Sete
astronautas, acompanhados por um cachorro e um chipanzé, acordam em uma
espaçonave depois de saírem do estado de criogênico. Nenhum deles sabe o que
está fazendo ali ou qual o destino final da viagem. Aparentemente a nave (um
mix vintage da “Discovery” de “2001” e a “Enterprise” da série de TV “Star
Trek”) está programada para funcionar automaticamente. Eles apenas terão que
confiar na própria capacidade de observação para especular o propósito de tudo
aquilo. Logo descobrirão que cada um é especialista em um área do conhecimento:
Psicologia, Astronomia, Semiótica, Jornalismo, Filosofia, Biologia e Genética.
Esse é o filme francês “Cosmodrama” (2015) de Phillipe Fernandez. Com
delicadeza e humor, através de gags e situações absurdas, introduz o espectador
às grandes especulações cosmológicas sobre o início e o fim do Universo: o Big
Bang, a Eternidade, o design inteligente e o universo holográfico. Ciência,
Religião e Filosofia duelam entre si para entender o propósito da existência.
Porém, o mistério maior permanece: mas afinal, o quê é aquela espaçonave? Com a
colaboração do nosso infalível leitor Felipe Resende.
A ficção
científica nunca criou raízes no cinema francês, embora tenha nascido naquele
país pelas mãos do cineasta Georges Méliès com o seminal Viagem à Lua, de 1902. Por isso, quando o cinema francês se
aventura nesse gênero, podemos sempre esperar narrativas híbridas que envolvem
ironia, profundas reflexões filosóficas e desconstruções dos cânones.
Só para
ficar em alguns exemplos: o curta Charleston
Parade (1927 – clique aqui) de Jean Renoir, Alphaville (1965) de Jean-Luc Goddard, O Quinto Elemento (1997) de Luc Besson
ou Evolution (2015, clique aqui) de Lucile Hadzihalilovic.
Cosmodrama (2015), segundo filme do
gaulês Phillipe Fernandez, cineasta e também professor e artista da Escola de
Belas Artes de Bordeaux, é mais um exemplo das abordagens peculiares que o
cinema francês faz aos temas da ficção científica. São quase duas horas de uma
narrativa inteira em uma nave espacial através de uma série de gags e situações
absurdas que suscitam uma série de discussões existenciais, filosóficas,
ontológicas, místicas e religiosas.
Mas
sempre pelo viés da desconstrução, da espiral de interpretações relativísticas.
Tudo com delicadeza e humor na qual, apesar das intensas linhas de diálogos,
torna Cosmodrama um filme leve e
agradável mesmo com uma temática tão metafísica.
Aliás, Cosmodrama é definido pela crítica como
“a metafísica levada ao espaço” com baixo orçamento. Mas compensado com uma
direção de arte inventiva que emula 2001
de Kubrick com a inventividade de roteiro da série clássica Star Trek – e de quebra, a fluência
discursiva de filmes de Tarkovsky como Solaris
(1972) ou Stalker (1979).
Cosmodrama emula a estética de filmes
modernistas sci-fi como 2001 ou Star Trek. Filmes modernistas do gênero
eram dotados de futurismo, utopia, tom épico (“indo onde nenhum homem jamais
esteve”) e de uma visão cósmica de que o Universo é um espaço a ser desbravado
e descoberto pelo homem.
Mas a
ironia do sci-fi francês é de que alusão aos filmes modernistas fica apenas na
estética vintage e nos efeitos especiais propositalmente datados nos anos 1970.
Na verdade, Cosmodrama é pós-moderno:
um grupo de astronautas acorda do sono criogênico em uma nave errante, sem
saber como vieram parar ali, qual o propósito da missão, o destino final da
nave e quem os despertou da criopreservação. As inumeráveis galáxias, estrelas
e nebulosas são apenas objetos vistos através das janelas da nave. E os
astronautas nada têm de heroísmo, coragem ou determinação – estão confusos,
cheios de dúvidas sobre o Universo e sobre si mesmos.
Microcosmo gnóstico
Mas
também Cosmodrama tem um irresistível
appeal gnóstico: a nave é uma espécie
de microcosmo do drama humano de ser prisioneiro de uma jornada (ou existência)
da qual nada sabe sobre o seu propósito ou sentido – quem o colocou ali, por
que foi acordado (ou por que nasceu?) e para onde todos irão no final da
jornada.
Como um
bom professor e intelectual, o diretor Phillipe Fernandez mostra o quanto são
vazias e estéreis as discussões sobre os modelos cosmológicos (Big Bang,
natureza da matéria escura, modelos holográficos do universo como produto da
mente humana etc.) quando na verdade são incapazes de questionar uma simples
questão ontológica: o que é a nave na qual todos estão presos?
Em outras
palavras: enquanto todos os astronautas, nas suas mais diferentes
especialidades, tentam compreender a natureza micro e macrocósmica daquelas
imagens que veem através da janelas e escotilhas, simplesmente acabam se
esquecendo de uma simples questão ontológica: mas, afinal, por que estão
naquela nave? E, mais importante: quem os colocou naquela jornada?
O Filme
Cosmodrama começa com a iconografia
básica dos sci fi dos anos 1970: uma porta assepticamente branca se desloca com
o tradicional som “swoooossshhhh”, abrindo, para sair um turbilhão de névoa
branca e saindo da câmara criogênica um homem (Bernard Blancan) confuso,
cambaleante e em estado de amnésia.
Ele
encontra com seis outros membros pelos corredores da espaçonave na mesma
situação de confusão mental. Não sabem onde estão e de onde vieram. E deverão
confiar unicamente nas suas observações para especular teorias sobre os motivos
e propósitos de tudo ao redor.
Surpresos,
veem o que seria um membro da tripulação cruzando os corredores com um carrinho
elétrico. Ele avisa a todos para uma reunião em um dos cômodos da nave. Aliás,
apesar do visível baixo orçamento, as soluções de arte são ótimas, lembrando um
mix da Discovery de 2001, a nave de Solaris e a Enterprise de Star Trek.
Logo
descobrem que há também um chipanzé simpático e bem comunicativo, e um alegre
cachorro.
Apesar
da amnésia, cada um deles percebe que tem um expertise específico, e que os
dispositivos e laboratórios da nave são ferramentas para exercerem seus
conhecimentos: um astrônomo, um repórter de TV, uma semióloga (afinal, o filme
é francês...), uma bióloga e geneticista, um psicólogo e filósofo – sempre o
responsável pelo ceticismo radical de todas as teorias que cada um propõe
durante todo o filme.
Logo o
astrônomo anuncia a primeira descoberta: a maior parte do Universo é composta
por matéria escura e expande-se como um balão. Mas será que um dia tudo
explodirá? Se o cosmos teve um início (o Big Bang, a explosão da matéria
comprimida no espaço de uma noz), também necessariamente terá um fim? E depois?
O
repórter entrevista o astrônomo e produz um documentário, que é ridicularizado
pelo filósofo, que insiste na procura de um “programa” ou “inteligência” por
trás da criação.
Big Bang, a eternidade e o design inteligente
Enquanto
isso, a bióloga preocupa-se com a escala micro da matéria viva, tentando
compreender o momento em que a matéria tornou-se consciente. É claro que o
comunicativo macaco será a cobaia para experimentos sobre inteligência animal.
Até procurar entender em que ponto da evolução apareceu a consciência humana.
Três
modelos explicativos entram no debate: o Big Bang, a hipótese da eternidade (o
cosmos nunca teve um início e sempre existiu) e da existência de um “design”
inteligente na “criação”.
Mas a
bióloga trata de esvaziar o conceito de “inteligência” a partir da observação
de micro-organismos: inteligência é capacidade de adaptação ao meio ambiente. O
resultado final pode parecer algum tipo de “design” elaborado... Mas tudo é
questão de adaptação ao meio para sobreviver.
Enquanto
isso o ceticismo do filósofo fica cada vez mais radical: e se o Universo for
apenas um produto da mente humana?
Todos os
intensos debates científicos e existenciais são pontuados por três programas de
lazer na espaçonave: álcool, um grande saco de areia de box para todos
esmurrarem e canalizar raiva e frustração, música e dança num bar lounge com vista panorâmica para o
cosmos.
A trilha
musical é primorosa, com sintetizadores que lembram alguma coisa entre
Kraftwerk e o rock progressivo de Rick Wakeman dos anos 1970.
Ciência, mídia e religião
A
espaçonave é um explícito microcosmo da existência humana: temos a Ciência, a
mídia que procura traduzir as descobertas científicas para os “leigos” de
outras especialidades e religião e misticismo: uma estranha transmissão de
vídeo vinda do espaço chega aos monitores de TV: imagens de uma misteriosa
mulher (a chamada “femme des ondes”) dizendo mensagens enigmáticas.
Com
humor Cosmodrama apresenta uma
flagrante questão epistemológica, à qual os personagens não estão atentos: o
tempo inteiro os especialista da nave tentam ajustar as observações empíricas
aos seus modelos teóricos. Parece que o modelo de simulação antecede a própria
realidade. Como uma camisa de força à qual tudo deve ser ajustado.
Numa analogia
à alegoria da Caverna de Platão, é como se todo o tempo montassem modelos
teóricos sobre as sombras da caverna, ignorando a realidade exterior. Portanto,
ponto para o filósofo cético.
Porém, o
mais flagrante no filme é como os especialistas, tão absorvidos pelos seus
modelos teóricos, acabam ignorando uma questão ontológica principal: mas
afinal, o que é aquela espaçonave? Há um membro da tripulação (uma espécie de
“zelador”) preocupado com a manutenção da nave. Ele até fala em “hierarquia”,
como se tivesse um gerente ou um superior a quem tivesse que prestar
contas.
E no
auge de todas as especulações científicas, religiosas e místicas, no final ouvem
uma mensagem do sistema de som da espaçonave de que devem retornar às câmaras
criogênicas. Sem questionarem, simplesmente lamentam. “Logo agora que estava
ficando divertido!...”, diz o astrônomo, preocupado com a incompletude das suas
pesquisas.
Reencarnação e esquecimento – alerta de spoilers à frente
É uma
clara alusão à morte que muitas vezes abrevia projetos e sonhos. E o posterior
despertar do estado criogênico, uma evidente metáfora da reencarnação. Mas
principalmente, a morte/reencarnação como esquecimento: todos os vídeos
gravados das reportagens sobre os relatos científicos dos especialistas parecem
que são apagados – no início de Cosmodrama, vemos o repórter encontrando
vídeos-cassetes supostamente virgens. Ou foram apagados de um despertar
anterior.
Mas,
mesmo assim, apesar das intensas discussões sobre sentido e propósito do cosmos
e da vida, simplesmente ignoram a natureza da própria espaçonave em que estão
prisioneiros. E principalmente essa questão do esquecimento: parecem que sempre
os passageiros são obrigados a recomeçar do zero.
Por isso
Cosmodrama parece ser uma alusão
gnóstica e invertida da Caverna de Platão: se para o pensador grego o homem
tomava as sombras como a própria realidade existente fora da caverna, em Cosmodrama todos os especialistas e suas
especulações (científicas, religiosas e filosóficas) são voltadas para o
exterior, para aquilo que olham através das janelas e microscópios. E esquecem
de olhar para a própria caverna dentro da qual são prisioneiros.
Ficha Técnica
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Título: Cosmodrama
|
Diretor: Phillipe
Fernandez
|
Roteiro: Philipe Fernandez
|
Elenco: Jackie Berroyer, Bernard Blancan, Emilia
Derou-Bernal, Ortès Holz, Serge Larivière, Sascha Ley, Emmanuel Moynot, Stefanie
Schüler
|
Produção: Atopic Films, Lugo Prod
|
Distribuição: La Vingt-Cinquième Heure
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Ano: 2015
|
País: França
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