Nesse
momento de contagem regressiva para o Ano Novo, cada telejornal e programa de
entretenimento recorre à pauta de sempre: as resoluções para o novo ano e as
simpatias e crendices para o reveillon. Principalmente agora, época em que desempregados
e trabalhadores temporários foram reciclados como “empreendedores” para tentar
elevar o astral da patuleia. Mas tudo isso esconde um significado oculto e
milenar das festividades de final de ano que envolve “Janus” - a divindade indo-europeia ambivalente com duas
caras, uma olhando para o futuro e a outra para o passado. De onde veio
“Janeiro”, cujo primeiro dia do mês na Roma antiga era dedicado a rituais e
sacrifícios ao deus criador das mudanças e transições, como progressão do
passado para o futuro, de uma visão para a outra, de um universo para o outro.
Janus olhava para o futuro, mas também para o passado para lembrar e aprender.
Mas para grande mídia é apenas a comemoração do fim de uma ano velho e a
celebração otimista de um ano supostamente novo. Não olhar para o passado e
repetir os mesmos erros no futuro. Celebrar o esquecimento.
Quando o
melhor amigo de Einstein, Michele Besso, morreu em 1955 apenas algumas semanas
antes da sua morte, Einstein escreveu uma carta para a família de Besso em que
apresentou condolências que só o pai da Relatividade faria: “Ele partiu desse
estranho mundo um pouco antes de mim. Mas nada disso importa. Para nós que
somos físicos convictos, a distinção entre passado, presente e futuro é apenas
uma ilusão, embora persistente”.
Muito
tempo antes de Einstein, o pré-socrático Parmênides sugeriu também algo
parecido: o filósofo grego acreditava que o universo é o conjunto de todos os
momentos de uma só vez. Toda a história do universo simplesmente é. A visão do
espaço e tempo juntos como uma única coleção de quatro dimensões de eventos, ao
contrário de um mundo tridimensional que evolui ao longo do tempo.
Algo que
seria partilhado pelos seres Tralfamodorianos, raça alienígena que aparece no
filme gnóstico Matadouro Cinco (1972,
baseado no romance homônimo de Kurt Vonnegut – clique aqui) – para eles,
visitar o passado ou o futuro seria nada mais do que atravessar uma rua.
Ou para
o britânico Julian Barbour, o mais enérgico e persistente físico que incansavelmente
há décadas investiga a tese de que o tempo não existe, construíndo modelos
teóricos da gravidade clássica e quântica em que o tempo não desempenha
qualquer papel relevante.
Arquétipos do Tempo
Mas
mesmo esses defensores “eternalistas” ou do “universo em bloco atemporal” reconhecem
a existência do relógio ou, no mínimo, que possam estar atrasados para algum
prosaico compromisso marcado anteriormente. Afinal, tudo isso vai contra a
nossa experiência habitual cotidiana: cada momento subsequente é trazido à
existência a partir de um momento anterior pela passagem do tempo.
Mas se
atualmente físicos teóricos entabulam seus modelos e equações para provar que o
tempo é uma mera ilusão, há milênios no campo das mitologias e dos arquétipos
ocorreram tentativas de compreender o Tempo através da captura dessa passagem
de um momento para o outro por meio de narrativas fantásticas que tentam dar
conta do fluxo da existência.
Mitologias
e arquétipos que continuam presentes nos nossos dias, porém agora transformados
em eventos secularizados, isto é, convertidos em comemorações como as festas de
Reveillon promovidas pela grande mídia e indústria do turismo e entretenimento.
A passagem do tempo transformou-se em mercadoria ou serviço oferecido pelo
turismo ou como programa de TV para anestesiar o tédio daquelas que ficaram
para trás nas comemorações.
Se as
mitologias em torno do Tempo no passado, como a figura misteriosa de Janus (a
divindade indo-europeia ambivalente com duas caras, uma olhando para o futuro e
a outra para o passado) eram esforços da cultura em compreender a existência,
hoje é o contrário: fazer esquecer o “ano velho” e apenas olhar para o futuro,
firme em resoluções pessoais que jamais serão cumpridas.
E talvez
o pior: o esforço midiático de explorar e mitologia e fazê-la regredir para a
magia - toda a sorte de crendices, simpatias e superstições que envolvem as
entradas de ano novo celebradas pela mídia em seus telejornais e programas de
entretenimento como formas de celebrar o esquecimento e induzir um falso
otimismo. Principalmente em tempos de baixo astral nacional com desemprego
crescente e crise econômica crônica.
Há um
significado oculto e milenar por trás de todos os rituais em comemorações em
torno da chegada do Ano Novo. Acreditamos que se trata apenas de festas que trazem
um novo ano com novas resoluções. Mas na realidade este dia tem um significado
mais profundo: o nome do mês de janeiro é derivado do deus de duas faces com o
nome latino de “janus”.
As duas faces de Janus
Por que
ele tinha duas faces? Porque uma olha para o passado e outra para o futuro,
essencialmente o que deveríamos fazer no começo do ano novo: olhar para o
futuro cheio de esperanças; mas também olhar para o passado e relembrar os
acertos e erros, momentos tristes, oportunidades perdidas e promessas que não
se cumpriram. Mas fazemos exatamente o contrário – celebramos o esquecimento,
em nome do otimismo celebrado pela grande mídia.
Janus foi
um dos primeiros deuses de Roma, mas possui também origens nas tradições hindus
com o mesmo duplo sentido – chamado de “Caminhos dos Deuses” (deva-yana) e
“Caminho dos Ancestrais”(pitri-yana). O simbolismo de Ganesha guardava muitos
paralelos com o de Janus: é também mestre dos “Dois Caminhos” que são
construídos tanto para os céus quanto para os infernos. Correspondendo aos
ciclos de purificação que precisamos seguir.
Assim
Janus/Jana adquire poderes e virtudes na medida em que o candidato tenha se
purificado em seu “inferno interior” cármico com sucesso – quanto mais descemos
ao inferno pessoal, mais ascendemos ao nível do “céu” que corresponde ao nível
de consciência que conseguimos através da purificação.
Em Roma,
Janus tornou-se um deus criador das mudanças e transições, como progressão do
passado para o futuro, de uma visão para a outra, de um universo para o outro.
A deidade do início de qualquer coisa. O deus das portas.
Janus e Janeiro
Por isso
o primeiro mês do ano lhe foi consagrado - “janeiro”, de “janus” ou “januaris”,
“portão”. Para Jean Chevalier e Alain Gheerbrant:
É o Guardião das Portas que ele abre e fecha, tem por atributo o cajado e a chave de porteiro. Seu rosto duplo significa que vela tanto pelas entradas quanto pelas saídas, que olha o interior e o exterior, a direita e a esquerda, o alto e o baixo, a frente e as costas, o pró e o contra. Seus santuários são sobretudo arcos, como as portas e as galerias são seus lugares de passagem (CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain, Dicionário dos Símbolos, Rio de Janeiro: José Olympio, 2009, p. 512.
No
primeiro dia do ano ofereciam-se sacrifícios para Janus, particularmente um boi
branco. Muito incenso era queimado por toda a cidade. Os magistrados
recém-eleitos faziam procissões pela capital oferecendo sacrifícios a Júpiter e
Janus. Mais tarde a Igreja Católica comemorou o primeiro dia de janeiro em
homenagem a circuncisão de Cristo.
Foi
início da perda desse significado mitológico ambivalente: o futuro só pode ser
pensado em conjunto com o passado como ciclo de aprendizado.
Pensamento mítico e mágico: da antiguidade à mídia
O pensamento
mítico sempre representou uma forma do homem fazer frente ao seus medos, uma
forma de controle ou apaziguamento que, mais tarde, a Ciência aprimoraria com a
lógica e a racionalidade.
O Tempo
sempre foi assustador para o homem por estar associado à morte, à finitude. Por
exemplo, para o poeta Charles Baudelaire (1821-1867) o Tempo é “o inimigo
vigilante e funesto, o obscuro inimigo que corrói o coração”. Tempo é passagem,
de um momento para outro mas, principalmente, da vida para a morte, da criação
e destruição. Mitologias que personificavam esse drama cósmico como Janus era
mais uma forma de apaziguamento desse mistério. Mas não apenas isso: também
aprendizado e “purificação”. A lembrança e jamais o esquecimento.
Todo
esse conjunto de simbolismos está presente de forma secularizada na atuais
comemorações de réveillon de todo final de ano. Mas essa ambivalência foi
finalmente perdida em nome de um pragmatismo otimista que envolve
principalmente o esquecimento: “adeus ano velho, feliz ano novo!”.
E não só
o esquecimento: também a regressão a um pensamento mágico animista através da
forma como a grande mídia e o entretenimento repercutem simpatias e
superstições que envolvem os rituais de passagem de ano: vestir-se de branco,
cumprimentar pessoas segurando uma moeda, comer doze uvas verdes à meia noite,
guardar a tampa de garrafa de champanhe e esconder em um lugar que ninguém
ache, e assim ad infinitum – a ideia
mágica de que cada evento mantém uma relação de contiguidade com algum outro
evento, não restando lugar ao acaso.
Se o
pensamento mágico-animista guardava uma relação instrumental de controle quase
infantil, no pensamento mítico havia uma ambivalência: existia uma seminal
tentativa de compreensão, de entender o porquê
que vai muito além do como
instrumental do pensamento mágico.
Hoje a
mídia corporativa alia o esquecimento com o pragmatismo instrumental mágico,
esvaziando toda a simbologia mítica dos antigos rituais não só da celebração da
passagem de ano, mas da passagem do próprio Tempo.
E no caso
da grande mídia brasileira, em tempo de crise econômica e desemprego crônicos,
e vendo a necessidade de levantar a moral da patuleia fazendo as pessoas
pensarem na falta de trabalho formal como oportunidade de empreendedorismo, todo
esse ritual midiático de esquecimento e magia vem a calhar.
O leitor
poderá perceber nesse momento como a mídia, mais do que nunca, vem celebrando
apenas um dos rostos de Janus: aquele que olha para o futuro e se mantém cego
para o passado. Um passado que deve urgentemente ser esquecido em nome de um
otimismo em que tudo se resolverá como num passe de mágica.
Sem
compreendermos o passado e, muito menos, figurar esse “universo em bloco
atemporal”(passado, presente e futuro coexistindo aqui e agora), somos
condenados a repetir os mesmos erros. E continuamos prisioneiros da ilusão de
que a cada Ano Novo tudo seja magicamente renovado e recomeçassemos do zero.
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