Bebês,
pés de repolhos e Papai Noel numa fábula sobre um mundo adulto que prepara
crianças para o futuro cruel que as espera – a exploração física e psíquica
pelo trabalho e sociedade de consumo. Um filme que combina a iconografia da era
soviética, folclore europeu oriental, a mitologia gnóstica do demiurgo, Papai
Noel e elfos. Um mundo no qual bebês são recolhidos em campos de repolhos para
serem vendidos como bonecas para crianças de todo o mundo. Para depois serem
recolhidas pelo “Coletor de Crianças”, a memória delas apagada e em seguida
exploradas em uma fábrica que produzirá mais bonecas com bebês presos em seu
interior. Tudo com pitadas de cenas musicais e dança. Este é o estranho filme
canadense “Patch Town” (2014): um cruzamento da estética “dark” de Tim Burton
com as atmosferas opressivas de Terry Gilliam.
Talvez a
característica principal dos “Weird Movies” (“Filmes Estranhos”) seja trabalhar
com argumentos cujas narrativas fazem um mix ou conexões inesperadas (ou
bizarras) entre iconografias e mitologias.
Patch Town (2015) é um exemplo perfeito.
Um filme que conecta narrativa do folclore russo que envolve bebês e repolhos,
a iconografia da estética construtivista russa do socialismo soviético, o mito
pagão do Papai Noel resgatado pela moderna sociedade de consumo, o traço da
crueldade com crianças dos contos de fadas originais (antes de serem suavizados
por Walt Disney) e, de quebra, o sabor gnóstico de uma narrativa que envolve um
demiurgo “coletor de crianças” para apagar suas memórias para depois serem
exploradas na linha de montagem de uma fábrica de bonecas.
Dirigido
pelo estreante canadense Craig Goodwill, Patch Town na verdade é uma versão
estendida do curta homônimo de 20111, premiado em diversos festivais como o de
Toronto e o Fantasporto, festiva de cinema fantásticos na cidade do Porto,
Portugal.
Basta
ler o plot de Patch Town para
percebemos a estranheza da produção: numa pequena e sombria vila, todos os
moradores trabalham em uma única fábrica. Repolhos são recolhidos em um imenso campo para passarem na linha de montagem dessa
fábrica. Numa linha de montagem são abertos para serem retirados bebês do seu
interior; em seguida são “congelados” e colocados no interior de bonecas de
plástico para serem vendidas em todo o mundo.
Os bebês tornam-se objetos imóveis que continuam a ver, ouvir e sentir emoção,
enquanto residem em cima da cama de alguma criança. O que os trabalhadores
dessa fábrica não percebem é que todos já foram, uma vez, esses bonecos: quando
os bebês crescem, os brinquedos são roubados pelo sinistro “coletor de bebês”,
suas memórias são apagadas e transformados em novos trabalhadores para a
fábrica.
O gnóstico conflito central
Embora o
filme trabalhe diversos subtemas como a obsolescência planejada dos brinquedos,
consumismo, Papai Noel, a mitologia que envolve nascimentos de bebês em
diversas culturas (repolhos, cegonhas etc.) e a clássica distopia ao melhor
estilo orwelliano, o conflito central que move Patch Town é gnóstico: humanos são capturados por um demiurgo,
“congelados” em “formas” como brinquedos para depois terem as memórias de tudo
isso apagadas e em seguida transformados em operários em uma rotina
casa/trabalho, ignorando toda a gigantesca estrutura na qual são prisioneiros.
Assistindo
ao filme, percebemos diversas alusões à estética dos filmes de Tim Burton e as
atmosferas de delírio e pesadelo de Brazil,
O Filme ou O Teorema Zero do
diretor Terry Gilliam. Mas a impressão é que Patch Town tem um ótimo argumento
que funcionou no curta de 2011. Porém, ao ser estendido em um longa metragem,
perdeu bastante sua força ao transformar-se em um thriller de perseguição,
pontuado por cenas musicais e tendendo para um final açucarado como preza um
conto de Natal.
Mas
ainda assim o filme rende ótimos momentos de estranheza: o protagonista vestido
de Papai Noel junto com um hindu fantasiado de Elfo em uma caminhonete ou a
sequência hilária e alucinógena em que o herói inadvertidamente come um saco de
“doces” quando foge de Patch Town.
O Filme
Patch Town abre com a bizarra sequência
da linha de montagem da fábrica com repolhos sendo abertos para retirar bebês
chorando. E que são imediatamente despachados por ganchos para a unidade em que
serão congelados. Acompanhamos a vida de Jon (Rob Ramsay) que vive a rotina
casa-trabalho e sua esposa Mary (Stepahnie Pitsalidis) com estilo “camponesa
ucraniana”. Todos na fábrica estão proibidos de cantar, enquanto são vigiados
pelo dono da “Patch Enterprises” chamado Yuri (Julian Richings) sob o comando
de policiais no estilo SS.
Mesmo
depois de submetido ao processo de “Reeducação” (uma máquina de lavagem
cerebral para apagar as memórias do passado como brinquedo infantil) Jon ainda
tem flashs de quem teria sido a sua “mãe” (Bethany – Zoie Palmer). Por isso,
Jon rouba um dos bebês-repolho da fábrica para formar uma família com Mary, e tentar
reviver essa sensação nostálgica.
Mas as
coisas começam a ficar perigosas quando veem os vizinhos que também roubaram um
bebê sendo presos pela polícia da "Patch Enterprises". Mary e Jon decidem fugir e
ir em direção ao mundo desconhecido, muito além das cercas de arame farpado que
cercam aquela vila.
Jon sabe
que lá fora encontrará a sua mãe. E será ajudado por um hilário hindu chamado
Sly (Suresh John) que os levará para um conjunto habitacional popular caindo
aos pedaços, enquanto lhe arruma um emprego de Papai Noel – ao lado de Sly
fantasiado de Elfo, fazendo dupla em um shopping center na cidade de Toronto.
Mas o
demiurgo Yuri tem também outras preocupações, além de perseguir Jon: as bonecas
da sua fábrica estão sendo criticadas pelos consumidores como “antiquadas” – é
necessário criar novas bonecas, agora para pré-adolescentes e expandir o
mercado. Yuri vê na filha de Bethany (Avery) a modelo perfeita para um novo
tipo de boneca. E decide sequestrá-la.
Enquanto
isso Jon vê na TV as notícias do sequestro e perplexo vê Bethany em um
telejornal, reconhecendo-a como a sua “mãe” perdida. E decida tentar ajudá-la a
resgatar Avery das mãos do “coletor de crianças”.
Papai Noel e crianças “mal comportadas”
Definitivamente,
esse não é um bom mundo para crianças: ou a pobreza e exploração pelo trabalho,
ou a pobreza e exploração psíquicas pela sociedade de consumo. E as versões
originais dos contos de fadas figuravam muito bem esse mundo cruel. Assim como
a versão original de Papai Noel, bem distante da imagem do bom velhinho criado
pelas ilustrações de Norman Rockwell para a Coca-Cola – na figura de
“Pencenickel” do folclore alemão, que usava máscaras e roupa escura, além de
trazer uma corrente para prender crianças mal comportadas – clique aqui.
Certamente com a sua crueldade e moralidade
ambígua, os velhos contos de fadas não só projetavam nas crianças aquilo que o mundo
adulto já era – também era uma forma “educativa” para prepará-la para o mundo
que a esperava.
Como um
típico Filme Estranho, Patch Town
funde esses dois aspectos na figura gnóstica do Demiurgo Coletor de Crianças: a
crueldade dos velhos contos de fadas e o mundo como uma prisão na qual nossas
memórias são apagadas para termos a esperança de que temos livre-arbítrio e
esperança.
E tudo
isso cristalizado na analogia entre humanos e bonecas - a filmografia recente está repleta de
filmes onde fantoches, autômatos e bonecos são metáforas da própria condição
humana nesse mundo: as relações homem/autômato ou homem/Deus onde algum
Demiurgo nos manipularia – Quero Ser John
Malkovich (1999), Trilogia Toy Story,
9 – A Salvação (2009), Eva (2011) etc.
Um imaginário construído desde Platão nos diálogos As Leis e A República: a metáfora de cada ser vivo como um
fantoche ou o jogo de sombras que os prisioneiros veem na parede da caverna
como fosse a própria realidade.
E basta ver a associação de
bebês com repolho no folclore russo para termos uma pequena ideia do realismo
rigoroso infantil do passado: Por centenas de anos o repolho tem sido
uma parte importante na dieta e remédios caseiros na Rússia. Até o século 16,
era um costume na Rússia colocar recém-nascidos em folhas de couve, antes de
serem lavados e vestidos. As folhas eram suficientemente grande e disponíveis
quase por todo o ano. Depois, a cada banho, os bebês eram envolvidos em camadas
de tecidos, como fossem folhas de repolho.
Talvez aí estejam as origens
arquetípicas do porquê quando muitos pais são confrontados pelos filhos sobre
questões das origens das crianças, contam histórias de cegonhas fazem entregas
de crianças recolhidas em campos de repolho.
Ficha Técnica
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Título: Patch
Town
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Diretor: Craig Goodwill
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Roteiro: Christopher Bond, Jessie Gabe
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Elenco: Julian Richings, Rob Ramsay, Zoie Palmer, Ken
Hall, Suresh John
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Produção: Popcorn Pictures,
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Distribuição: Reel Suspects
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Ano: 2014
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País: México
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