensador alemão Herbert Marcuse (1898-1979) chamava isso de “dessublimação repressiva”: a curtíssimo prazo o respeitável público ganha a satisfação psíquica com o linchamento promovido por juízes, procuradores e o meganhamento da polícia – glamour das armas, toucas ninjas e ostentação de força. Mas a médio prazo sobrevém a repressão: destruição do Estado de Direito, empregos, empresas e a ascensão do populismo midiático de extrema-direita: ex-apresentadores de reality show (Trump e Doria Jr.), “mitos” (Bolsonaro) e atores-comediantes (Zelenski, na Ucrânia).
A aliança Judiciário, Polícia e Mídia cria uma máquina muito bem azeitada, eficiente e infernal, porque alimentada pelas gratificações mais sombrias do psiquismo humano. Uma estranha distopia jamais imaginada por autores como Orwell ou Houxley. E que atualiza um dilema em tons bem mais apocalípticos: se no passado a divisa era “Socialismo ou Barbárie”, hoje deve ser outra: “Civilização ou Barbárie!”.


Ficha Técnica 


Título: A Garota na Neblina
Diretor: Donato Carrisi
Roteiro: Donato Carrisi
Elenco: Toni Servillo, Alessio Boni, Jean Reno, Galatea Ranzi, Michela Cescon, Lorenzo Richelmi
Produção: Medusa Film, Colorado Film Production
Distribuição: Meduza Distribuizione
Ano: 2017
País: Itália, França
  

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