Onde estão os ícones da animação
dos anos 1980 como He-Man, Roger e Jéssica Rabbit (do filme "Uma Cilada Para Roger Rabbit"), o Esqueleto, Garfield, Popeye,
Mumm-Rá, muito tempo depois do auge? Como seria a realidade das suas vidas
atuais? O animador inglês Steve Cutts (conhecido por narrativas críticas sobre
a vida moderna) os imagina viciados, obesos, compulsivos, desempregados ou
subempregados em call-centers e caixas de supermercados. Esse é o argumento do
pequeno curta “Where Are They Now?” (2014): heróis que perderam a batalha final
contra inimigos mais poderosos do que vilões desse ou do outro mundo: o mundo
corporativo, o trabalho precarizado e o desemprego crônico. E terminaram
esquecidos porque acabaram ficando parecidos demais com os espectadores.
Steve Cutts é um ilustrador e
animador que diante da escolha entre trabalhar no McDonald’s ou estudar Belas
Artes, escolheu o último. Trabalhou na agência de publicidade digital Isobar UK
como o principal artista do conceito de storyboard
para depois dar um salto como freelancer.
E iniciar uma série de vídeos e imagens com uma visão crítica da vida moderna,
criando paisagens tristes e melancólicas.
Cutts costuma dizer que “a
insanidade da humanidade é um conjunto infinito de inspiração”. Este Cinegnose já atestou esta inspiração de
Cutts em dois curtas de animação: Are You
Lost in the World Like Me? (vídeo-clip criado para o DJ Moby – clique aqui) e o recente Happiness – clique aqui.
Com Where Are They Now? (2014), Steve Cutts agora tenta imaginar o que
aconteceu com os protagonistas animados Jéssica e Roger Rabbit depois do filme
de sucesso Uma Cilada para Roger Rabbit (1988).
Partindo da premissa do filme no qual desenhos animados da Toontown (a cidade
dos desenhos animados) interagiam com seres humanos e estavam empregados em
grandes estúdios de cinema, Cutts tenta imaginá-los agora no presente. E
certamente os bons tempos terminaram.
Ela ficou obesa, comendo sem
parar salgadinhos e frango frito diante da TV. E o coelho, um viciado em jogos
de azar e com problemas de saúde pelo tratamento de reposição hormonal. Estão
desempregados e passam o tempo vendo TV e se lamentando.
Roger querendo que alguém o mate
para acabar com o sofrimento. E Jéssica narra as dificuldades de viver com um
viciado, dizendo que nos anos 1980 fazia todo sentido ter uma aventura
romântica com um coelho. Mas agora...
O roteiro de Robert Zemeckis recusado pela Disney
Certamente Steve Cutts se
inspirou nas dificuldades de Robert Zemeckis em fazer uma sequência de Uma Cilada Para Roger Rabbit. Numa
entrevista ao The Telegraph, Zemeckis
falou sobre o roteiro que escreveu para a sequência, na qual mostraria Roger e
Jéssica nos anos seguintes ao original, bem distante do estilo noir dos anos 1940. Para ele, “a atual
cultura corporativa da Disney não tem interesse no Roger, muito menos na
Jessica”.
No filme de 1988 um detetive de
carne osso chamado Eddie Valiant (Bob Hoskins) é contratado pelo coelho para
investigar uma suposta infidelidade da sua esposa Jéssica. Para piorar, Roger
se torna suspeito do assassinato do parceiro de Valiant e um vilão está
empenhado em acabar com todos os desenhos animados de Toontwn (onde moram
personagens icônicos como Mickey Mouse e Betty Boop) – o vilão estaria
envolvido numa conspiração para acabar com os transportes públicos para a
indústria impor os automóveis como o único meio de transporte. E a cidade dos
desenhos animados deveria ser apagada para a passagem das futuras autoestradas.
Para Cutts, é exatamente esse
mundo corporativo e privatizante que se volta contra os desenhos animados,
trazendo o desemprego ou submetendo personagens famosos no passado a
subempregos precarizados.
Também no curta encontramos os
tristes destinos de outras celebridades dos desenhos animados: Popeye
arrasta-se como um idoso sem-teto em um estacionamento de supermercado, Mumm-Rá
e Lion-O trabalham como caixa e serviços de limpeza em um supermercado de
descontos. Enquanto isso Esqueleto, o vilão de He-Man, trabalha entediado em um
call-center e Optimus Prime serve gordurosos pedaços de frangos fritos.
Sem falar em Garfield, ainda mais
gordo tendo que ser levantado por uma empilhadeira para seu dono, o agora idoso
Jon, limpar a caixinha de areia do gato e o lixo das bandejas de lasanhas
congeladas.
Mas nem todos se deram assim tão
mal: He-Man ficou rico como estilista de lingerie e vive uma vida luxuosa no
Castelo de Grayskull junto com o guerreiro Man-At-Arms.
Solitários espelhos de nós mesmos
O argumento talvez lembre um
pouco a animação da Pixar Os Incríveis:
como os super-heróis do passado terminaram no ostracismo e condenados a
trabalhos burocráticos, barrigudos passando seus dias aborrecidos em mesas de
escritórios. Mas, ainda assim, o Sr. Incrível tem uma linda família para
se apegar como boia salva-vidas e conseguir dar a volta por cima.
Mas Where Are They Now? é mais ácido: não só todos são solitários ou
com uma infeliz vida conjugal como as ex-celebridades das animações são
espelhos de nós mesmos nos tempos atuais de subempregos, precarização do
trabalho e neoliberalismo selvagem.
Destino irônico já que os heróis
(sejam super ou apenas lutadores) sempre encarnaram os arquétipos da Grande
Meta, do Líder Visionário, do Guerreiro. Isto é, de toda uma dimensão lúdica e
espiritual que transcende o cotidiano de leitores e espectadores que lutam
apenas pela sobrevivência cotidiana.
Ver o Esqueleto entediado num
call-center, o engraçado Roger Rabbit deprimido tentando roubar o controle
remoto da TV da gorda e compulsiva Jéssica e o He-Man como um self made man sem mais nenhum propósito
pelo qual lutar significa que os heróis das animações foram derrotados por um
inimigo mais ardiloso e poderoso do que vilão do outro mundo ou conspirações
cósmicas: os insidiosos poderes corporativos precarizadores do trabalho e dos
nossos sonhos.
De certa forma esta reviravolta no
universo das HQs e animações já estava sendo ensaiada desde o anti-herói Pato
Donald de Walt Disney: neurótico, humilhado pelos sobrinhos e pelo galã sortudo
Gastão que sempre rouba sua namorada, a volúvel Margarida. Além de ser
constantemente demitido com um ponta pé no traseiro pelo Tio Patinhas.
Como observava Theodor Adorno:
“Pato Donald nos desenhos animados, tal como os indivíduos na realidade,
recebem pontapés para que os espectadores se habituem aos que eles mesmos
recebem”.
Até chegarmos ao gato Garfield, o
perfeito espelho para rirmos de nós mesmos: preguiçoso, comilão, odeia
segundas-feiras e individualista.
Mas Steve Cutts consegue ainda
ser mais radical: o atual paradigma da precarização e desemprego é tão
esmagador que até os próprios personagens dos desenhos animados perderam o
emprego de serem espelhos de nós mesmos.
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